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Que falta faz!

Meu caro Angelim e munícipes. De repente, Deus viu que elaborou mulheres e homens insanos que passam pelo meu bosque e apenas vêem lenha para a fogueira que há de me torrar. Detectou também o Altíssimo ser erro da Criação fazer ou deixar germinar a insensibilidade no humano. Pior foi Ele observar que para tal fator as soluções, desde todos os séculos, se caracterizam enquanto completamente inoperantes, porque o insensível é sempre aquele ser dotado de grande força moral apenas para enfrentar os problemas que acontecem aos outros.

O poeta não é exatamente piegas. Alguns até o vêem enquanto um escritor rígido por demais no trato com as palavras que primeiro lhe chegam à mente e só depois é que chegam ao coração. Em síntese, o bardo é mais racional que apaixonado.

Por isto, é preciso deixar bem claro a todos quantos interessar possa. São dez textos que constituem a participação do vate no Segundo Prêmio Garibaldi Brasil de Literatura. Digo-vos que, no primeiro prêmio, ele se houve muito bem e foi classificado com três escritos bem simples, depois publicados em livro luxuosamente impresso: A nova literatura acreana. Na ocasião, o contumaz remendador de frases até ganhou dinheiro. E tudo isto veio a causar a comoção da plebe ignara e sem perspectiva que se perguntava: por que tanto para um só?

É por assim vos escrever que o sonhador em tela faz algum comentário, aqui, apenas sobre dois textos fragílimos, uma poesia e um ensaio literário tenros demais, toscos, talvez os mais sem sentido, talvez os menos interessantes e dignos das lágrimas de compaixão da platéia e dos circundantes que não choram.

Para a mãe morta, o sonhador de pés de latas escreveu A balada do anjo que parte. Trata-se de poesia pura, sim, na forma e no conteúdo, estilo metido a modernista, conforme aprendeu no século passado, em aulas de teoria literária, do Curso de Letras da Ufac, com a Olinda Batista. E daí? Toda esta melopéia lacrimejante, que fala de infância e saudades de um tempo que de todos foge todos os dias por entre os dedos, findou por ser atirada aos ratos dos esgotos fétidos do ostracismo dos poetas pobres.

 […] E o anjo já é o beija-flor ferido
 Que foi por uma flecha atingido,
 E agora cai abatido, vertiginosamente,
 Do alto do despenhadeiro, base
 Do seu primeiro e do seu último vôo.
 Bate com a cabeça angelical pássaro morto
 E com o peito e com as asas
 E com o coração, pedra em pedra surgidas
 Na seqüência do grande salto para o fim.

 E o penhasco é tão alto e as escarpas tão íngremes…

 Pobre Anjo! Não mais voltará a sonhar e voar. […]

O outro texto, Estilo Gari, é um ensaio literário sobre a vida e a obra de Garibaldi Brasil. Esta também foi completamente desrespeitada e vilipendiada e ejaculada em meio ao lodaçal das raízes culturais acreanas  esfumaçadas pela fornalha que coagula o látex da alma do poeta sem razão e sem sentido, apesar de tratar de quem trata.

[…] Não poderíamos, jamais, enquadrá-lo num estilo de época, uma vez que, como já foi observado, o cronista vivia para um tempo muito além do seu tempo. Talvez pudéssemos afirmar que se trata de um realista pela descrição e expressa minúcia dos fatos e comentários. Talvez também pudéssemos dizê-lo um novo romântico em tempos de Modernismo, como Vinícius de Moraes, quando eleva a alma aos patamares das vazões sentimentais, do enlevo amoroso e sutil com que nos brinda em boa parte das suas crônicas. […]

Eis que o sonhador de flandres, enfermo e pobre, pagou e fez reproduzir cento e trinta fotocópias e mais as capas de plásticos e mais as três espirais, tudo a dinheiro suado e maltrapilho. Os açúcares chegaram a patamares significativos no sangue do poeta glicêmico, mas ele foi lá, embora tonto e fadigado pelas circunstâncias do organismo já em estado de depauperação. A moça bonita, charmosa, inteligente, soberba, indócil, cheirosa, educada, delgada e sob os eflúvios de doses maciças de uma droga chamada burocratismo disse-lhe, secamente, não poder receber os textos malacabados do poeta mal entendido.

– Não há como receber, senhor. Todos os textos estão em um único volume. Nós precisamos distribuir as várias categorias em encadernações separadas. Aí, sim, ficará legal.

A ordem estava uma desordem, realmente. E como estava. Mas o edital é obscuro. Tanto que o bardo, cabisbaixo, voltou para casa, contou mais alguns tostões dos alforjes de couro de burro e tirou mais outro tanto igual de cópias e mais as capas de plástico e mais, agora, doze espirais, tudo a dinheiro suado e maltrapilho, mais uma vez… Então, os presentes natalinos dos gêmeos gordos, filhos do versejador, voaram ao vento de um dezembro que entardecia… As crianças houveram por bem se contentar apenas com aquelas quinquilharias bolivianas. Mas foi bacana!  

Eis que um janeiro pouco chuvoso e claro levou a alma insana do vate, pela segunda vez, aos ermos da venturosa Fundação Garibaldi Brasil. A humildade o deixou falar bem pouco porque o espírito ofuscara-se pela radiante moça bonita, charmosa, inteligente, soberba, indócil, cheirosa, educada, delgada e burocratizada, além de estrela de um filme e de um céu diurno em meio a seringueiras e samaúmas frondosas e exuberantes, como diria o poeta Juvenal.

A tal glicemia permitiu que o poeta se arrastasse através do longo trapiche e, cansado, lá ele chegou, mais uma vez, às duas da tarde. Malgrado, a burocracia, pela segunda vez, tolheu os sonhos da poesia morta.

– Agora, faltam mais envelopes, já que o senhor participará em quatro categorias. Vá ali na Rua Seis de Agosto e compre. O sol está a quarenta, mas está bom.
– Dê-me papel de embrulho e barbante ou fita adesiva e eu próprio faço um pacote bem feito, aqui mesmo, como nos tempos em que embalava presentes. – Foi o que disse o poeta.

– Nós não temos nada disso, senhor. Por favor, entenda.

E o poeta entendeu que por certo a sua participação esteja sendo considerada dispensável. Vá lá que seja assim!

No certame anterior, havia uma equipe de recepção que muito bem atendeu aos concorrentes. Não faltaram, à época, envelopes, ou cola, ou barbante ou fita adesiva ou papel manilha ou boa vontade, vontade de ajudar, não ao tosco poeta, mas ajudar a poesia órfã, submissa, persignada, humilhada ante os esgares da toda poderosa e altiva burocracia. Não. Os que por ali deveriam estar para ajudar o bardo a sacudir o pó da roupa não estavam, não vieram, não foram, morreram, ou foram sufocados por fórmulas que valorizam muito mais a forma que o conteúdo. E deu no que deu.

Cansado, abatido, alquebrado pelos açúcares que lhe prejudicam o sangue, o versejador optou pela rendição tendo-lhe apontadas para as suadas têmporas armas tão poderosas e sutis.

Por trás daqueles alpendres charmosos, talvez construídos por Capitão Ciríaco, ficaram um pacote, um envelope lacrado, com nome e pseudônimo do autor, e um CD, quase na certeza de que o cesto de lixo será o destino derradeiro da obra do poeta gasto pelo tempo e pelas aleivosias dos burocratas. E a que preço? Ao preço que cobram os que sabem que a mais pura arte não nasce do berço dos endinheirados que podem pagar pelas fotocópias da alma. O artista nasce do povo e o povo não tem tantos tostões com que possa comprar os desígnios burocráticos empavonados… O artista precisa de que o ajudem  –  com apenas três envelopes  –  para que a sua arte não morra de inanição.
E havia a possibilidade de mais dinheiro sair dos velhos alforjes embolorados, se todo o pacote fosse enviado pelos Correios? E como poderia ficar? O volume seria grande e pesado. Depois do dinheiro pago à estatal das encomendas, o funcionário zeloso (da Fundação) observaria que uma das espirais estaria enrodilhada, em forma de espiral, erradamente, comprometedoramente, e reprovaria todo o esforço empreendido por séculos a fio. Tome-lhe zero, poeta burro!

Mas o homem é pródigo. Ele produz e escrevinha e elabora e tenta dignificar as letras por aqui desenhadas, talvez sem conseguir tanto porque certos delírios findam por atravancar a jornada de quem parte e chega, mesmo arfando o peito cansado, mas chega.

Ele sempre colaborou com muita coisa exatamente porque a sua verve e a sua produção não são lá tão insignificantes, como querem alguns dos dignitários da Fundação Garibaldi Brasil, com todo o respeito aos justos de coração, porque deles será o reino dos céus.

Em síntese, como no futebol, o poeta foi desclassificado antes de começar a peleja em gramados sintéticos, como se isso fosse possível. Perdeu por dáblio-ó. Mas o volume ficou lá, com todas as inscrições e todos os apetrechos, menos os três envelopes que não poderiam ser roubados da papelaria porque o poeta é apenas poeta e ainda não chegou ao patamar de ladrão.

Diriam alguns  –  entre eles, o velho remendador de frases – que deveras interessante é a colaboração, é a participação, é estar lá no momento da entrega das condecorações e dos lauréis para aplaudir os demais. É significativo, sim, o exemplo dado aos mais novos, como a romancista e o poeta de Xapuri, os grandes vencedores do primeiro prêmio. Não são tão importantes os prêmios e os incentivos financeiros. Certamente, por este motivo é que falta sensibilidade ao funcionário público carregado de dores morais e preconceitos tardios.

Poesia e burocracia, apesar das evidências, jamais conseguirão rimar. À primeira falta ponto de apoio; à segunda sobra pedantismo.

A burocracia já é, em si, uma erva daninha e um monstro ávido por devorar cada vez mais papel, muito papel, carimbos, capas plásticas, envelopes, fitas adesivas e espirais de caderno. Pior é que o burocrata empedernido, ciente do quanto é nocivo, finca pé no mesmo lugar, patina, come a lama, rosna, gagueja, reduz a marcha e não sai do lugar e não deixa prosperar aqueles humanos dotados de luz própria; sim, porque a burocracia é míope.

Aí, por cima dos muros gradeados e dos alpendres mais altos da minha infância longínqua, acomodam-se os agentes do serviço público a um ambiente burocrático climatizado e passam a assumir a síndrome de Gabriela para justificar a sua incapacidade de mudança: Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou sempre assim, vou morrer assim, sempre Gabriéééla!

Hélio Beltrão, o ministro que desinfetaria e desburocratizaria o cartorialismo brasileiro, chegou a uma conclusão bombástica. Segundo ele, o aparelho burocratizante prospera porque tem gente ganhando com o princípio do criar dificuldades para oferecer facilidades.

Em verdade vos digo que, apesar dos esforços do Conselho Estadual de Cultura, a burocracia tolheu a poesia.

Aí o poeta já nem mais pensa por ele e deixa que os seus botões pensem em seu lugar… Que falta faz a sensibilidade do Angelim Vasconcelos, um homem que vê lá longe. Quem sabe, eu poderia até dizer que falta faz o Marcos Vinícius que, rememorando Cazuza, cunharia no seu desenvolto estilo: “Enquanto houver burguesia, não vai haver poesia. […] Eu também cheiro mal…”

* José Cláudio Mota Porfiro é escritor em franca produção.

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