A droga produzida na Bolívia e desprezada pelo mercado asiático em decorrência da baixa qualidade está sendo “liquidada” no Acre. O alerta é do presidente da Associação dos Pais e Amigos dos Dependentes Químicos (Apadeq), Antônio Balica. Em decorrência disso, segundo ele, a cocaína – antes tida como uma droga de luxo – passou a ser utilizada também pelas comunidades mais pobres. O crack, assegura, é outra substância entorpecente em ascensão no Estado, em decorrência dos fortes efeitos produzidos e dos baixos preços.
Segundo ele, o fato já foi comunicado à Secretaria de Justiça e Segurança Pública, através de ofício, para que as medidas cabíveis sejam adotadas. “Os traficantes não dispensam, nem os indígenas. Tratamos uma índia de Rodrigues Alves que estava completamente escravizada pelo uso de entorpecentes. Ela tinha alucinações e gritava muito”, conta.
As conclusões de Balica se baseiam em pesquisa interna e pelo constante monitoramente feito pela Apadeq, junto aos órgãos e instituições ligados ao combate às drogas e à criminalidade. “Dos 16 internos em tratamento, 11 já tiveram contato com o crack e 5 se tornaram dependentes”, revela. Sendo que todos já tiveram experiência com outras drogas.
De acordo com Balica, a pesquisa da Apadeq revela que não existe uma droga de preferência. O preço é que vai determinar qual droga está em alta no mercado. “O usuário pode até ter uma droga da sua preferência, mas ele sempre vai levar em consideração qual é a mais acessível”, observa.
E neste momento, a cocaí-na e o crack seriam as duas substâncias mais fáceis de serem adquiridas. A cocaína, que no passado era comercia-lizada em vidrex de R$ 100,00, atualmente pode ser comprada em “paradas” de até R$ 10,00. Da mesma forma o crack, que passou a ser procurado em decorrência do efeito imediato.
Matéria-prima vem da Bolívia e do Peru
A pasta-base utilizada na produção do crack vem da Bolívia e do Peru. Devido a sua localização geográfica e a frágil fiscalização da faixa de fronteira, o Acre é encarado como uma porta de entrada fácil. De acordo com relatório da Polícia Federal, só este ano, já foi apreendida 1,3 tonelada de drogas em todo Estado, no período compreendido entre janeiro e outubro. A pasta-base de cocaína lidera a lista de apreensões, representando 90% do total apreendido.
Nas cidades fronteiriças de Assis Brasil, Brasiléia, Epitaciolândia, Plácido de Castro e Cruzeiro do Sul, os traficantes usam a população para atravessar a fronteira com pequenas quantidades. É o chamado tráfico formiga. Na maioria dos casos, a “mula” – como é apelidada a pessoa que faz o deslocamento da droga está a serviço do tráfico para manter o próprio vício.
Na cidade de Brasiléia, por exemplo, os usuários de crack compram a droga direto no varejo, é a chamada “raspa de oxidado”. De acordo com o valor oferecido pelo usuá-rio, o traficante raspa a pedra de oxidado e pesa a quantidade equivalente. As porções menores custam em média R$ 5,00 e as maiores R$ 10,00.
Na Capital, o crack pode ser adquirido a luz do dia
De acordo com depoimentos de ex-usuários de crack, colhidos por A GAZETA, durante visita ao Centro de Recuperação de Dependentes Químicos “Enock Balbino da Costa” – mantido pela Associação de Pais e Amigos dos Dependentes Químicos (Apadeq) – em pelos menos seis bairros da Capital é possível adquirir a droga em plena luz do dia e em menos de cinco minutos.
Os pontos de vendas, segundo as informações repassadas pelos dependentes químicos em tratamento, estão distribuídos em bairros estratégicos de Rio Branco, de forma a atender as comunidades adjacentes. Na região do Segundo Distrito, por exemplo, a distribuição do crack está centralizada no bairro Seis de Agosto. Não existe uma boca específica, os traficantes ou suas mulas agem de forma invisível para não despertar a atenção da polícia.
Na região da baixada – formada por cerca de 17 bairros – o ponto é Palheiral. Os traficantes da localidade se mantém protegidos da polícia a custa de ameaças aos moradores. Jovens entre 15 e 25 anos são suas principais vítimas.
Os demais pontos de distribuição estão localizados no Conjunto Esperança, Tancredo Neves, Rua Rio Grande do Sul e na Baixada da Colina – este tem como referência a ponte nova do São Francisco. Os dependentes afirmam que em muitos pontos, o usuário utiliza o produto no próprio local, de forma a evitar circular com a droga e ser pego pela polícia.
“Foi a pior experiência da minha vida”, diz dependente
O crack é o estágio mais avançado da dependência química. É uma espécie de última instância dentro da hierarquia das drogas. Para chegar até ele, geralmente o usuário já passou por vários outros tipos de substâncias entorpecentes. Primeiro é a maconha – adquirida geralmente nas dependências da escola – seguida da merla e da co-caína. Não existe classe social ou gêneros específicos, qualquer pessoa é uma vítima em potencial.
“Foi a pior experiência da minha vida”, desabafa F.; 42 anos. Ele teve contato com a droga no município de Brasiléia, onde viveu por vários anos. Lá, segundo ele, a facilidade em adquirir a droga, é um atrativo para aqueles que já estão dependentes de outras substâncias.
“Na primeira vez que eu fumei, já fiquei viciado. Mesmo passando mal, eu não conseguia largar. Minha cabeça doía tanto que eu fumava do lado de um igarapé, ai eu ficava fumando e mergulhando a cabeça para aliviar a dor”, conta.
Segundo F., o efeito da droga é tão avassalador, que o simples fato de lembrar do consumo, é suficiente para desregular o intestino da pessoa. “Depois que eu me viciei passei a andar com um rolo de papel higiênico escondido. O barulho do meu estômago era tão alto que chegava a assustar as pessoas”, conta.
No improviso, latinha vira cachimbo
Diferente do que ocorre nas demais regiões do país, onde o crack é uma mistura de cocaína em pó, bicarbonato de sódio e água destilada, resultando em pequenos grãos, e posteriormente fumados em cachimbos, no Acre, a matéria-prima e o consumo são diversos.
O crack consumido no Acre não passa por laboratório, ele é extraído direto da pedra de oxidado, daí o motivo da sua cor amarela e não esbranquiçada como é característico no Sul e Sudeste do país. Outra diferença está no consumo. Na ausência do cachimbo, os usuários utilizam latinhas de cerveja.
“A gente faz um furo na lata, coloca a pedra e cinza de cigarro, depois aquece com o isqueiro e faz cheirando”, narra, C., de apenas 15 anos. Ele é um dos cinco dependentes que está em tratamento no centro da Apadeq. A exemplo de F., ele afirma que seu primeiro contato com o crack aconteceu em Brasiléia, mas admite que também já comprou a droga em vários pontos de Rio Branco.
Conta que a dependência aconteceu de forma rápida. “Em um mês eu estava viciado e passei a vender tudo que tinha. A gente acredita que precisa da droga para viver, quando na verdade é o contrário, ela está nos matando aos poucos”, admite.
Outro detalhe, revelado por C., é que os restos do crack que vão se acumulando no interior da latinha, são revendidos para os usuários que não tem condição de comprar a droga pura. “Uma latinha cheia custa em média R$ 10,00. O crack é tão forte, que mesmo as suas cinzas, ainda não capazes de provocar efeitos nos usuários”, diz.
EFEITOS NO ORGANISMO – Quando a pedra é aquecida por baixo, produz um vapor ou fumaça. O usuário aspira esse vapor para dentro de seus pulmões. A partir daí, a droga é levada à corrente sangüínea e chega ao cérebro entre 10 a 15 segundos, enquanto a cocaína em pó inalada leva de 10 a 15 minutos para surtir o mesmo efeito. O barato do crack pode durar de 5 a 15 minutos. Os efeitos são: aceleração dos batimentos cardíacos, aumento da pressão arterial, dilatação das pupilas, suor intenso, tremor muscular e excitação acentuada, sensações de aparente bem-estar, aumento da capacidade física e mental, indiferença à dor e ao cansaço.
Donald Fernandes defende ação conjunta
O médico e deputado estadual, Donald Fernandes (PSDB), reconhecido pelo trabalho desenvolvido na recuperação de dependentes químicos, defende a atuação conjunta do Estado e da sociedade, tendo como foco a escola e a família. “A escola é a trincheira cívica do combate às drogas. É por lá que devem começar as ações preventivas, sob pena de fracasso”, sentencia.
De acordo com o parlamentar, o uso e o comércio da droga estão relacionados a 80% dos casos de violência registrados no Estado. “A droga é a mola propulsora do crime. Investir na prevenção e no tratamento dos dependentes vale mais do que contratar 10 mil soldados para combater o tráfico”, compara.
Donald defende uma política que estimule uma mudança de comportamento das famí-lias em relação às drogas. “É antes de tudo um resgate moral. O amor é essencial no combate às drogas, a família precisa saber disso e agir de forma a ajudar na recuperação de seus doentes”, explica.
“A droga é uma doença controlável, que infelizmente não está sendo controlada. Vamos ter que sofrer muito mais por conta disso”, finaliza.