Criado no primeiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o programa Luz para Todos tem como objetivo resolver um grave problema brasileiro: a exclusão elétrica. Os resultados dessa iniciativa têm sido positivos. Milhares de famílias deixaram de viver na escuridão e agora contam com o conforto proporcionado pela energia. No Acre, a tentativa de levar eletricidade para as comunidades mais isoladas também tem avançado, mas emperra em um outro agravante histórico – a disputa por terras.
É justamente esse entrave que desmitifica a tese de que no Acre não existe mais conflito entre os seringueiros e os grandes latifundiários – de que as mortes de Wilson Pinheiro e Chico Mendes simbolizaram o fim desse embate. A única verdade nessa situação toda é que o extrativismo vegetal há muito tempo está falido e de que os extrativistas e seus descendentes procuram sobreviver com a agricultura e a pecuária de pequeno porte.
Na semana passada, A GAZETA visitou uma comunidade rural no município de Capixaba que retrata bem o quadro social descrito acima. Mesmo separadas a pouco mais de 15 quilômetros da BR-317, também chamada de Estrada do Pacífico, a mesma que tornará o Acre uma importante rota comercial brasileira, pessoas ainda vivem nos tempos da lamparina para não passar a noite na escuridão, e não desfrutam do prazer de tomar uma água gelada em dias tórridos.
A situação poderia ser outra, é verdade. Elas procuraram o governo neste ano e pediram a instalação do Luz para Todos. O pedido foi aceito. A empresa contratada começou a instalação dos primeiros postes. Era a realização de um sonho antigo. Mas dias depois um documento enviado para a Eletroacre, responsável pela execução do programa, pedia a interrupção da obra que levaria eletrificação até a comunidade Campo Esperança, que fica dentro da fazenda com o mesmo nome.
O autor do pedido era o dono da propriedade, Jorge Moura. Segundo ele, as famílias que lá moram são invasoras e estão dentro da reserva legal da fazenda. De uma simples questão de eletrificação rural, o conflito entre comunidade e fazendeiro leva a questões fundiárias e crimes ambientais. Essa é uma história longa, que remete ao Acre das décadas de 1960 e 1970.
Na Campo Esperança moram quase 35 famílias. A grande maioria afirma ser ex-seringueiros ou filhos deles. A extração de látex e castanha praticamente não existe mais – a floresta virou pasto. A agricultura de subsistência é a única garantia de sobrevivência. A posse da fazenda também está na segunda geração. O atual proprietário é sobrinho do primeiro dono, conhecido por Zé Português.
Quando a área foi comprada, dizem os posseiros, seus pais já estavam lá. Essa foi uma situação comum que marcou o Acre de 30 anos atrás. Incentivados pelo governo militar, fazendeiros do Sul e Sudeste (os paulistas) vieram para a Amazônia com o objetivo de transformá-la em um grande pasto. Milhões de hectares foram vendidos a preço de banana. O problema é que seringueiros já moravam ali.
Expulsos de suas terras, muitos se mudaram e, desamparados pelo Estado, formaram os primeiros bolsões de miséria nas cidades. Os que resistiram passaram a viver na pobreza tanto quanto os que migraram. Situação que não mudou nada três décadas depois. Segundo a Fetacre (Federação dos Trabalhadores Rurais do Acre), atualmente mais de 40 áreas de terra enfrentam o mesmo problema da Campo Esperança.
Depois da decisão do fazendeiro de não permitir a passagem dos postes do Luz para Todos, a associação dos moradores decidiu procurar o Ministério Público Estadual. Depois de três audiências com a promotora Alessandra Marques, ela afirmou nada poder fazer em favor da comunidade. “Juridicamente ele [Jorge Moura] é o dono, e quem está lá dentro são invasores”.
A recomendação dada pelo Ministério Público foi de que os moradores acionassem a Justiça com o pedido de Uso Capião, instrumento legal que dá direito à posse da terra pelo tempo ocupado. É o que a maioria deles fez. Mas até uma decisão judicial sair, levará alguns meses – ou anos – e eles continuarão a viver na idade das pedras. Entre os moradores está o ex-seringueiro Raimundo Sales de Araújo, 53 anos – 19 deles na Campo Esperança.
Ele mora com outras sete pessoas em uma habitação rústica, típica dos antigos seringais acreanos, com as paredes e o chão de bambu, e coberta por palhas. São mora-dias muito comum de se encontrar nos lugares mais distantes do Acre, às margens dos rios. Um cenário que há muitos anos deixou de fazer parte dessa região do Estado, a mais “beneficiada” pela política do “Integrar para não Entregar”.
Para garantir um pouco de luz em meio à bruma da noite, seu Raimundo usa lamparinas. “A casa fica cheirando a querosene”, diz ele com o sorriso em um rosto que sintetiza toda sua história de vida dentro da floresta, e que dá a ele muito mais anos de vida do que realmente tem. Outra fonte de luz são as lanternas a pilha. Dentro da Campo Grande seu Raimundo afirma já ter extraído látex. “Agora todas as estradas de seringa foram destruídas”.
A pequena plantação de arroz, feijão, mandioca e a criação de galinhas garante o sustento da família, que prepara as refeições em um fogão a lenha. A poucos metros, seu Raimundo tem como vizinho Lupécio Brasil, que comprou 20 hectares diretamente de Jorge Moura por R$ 2,5 mil. É na pequena agricultura que também tem o sustento. Além de terem que viver na escuridão, Lupécio e Raimundo têm outra coisa em comum: foram multados pelo Imac (Instituto de Meio Ambiente do Acre).
Vivendo em miséria total, o órgão de fiscalização am-biental do governo estadual os multou em R$ 7,5 mil. O motivo? Derrubaram uma pequena área verde para aumentar a plantação. Jorge Moura, segundo os posseiros, diz que eles estão dentro da reserva legal da fazenda, o perímetro de floresta que não pode ser derrubado. “Ele desmata toda a reserva e coloca a culpa nas famílias”, acusa Elias Camilo, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Capixaba e vice da Fetacre.
A reportagem tentou entrevistar Jorge Moura para falar sobre o assunto, mas ele não foi localizado.
Sem energia, crianças enfrentam calor em uma escola sem estrutura
Se nas cidades acreanas a qualidade do ensino já é precária com todos os instrumentos proporcionados pela estrutura urbana, o que dizer das crianças que estudam em uma pequena escola de madeira na Campo Esperança. Vinte e sete alunos da 1ª a 4ª série dividem o mesmo espaço. Para chegar, muitas precisam andar ou pedalar horas por um ramal de mata fechada, sujeitas a sofrer todo perigo.
A mesma rotina diária é do professor Ruberlei Soares, que precisa percorrer mais de 20 quilômetros para chegar ao local improvisado para ensinar as crianças. O quadro negro é o único instrumento a disposição dele. “Se tivéssemos energia poderíamos usar uma televisão para enriquecer as aulas, mostrar para elas como é o mundo fora daqui”, explica Soares. Além disso, o calor nos dias mais quentes torna-se insuportável.
Quando chegam ao último ano de ensino oferecido, as crianças precisam interromper os estudos. Assim será com Rafaela Barbosa, 10, que todos os dias precisa andar quase uma hora de casa para a escola, e vice-versa. O professor também lamenta o fato de não poder le-cionar para os adultos, o que aconteceria à noite. “Temos 30 pessoas dispostas a estudar, mas sem luz fica impossível. Eu já tentei, mas realmente não dá”.
Aos 81, primeiro morador recorda o passado e tem medo do futuro
Quando Manoel Torres chegou a Campo Esperança toda a área era um grande seringal. Ao todo, 12 estradas de seringa (varadouro) conduziam o seringueiro até as árvores de onde se extraia o látex para a produção da borracha. Isso foi em 16 de novembro de 1966. A memória boa que lembra o dia exato da chegada é da esposa dele, Francisca Torres de Oliveira, 60.
Manuel começou a construir a vida ali. Logo depois a área foi vendida com ele e os outros seringueiros dentro. O primeiro dono, Zé Português, manteve os ocupantes na nova propriedade e os aproveitou como mão-de-obra. A relação do fazendeiro com o Manuel sempre foi amigável. Como retribuição ao trabalho, Português doou mais de 500 hectares para seu empregado.
Tudo parecia ir bem, até começar os primeiros conflitos com o herdeiro da propriedade. As trocas de acusações partem de um lado para o outro. O caso chegou a parar na delegacia de Capixaba. A pressão foi tanta que provocou um AVC (Acidente Vascular Cerebral), o que o deixou imobilizado em uma cadeira de rodas. Para fazer qualquer movimento depende da esposa.
Ele fala com dificuldades. O dano ao cérebro não prejudicou as recordações do passado. Lembra da infância, quando começou a cortar seringa aos 12 anos de idade na região onde hoje é o município de Senador Guiomard. Também trabalhou nos seringais de Xapuri, a terra de Chico Mendes. Quando ainda extraia látex, anotava toda a sua produção e o que vendia. Hoje amareladas pelo tempo, as folhas de papel comprovam o grau de organização desse homem.
Agora a maior preocupação de Manuel é com o futuro da família. O medo de ter que ser expulso de sua terra o atormenta. Essa luta foi encabeçada pelo filho Jair Torres, 27, o caçula de três irmãos. Ele tem sido o porta-voz da família e de toda a comunidade Campo Esperança pelo direito ao pedaço de chão, e de que a energia lá chegue.
Casado e pais de dois filhos, ele mora em uma casa de madeira. Sua companheira inseparável nessa luta é a máquina fotográfica digital. Nela, ele filma cada etapa dessa novela que parece não ter capítulo final. Na casa, uma bateria de caminhão é a única fonte de energia para recarregar o equipamento, e outros aparelhos de carga energética menor.
“Sem energia tudo é difícil. Nunca bebemos água gelada, precisamos salgar a carne para conservá-la”, lamenta. A principal preocupação de Jair é com a saúde do pai, também portador de diabetes. “Ele hoje ainda não precisa, mas quando for necessário usar insulina não teremos uma geladeira para armazenar o medicamento”, comenta o filho.
Em Rio Branco Jair Torres fez o orçamento de quanto seria necessário desembolsar para comprar os equipamentos para manter uma geladeira funcionando. O custo total não seria inferior a R$ 6 mil. Entre os aparelhos estão duas placas solares, que garantem energia somente em dias de muito sol. A família Torres aguarda a decisão da Justiça para saber se tem o direito à posse dos 500 hectares.
Com fim para 2010, Luz para Todos beneficia 30 mil acreanos
De acordo com dados do Comitê Gestor do programa Luz para Todos no Acre, mais de 30 mil famílias da zona rural do Estado serão beneficiadas até o fim de 2010 com a eletrificação rural. Esse será o prazo final da execução deste programa do Governo Federal. Quando decretado em novembro de 2003, a previsão era de que fosse encerrado no ano passado.
Mas foi constatado que um grande número de famílias ainda não tinha sido beneficiado. O principal problema era a dificuldade de acesso às localidades, principalmente nos estados do Norte. “A maioria dos estados na Amazônia não conseguiu atingir as metas do programa”, diz Alberto Fernandes, coordenador do Luz para Todos no Acre.
De acordo com ele, o caso da comunidade Campo Esperança não é o único já enfrentado pela equipe. Nessas si-tuações, o caminho encontrado é a Justiça. “No Bujari também houve um caso semelhante. A pessoa que se dizia a dona da área por onde os postes passariam não permitiu a instalação. Fomos para a Justiça, e foi comprovado que ele não era o dono legítimo”, diz Fernandes.
Diante do caso no município de Capixaba, só resta ao governo esperar pela sentença que favoreça os moradores. A eles, só resta torcer que a decisão seja proferida antes de dezembro de 2010. Caso contrário…