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Da década perdida à da reconstrução, Acre testa em 2010 seu amadurecimento


O Acre encerra hoje aquilo que os historiadores costumam definir por a década da reconstrução. Em 2009 completaram-se exatos 10 anos em que o Estado é governado por um partido de esquerda, com origens no movimento de resistência dos seringueiros contra a transformação da floresta em pasto. Depois de quase 100 anos governado pelas mais distintas siglas da direita, o governo acreano passou, desde 1999, a ter uma nova concepção de política econômica, estrutural e social.
Mas para construir esse processo não foi nada fácil, como ainda não está sendo. Os petistas acreanos receberam uma “herança maldita” dos ex-governadores. Quase um século de pouco progresso e muito regresso. O retrocesso total aconteceu com mais força dez anos antes de Jorge Viana assumir um Palácio Rio Branco sucateado e jogado às moscas.  

A partir de 1988 o Acre passou a viver um dos piores momentos de sua história. Até 1998, os acreanos presenciaram a chamada década perdida. Período que o país enfrentara durante os anos 1980, quando o dragão da inflação começava a mostrar sua face, e os sucessivos planos econômicos do então presidente José Sarney não conseguiram recuperar o poder de compra dos brasileiros.

O Brasil acabara de sair de 20 anos de regime militar. As instituições ainda estavam fragilizadas. No Acre a situação era a mesma, ou até pior. Afinal de contas, os estados do Norte foram obrigados a adotar a política de ocupação da Amazônia imposta pelos generais de plantão. Milhares e milhares de hectares de floresta eram entregues a fazendeiros do Sul e Sudeste do país, e logo depois se transformaram em uma grande área fértil para a criação de gado.

A pecuária ia substituindo a fracassada economia do extrativismo vegetal. A produção de borracha, que outrora enriquecera os cofres do Estado, aos poucos ia à bancarrota. “Não podemos negar que a matriz econômica do Acre mudou. Hoje, a pecuária é nosso segundo produto, atrás somente do serviço público”, comenta o historiador Marcus Vinicius, especialista na História Política do Acre.

Essa fase de transição foi a principal responsável para a concepção dos primeiros movimentos sociais do Acre. Com eles, formam-se a gênese dos conflitos entre seringueiros e pecuaristas. O estopim desse embate se dá com a morte de Chico Mendes, em 1988; justamente o ano que se inicia a década perdida. “Do final da década de 1980 até 98 foi marcado pela crise institucional absoluta. Há um descompasso entre governo e sociedade”, analisa Vinicius.

Enquanto de um lado os governantes apoiavam os grandes fazendeiros, e estavam envolvidos em escândalos de corrupção, do outro a sociedade se uniam nos mais distintos movimentos, como os da Igreja Católica, os sindicatos e a organização dos primeiros partidos de esquerda pós-ditadura no Acre. O início dos anos 90 marca a retomada da esperança dos acreanos de, enfim, poder construir um futuro próspero.
É a oportunidade de escolher um novo governador. Como opção tem-se dois jovens políticos, que representam a inovação. Edmundo Pinto, do PDS (ex-Arena e atual DEM) e Jorge Viana, do PT de Luiz Inácio Lula da Silva. Uma agremia-ção ainda vista com desconfiança pelos brasileiros, que durante os anos de chumbo eram doutrinados sobre o perigo que representava o comunismo.

Pinto vence Jorge no segundo turno. Para Marcus Vinicius, a participação do petista naquele pleito já era o prenúncio do que aconteceria no final da década, com a chegada dos esquerdistas ao poder.  Poucos meses depois da posse de Pinto, a esperança é interrompida. O governador é morto em um quarto de hotel em São Paulo, crime até hoje envolto em mistérios.

No lugar dele assume o vice, Romildo Magalhães. “Aconteceu o que ninguém esperava, um verdadeiro desastre. É o começo de um governo bizarro”, define o historiador, que completa: “a morte de Edmundo Pinto marca o início do desmanche do poder público no Acre; a desmontagem da vida institucional”. Se no final dos anos 80, completa ele, o Estado vivia um desencontro entre o poder público e a sociedade, a década de 90 é a perdida.

“A figura do governo sumiu, evaporou. Há um total desgoverno”. É nessa fase que os acreanos vêem as principais empresas estatais irem à falência. Entre elas a antiga Sanacre, responsável pelo abastecimento de água, Cila, Acredata e outras. O principal símbolo desses anos de desmandos e sucateamento é a bancarrota do Banco do Estado do Acre, o Banacre.

Até hoje, os acreanos pagam essa fatura da década perdida. Parte do Orçamento é destinada a pagar as dívidas dessas empresas. Após o desastre do governo Romildo Magalhães, mais uma vez um partido de direita assume o já combalido Palácio Rio Branco. Em 1994 os acreanos elegem para governador o ex-prefeito de Cruzeiro do Sul, Orleir Cameli.

“Ele [Cameli] representava, naquele momento, o que havia de mais atrasado no Acre, o seringalismo dos coronéis de barranco”, afirma Vinicius. É nesse ínterim que o Esquadrão da Morte dentro da Polícia Militar começa a agir com mais intensidade. “O Acre vai para a lona totalmente”. Com cidades destruídas e a população entregue à miséria, o Acre parecia sem futuro, com os acreanos desmotivados.

“De 1988 a 1998 é a década que o Acre é literalmente desmanchado, com o Estado entregue àquilo que a sociedade tinha de pior”, resume Marcus Vinicius. 

Com a chegada da esquerda, Estado passa por reconstrução de sua estrutura

O ano é 1998. O Brasil de Fernando Henrique Cardoso vai deixando o ostracismo de lado e modernizando sua economia. O Plano Real dá certo. Empresas estatais que antes davam prejuízos são privatizadas e passam a gerar lucros. Com ventos favoráveis, FHC modifica a Constituição e permite que os chefes do Poder Executivo possam disputar a reeleição.

A aprovação da Emenda da Reeleição no Congresso Nacio-nal foi marcada por denúncias de corrupção, com o pagamento de propinas aos parlamentares – inclusive acreanos. No extremo Norte do país, o Acre continuava mal das pernas. Com a direita desgastada e um Estado financeiro e institucionalmente falido, a esquerda é apontada como favorita para vencer as eleições daquele ano.

Depois de uma bem sucedida administração à frente da Prefeitura de Rio Branco, Jorge Viana é, mais uma vez, o candidato do Partido dos Trabalhadores. Junto com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido Socialista Brasileiro (PSB) e outras siglas marxistas menores, Jorge ganha o governo com o slogan “a vida vai melhorar”, trecho da música de Martinho da Villa, “Canta Canta, Minha Gente”, que virou o jingle da campanha.

A frase não poderia ter sido outra em um momento tão difícil para a população acreana. Os funcionários públicos estavam há mais de seis meses sem receber seus salários, os cofres do Estado foram arrombados, as cidades estavam destruídas e o crime organizando agia impunemente. Em 1999, os petistas assumem o poder e Fernando Henrique derrota Lula. “Eles [a esquerda] ganharam em cima dessa década perdida”.
“Se o início dos anos 70 marca o fim do seringalismo e a gênese da pecuária, 1999 simboliza o fim do ciclo do agronegócio e o começo do desenvolvimento sustentável”, analisa Marcus Vinicius. É a concepção daquilo que anos depois se chamaria “Florestania”. “Não é a volta aos antigos seringais, mas sim usar todo o potencial oferecido pela floresta com sustentabilidade”.

Os últimos dez anos (1999-2009), completa, marcam a reconstrução do Acre. Explica o professor: “É a reconstrução do eixo econômico do Estado, de todo o aparato institucional e a recuperação da identidade cultural e histórica do povo acreano”. Com o caixa vazio e dívidas com a União, o novo governo precisou contratar empréstimos junto aos principais bancos brasileiros e mundiais de fomento.

Como garantia, foi oferecida a adoção do Desenvolvimento Sustentável como a nova política econômica. Com sua desenvoltura política, Jorge Viana ainda conseguiu o apoio do tucano Fernando Henrique Cardoso na árdua missão de reerguer o Acre. As transformações ocorreram ao longo dos anos. Com uma arrecadação tributária pífia, o Estado hoje comemora sucessivos recordes no seu recolhimento de impostos.

O Esquadrão da Morte é desmantelado, seus principais líderes presos, julgados e condenados. Escolas, hospitais, prédios públicos, avenidas, estradas, aeroportos e outras estruturas públicas foram recuperadas. O Acre passou a se modernizar. Centros históricos que antes estavam abandonados foram revitalizados. Uma das principais apostas dos petistas foi a construção da Estrada do Pacífico, que, através do Acre, ligaria a rota comercial brasileira aos portos peruanos.

O trecho dentro do Brasil está concluído. A previsão é que até o final de 2010 o Peru conclua sua parte.  Depois dos quatro primeiros anos, Jorge Viana tentou a reeleição com alto índice de aprovação. Como adversário ele teve o ex-governador Flaviano Melo, do PMDB. Foi um pleito acirrado, com a cassação da candidatura do petista. O Tribunal Superior Eleitoral permitiu Jorge disputar a eleição. Venceu e fez maioria na Assembléia Legislativa.

Foram mais quatro anos de reconstrução. A economia florestal passava a se fortalecer ainda mais. Jorge passou a atrair para o Estado empresas dispostas a investir na sustentabilidade. O manejo florestal sustentável substitui a retirada predatória de árvores. Os madeireiros que não se adaptaram à nova realidade faliram. O governo “privatizou” áreas de floresta para que empresas explorassem de forma sustentável toda essa riqueza.

Hoje, o Acre é o maior exportador de madeira originária de áreas certificadas. E a pecuária? Cresceu sem precisar devastar. A pecuária acreana é hoje uma das mais fortes e competitivas do país. A carne das fazendas ganhou o mundo graças ao reconhecimento internacional na FAO, entidade da ONU que atesta a salubridade de alimentos – uma luta do governo do PT.

Com as contas públicas rees-truturadas – como também as instituições – funcionários públicos com salários em dias, uma Rio Branco de cara nova e a identidade do povo acreano retirada das cinzas da década perdida, era a hora de o Partido dos Trabalhadores testar seu governo nas eleições de 2006. Com as principais estrelas fora do pleito, os petistas arriscaram com o vice de Jorge, Binho Marques.

Com um perfil mais técnico, o ex-secretário de Educação, e professor nas escolas dos filhos dos seringueiros, assume o Palácio Rio Branco. É o terceiro mandato consecutivo da esquerda acreana. Binho dá continuidade ao projeto de Desenvolvimento Sustentável. Depois de oito anos com Jorge Viana investindo na infra-estrutura do Estado, Binho tem como prioridade a melhoria da qualidade de vida dos acreanos. Ele promete: até 2010 o Acre será o melhor lugar para se viver na Amazônia. (F.P.)    

Com os olhos do mundo na Amazônia, Estado tende a consolidar modelo econômico

A chegada de 2010 representará um importante momento para os acreanos: a oportunidade de escolher, através das urnas, o futuro do Estado, aquilo que será analisado pela história nos próximos 20 anos. “Nós estamos no meio de um processo que ainda não está concluído”, diz Marcus Vinicius. Para ele, o Acre vive hoje o mesmo que aconteceu na década de 70.

“Daquela época até o final dos anos 90, a pecuária se tornou a potência econômica do Estado”. Agora, diz, o Acre está em fase de consolidação da política econômica do desenvolvimento sustentável. O atual clamor mundial pela redução dos gases do efeito estufa contribui para fortificar essa linha de pensamento. A queimada da Floresta Amazônica corresponde por mais de 70% dos gases poluentes emitidos pelo Brasil.

Nos últimos anos o país tem conseguido reduzir o desmatamento da Amazônia. O modelo de exploração sustentável do Acre tem servido como baliza para os outros estados da região. “O mundo tardiamente se deu conta do que o Acre adotou há dez anos. A tendência daqui para frente é que as áreas de floresta sejam cada vez mais valiosas”, vaticina ele. 

Para Vinicius, a grande commoditie do futuro será o oxigênio da Amazônia. “O crédito do carbono será o grande negócio das bolsas de valores”. Com uma cobertura florestal de 88%, o Acre tende a ser um grande beneficiado desse future business. “O Acre tem todas as ferramentas para fazer um desenvolvimento econômico socialmente mais adequado. Encontramos não só um novo eixo, como ele está adaptado ao mundo todo”.   

“Ao contrário da pecuária, que beneficiou somente uma pequena parcela da população, contribuindo para a concentração de terras, o desenvolvimento sustentável deve ser mais justo, equânime, mais equilibrado, que atenda e atinge uma parcela maior da população”, opina o historiador.

Na avaliação dele, o governo Binho Marques representa o início da consolidação do novo modelo econômico do Acre, da exploração sustentável dos recursos florestais. “O que ele [Binho Marques] quer dizer com o ‘melhor lugar para se viver’? É o melhor lugar para se viver para todos, não para poucos”, diz.

Na avaliação do pesquisador da História do Acre, independentemente do partido que assumir o governo nos próximos anos ele deverá manter a atual política de desenvolvimento sustentável, manter de pé o maior capital do Estado. Além disso, a sociedade não permitirá que o processo de amadurecimento das instituições seja interrompido. “Os próximos 10 anos serão de consolidação do modelo econômico da sustentabilidade no Acre”. (F.P.)   

 

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