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‘Fogo Zero’ quer encerrar o hábito secular de queimar com a mecanização


No Ramal do Caipora, uma tradição secular – derrubar, queimar e plantar –, começa a ser interrompida com a chegada da mecanização para vários assentamentos espalhados pela zona rural de Rio Branco. José Énio de Oliveira, agricultor e presidente da Associação do Moreno Maia, do Ramal Caipora, pelo segundo ano não utiliza a derrubada e a queimada como meio de “limpa do roçado” para o seu plantio.

Morando com a esposa e o filho, José Énio é um dos vários exemplos na zona rural que a mecanização, aliada ao projeto de leguminosa, pode reduzir ou mesmo acabar com as queimadas na Amazônia. A resistência de muitos produtores para a mecanização, muito mais pela tradição, pode ser um empecilho que os exemplos de sucesso terão que auxiliar na mudança gradativa.

Mas trabalhar com a queimada, além de destruir as nossas florestas naturais, ainda diminuía a vida útil dos campos para apenas três a quatro anos, antes de esgotar totalmente seu valor nutritivo para plantio por vários ciclos. A mecanização, aliada ao processo com as leguminosas, permite que uma área possa ser trabalhada por um período maior.

Ministérios Públicos – Federal e Estadual – , prefeituras, secretarias, associações e cooperativas trabalham de forma conjunta para que, até 2012 ou no máximo em 2016, o Acre possa se tornar modelo em controle de queimadas. Projetos, emendas, esforços, estão sendo tomados com o objetivo de evitar que 2005 se repita, quando milhares de pessoas tiveram que receber atendimento devido a fumaça no Estado, milhares de hectares de florestas naturais, pelo excesso de queimadas, foram varridas do mapa.

2005: o início de tudo
O combate às queimadas teve seu “marco zero” em 2005. Naquele ano, o Acre foi assolado pela resposta que a própria natureza deu de décadas de descaso das autoridades e o homem do campo. O Estado passou pela maior seca dos últimos anos, o que contribuiu para o número recorde de incêndios, os postos de saúde e hospitais da Capital registraram milhares de atendimentos decorrentes, na sua maioria, de problemas respiratórios, em especial de crianças e idosos.

As queimadas foram anunciadas como “inimigo público número 1”. Prefeituras, órgãos ligadas ao meio ambiente iniciaram trabalhos, alguns de forma conjuntas, na intenção de reduzir as queimadas em seu território. No entanto, percebendo a falta de compromisso de várias prefeituras, os Ministério Público Federal e Esta-dual mobilizaram-se para encontrar uma solução aos problemas causados pela falta de estrutura, aliada a uma cultura secular das queimadas para limpar e plantar. Iniciava o projeto “Fogo Zero”, com o intuito de reduzir gradualmente as queimadas no Acre até sua totalidade, num espaço de quatro a oito anos.

“O objetivo é a proibição em todo o Estado até 2012, com flexibilidade nos prazos, com o Imac e Ibama, para se estender até 2016, mas com responsabilidade, com políticas públicas para a subsistências das agriculturas familiares, com mecanização e leguminosas, entre outras ações”, avaliou Patrícia Rêgo, procuradora de Justiça e coordenadora do Meio Ambiente no Ministério Público Estadual.

Desde 2005, o MPE vem realizando audiências públicas na zona rural, onde vem sistematizando a recomendação contra as queimadas. Isso mudou em agosto de 2008, quando o Ministério Público entrou com uma ação Civil Pública, julgada pelo juiz da 1ª Vara Federal, Davi Wilson de Abreu Pardo, deferida em favor da ação. No processo, o juiz federal pede que o Imac autorize “apenas para implantação de agricultura fami-liar e sempre em extensão inferior ao limite de três hectares”. O pedido para 2010 reduz a extensão para apenas uma hectare e prossegue na sua decisão: “sejam negadas, a partir de 2012, autorizações para queimadas em todo o território do Estado do Acre”.

Na decisão judicial, dois municípios se prontificaram em trabalhar com políticas públicas sustentáveis para o “Fogo Zero”, Epitaciolândia e Rio Branco. Porém, a promotora Patrícia Rêgo confirmou que, além delas, Brasiléia também se mostrou favorável à redução gradual das queimadas. “A Floresta Amazônica é patrimônio nacional. O Artigo 225, da Constituição (Federal), fala na adoção de práticas sustentáveis, na adoção de estudos de impacto ambiental, licenciamento ambiental, com a adoção de novas técnicas que sejam menos agressivas ao meio ambiente”, explica.

O certo é que as prefeituras que aceitaram trabalhar em conjunto estão perto de alcançar as metas. Inclusive muitas com o auxílio dos parlamentares acreanos para conseguir emendas para o fortalecimento da mecanização no Estado. A prefeitura de Rio Branco conseguiu aumentar sua frota de tratores agrícolas graças à intervenção do então senador Sibá Machado, além do deputado Nílson Mourão e agora, por último, com a deputada Perpétua Almeida.

O secretário municipal de Agricultura e Floresta, Mário Jorge Fadell, ressaltou que no início de sua gestão, em 2005, a frota era constituída por apenas um trator funcionando e dois quebrados. Hoje possui sete tratores e aguarda a licitação de outros cinco, aumentando para 12 que trabalham na mecanização dos agricultores familiares. “Isso além de contratar serviços de terceiros para ampliar a nossa capacidade”, disse, afirmando que a expectativa é chegar bem próximo das metas estabelecidas na audiência pública.

Rio Branco tem sido um dos municípios acreanos onde a mecanização tem alcançado as metas estabelecidas pelo projeto Fogo Zero. Apesar do período de chuvas já ter iniciado, vários tratores da Secretaria de Agricultura permanecem nos ramais intensificando a mecanização, garantindo o sucesso da colheita para o próximo ciclo.

Ocorrências registradas
Durante todo o ano de 2005 foram registrados 20 mil atendimentos médicos, a concentração de fumaça foi três vezes maior que o limite aceitável, mais de 12.600 focos de calor foram registrados no Acre, provocando até mesmo a presença da Defesa Civil Nacional. Devido os constantes incêndios, a visibilidade esteve abaixo de 1km, afetando diretamente o tráfego aéreo.

O Ministério Público Esta-dual acabou criando e instalando cinco Promotorias Especializadas de Defesa do Meio Ambiente, sendo distribuídas por bacias hidrográficas (Alto Acre, Baixo Acre, Purus, Tarauacá/Envira e Juruá). A instalação das promotorias resultou na criação do Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate às Queimadas e Incêndios Florestais.

Uma das primeiras medidas, tomada no dia 16 de agosto de 2005, os Ministério Público Federal e Estadual assinaram Recomendação Conjunta para que fossem suspensas, pelo período total de 30 dias, posteriormente aumentada em mais de 15 dias, a emissão de Autorização de Queima Controlada. A partir daí foram instauradas uma série de ações públicas de caráter preventivo e educativo.

Negativo – No entanto, o que seria o desfecho para tudo o que foi realizado nos anos seguintes, inclusive chamando os municí-pios e governo para se responsabilizarem por projetos sustentáveis, na intenção de reduzir as queimadas, acabou sendo cassada pelo relator da matéria, o desembargador Federal Facundes de Deus, no item que trata da obrigação por parte do Estado da elaboração de um plano de políticas públicas.

O Ministério Público Federal e Estadual já recorreram da decisão no Superior Tribunal de Justiça e que todos os recursos judiciais serão utilizados. “Fico triste com uma decisão destas, pois é monocrática, da pena de um único desembargador, que não foi analisada pelo colegiado, o que demonstra o desconhecimento da nossa região”, lamenta Patrícia Rêgo. “Não há como sustentar uma proibição do uso do fogo se não vir acoplado a uma política pública que venha a permitir essa transição para o Fogo Zero”.

Mucuna Preta: ajuda na conservação do solo
Para muitos agricultores a leguminosa Mucuna Preta trata-se de uma praga, pela facilidade com que se espalha na lavoura. No entanto, quando trabalhada de forma sustentável, acaba se transformando no principal fator de auxílio para esses mesmos agricultores poderem trabalhar nos mesmos roçados, ano após ano, sem ter a necessidade de desmatar novas áreas.

A Mucuna é aplicada em áreas que estão em processo de degradação. A leguminosa entra na área de plantio para a recuperação de solo, no que é chamado de adubação verde. “A Mucuna fornece nitrogênio para o solo, devolvendo materiais orgânicos para ele”, explica o secretário Fadell.

A agricultora Raimunda Rosária, 44, do Ramal do Peladeiro, km 40, da Ac-90, garante o sucesso da leguminosa. “Na época que plantamos a Mucuna Preta a terra estava muito cansada, mas hoje está adubada. Além da boa colheita, aduba a terra, ainda podemos vender a semente da Mucuna”, ressalta.

Já em seu segundo ano trabalhando com a Mucuna, o agricultor José Énio explica sobre a necessidade de se saber trabalhar com a leguminosa. “Para evitar que a Mucuna invada o espaço da macaxeira ou qualquer outra cultura é preciso trabalhar com manejo, senão vira praga. Mas o sucesso é certo, pois antes o que era preciso 5 a 10 peões para derrubar, tirar tocos, limpar e começar o plantio, hoje, trabalhando em dois hectares, faço sozinho, sendo uma hectare por ciclo”, explica Énio, que afirma trabalhar o ano inteiro com várias culturas, entre elas feijão, arroz e a própria macaxeira.

Acompanhamento das “estradas”
Uma preocupação das equipes que trabalham na preservação do meio ambiente são as áreas próximas as estradas. O motivo é simples, a estrada é um “grande estimulador ao desmatamento”, afirma o secretário Fadell.

No próprio mapa de Rio Branco, o secretário exemplifica o que afirma, quando demonstra que são as margens das estradas que o homem começa a derrubada. “Existe uma correlação muito forte entre o acesso aos meios de transportes e o desmatamento ao longo das rodovias”, lamenta.

A Safra tem concentrado a maior parte das ações de mecanização na recuperação de áreas alteradas justamente nesses locais que tem fácil acesso e que tem presença de agricultor familiar. “Com isso estamos incorporando novas áreas ao processo produtivo e evitando o desmatamento”, garante.

Apenas os “traçados” enfrentam ramais
Para quem olha rapidamente para Raimundo Nonato de Souza (coordenador do programa de Mecanização na Safra para o abastecimento dos tratores, apoio lojístico, acompanhamento técnico das áreas), embaixo da lama que a profissão de sua escolha lhe impôs, pode até pensar tratar-se do motorista de uma repartição pública. No entanto o engenheiro agrônomo e mestre em Fitotecnia (fito – planta, tecnia – técnica) para muitos agricultores e tratoristas é o elo de ligação com a zona urbana.

De posse de uma L-200 Mitsubishi traçada, Raimundo afirma que em alguns locais, com a chuva, fica impossível chegar. No trajeto para o Ramal Caipora, no Rio-zinho do Rola, alguns carros e caminhões pagaram pela ousadia de enfrentar os ramais amazônicos. Para percorrer apenas 38km, para chegar na Associação do Caipora, foram necessários 1h40, mantendo o ritmo médio de 30km/h e isso com o carro todo o tempo traçado, obrigado pela chuva que caiu parte da manhã e durante toda a tarde.

Diariamente, o agrônomo percorre em média 150 a 200km dentro dos ramais, muitos deles dentro da lama. “Em muitos ramais é tabatinga, o barro é muito liso e torna as estradas traiçoeiras. Aumentar para 40 ou 50km/h pode resultar em cair na vala, aí só mesmo o trator para tirar”, disse com a experiência de 10 anos percorrendo a zona rural da Capital.

No começo do ramal, máquinas faziam o trabalho da manutenção da principal via de acesso dos agricultores, porém, com a chuva, tratores e caminhões precisaram parar, pois o tipo de terra nas estradas vicinais da região impossibilita que consigam rodar. Isso vale também para os tratores dentro dos assentamentos. “Se começar a chover, dependendo da terra é preciso esperar dois dias de sol para retornar aos trabalhos”, avaliou José Ribeiro, tratorista há 20 anos.

 Companheiro nos bons e maus momentos
Dentro das cooperativas e associações o principal lema é “ajudar entre si”. Durante a passagem da reportagem de A GAZETA nos pólos se viu isso de perto várias vezes. Essa ajuda pode vir de várias formas.

Apesar do trator ser um fator de necessidade para todos, o fato dele ter um pneu furado em uma das colônias – ressalte-se que o pneu pesa aproximadamente 600kg seco – não impediu a equipe da Safra e os associados a se dispor rapidamente em auxílio ao tratorista na sua troca. Seis homens foram necessários para sua troca, com peças de quase 100kms, a manutenção demorou quase uma tarde inteira.

O dono da colocação, Denir, nem mesmo se encontrava, mas o trabalho não parou. “Aqui todos se ajudam, se não fosse assim não teria sentido ter uma associação”, afirmou o presidente da Associação do Moreno Maia, José Énio de Oliveira, que no dia seguinte iria fazer o mutirão para a finalização da Casa de Farinha Modelo (projeto do senador Tião Viana para construção de 102 em todo o Acre). “Ela servirá para aumentar a produção de farinha da comunidade, chegando entre 3 a 4 mil quilos mensais”, afirma.

A cooperação também pode auxiliar a todos. José Énio afirmou que um grupo de cinco agricultores da Associação vai tentar a aquisição de um trator agrícola – com redução de impostos dentro do projeto federal Mais Alimentos – que servirá para melhorar os trabalhos nas plantações. “E isso será positivo para todos”, afirma. Atualmente, a associação possui quatro roçadeiras, uma peladeira de arroz, batedeira de milho, arroz e feijão, trituradora para ração e xerém.

Secretaria de Agricultura trabalha áreas alteradas
Em 2005, a prefeitura de Rio Branco, através da Secretaria de Agricultura e Floresta (Safra), iniciou o trabalho de fortalecimento da mecanização nas áreas de agricultura familiar. O objetivo era um só: diminuir as queimadas na região e reduzir drasticamente as derrubadas na Capital.

O secretário da Safra, Jorge Fadell, explica que a meta é alcançar 10 mil áreas onde são praticadas agriculturas familia-res com a mecanização. “Somente em Rio Branco em torno de 20 mil hectares estão em processo de degradação, sendo que delas 10 mil hectares são áreas de agricultura fami-liar, por isso estamos trabalhando na educação ambiental, incentivando a produzir sem derrubadas”, afirma.

As outras 10 mil áreas, localizadas em grandes propriedades – fazendas – , o Governo do Estado tem um programa de incentivo à recuperação de áreas alteradas, onde o produtor recebe crédito e incentivo para utilizar calcário, adubação, para a recuperação do pasto. “Muitos fazendeiros estão fazendo plantios de arroz, feijão. Aí o processo seguinte é a recuperação de pastagem”, ressalta Fadell.

Avaliação do Safra para receber a mecanização
Para que a mecanização chegue até ao agricultor familiar a Safra averigua fatores preponderantes, entre eles se está inserido em alguma cooperativa ou associação, principalmente nos assentamentos rurais.

Antes de começar a mecanização uma equipe de técnicos se deslocam para as áreas para fazer uma avaliação se não está em áreas protegidas (matas ciliares, reservas ou nascentes dos rios).

Após tudo regularizado, a equipe de mecanização começa o trabalho. Pela destoca (limpar a capoeira), seguida do trator agrícola (aração e gradagem). Concluí-da essa primeira etapa, a equipe técnica recomenda o uso de “leguminosa” – para conservação de solo – , considerada a adubação verde (Mucuna Preta).

O engenheiro agrônomo Raimundo Nonato, porém, adverte que a mecanização sistemática no mesmo solo pode ser prejudicial. “Excesso de mecanização prejudica, pois seguidamente no mesmo local pode compactar a área e prejudicar o sistema radicular das plantas”, ressalta. “O ideal é que fizesse um ciclo sim, um ciclo não e, a partir daí, trabalhar com a Mucuna para manter esse solo conservado”.

Resolução para a sobrevivência das florestas amazônicas
Quando os Ministérios Públicos Estadual e Federal convocaram pela primeira vez os 22 municípios acreanos para a primeira das reuniões, a Capital acreana já iniciava seus trabalhos para evitar as queimadas descontroladas. Após a primeira meta estabelecida, os principais nomes na agricultura e meio ambiente acreano começaram a elaboração do projeto, sendo um dos dois projetos de municípios aceitos como sustentável pelo MPE.

Professor José Rêgo, secretários Arthur Leite e Jorge Fadell, além de Jorge Rebouças, foram os responsáveis pela elaboração do projeto de Rio Branco. “Na verdade tivemos que aperfeiçoar o projeto que já tínhamos elaborado, com a aplicação da mecanização para a agricultura familiar, o fortalecimento do solo com as leguminosas (Mucuna Preta), combinado com a educação ambiental”, explicou Jorge Rebouças, diretor do departamento de Agropecuária e Extrativismo da Safra.

Segundo o secretário Fadell e a promotora Patrícia tudo é uma questão de cultura da derrubada e queimada que deve ser trabalhada com educação ambiental, apoio financeiro e técnico, além do exemplo de quem vem dando certo com a mudança. “Tanto o governo, quanto o MPE e o produtor podem se apropriar de um programa que não cria vício, não cria o assistencialismo e pode ser transformado num processo de sustentabilidade da pequena produção rural, fazendo com que o Acre, senão em 2012, mas em médio prazo, possa estar com toda sua produção sendo feita com alta produtividade e sem a utilização do fogo como alternativa de limpeza das áreas”, fala esperançoso o secretário.

Patrícia acrescenta: “acredito que a mudança da cultura da queimada possa mudar e é esse nosso objetivo. Não há mais espaço para utilizar fogo na Amazônia, tanto pelo aquecimento global, da mudança climática, tudo isso é uma realidade em nossas vida, quando tivemos 48º marcando nos termômetros, sentido pelos próprios agricultores, em 2005. Eles testemunharam os prejuízos em seus patrimônios”.

A Gazeta do Acre: