Li numa folha de caderno de um estudante de onze anos um texto escrito no quadro pela professora e copiado por ele. O assunto era a arte cristã primitiva. O texto iniciava contextualizando o período em que o cristianismo era considerado uma ameaça ao governo romano, pois contestava a escravidão e a vida imoral dos ricos. Dizia que muitos cristãos foram mortos, torturados e aprisionados. E que por causa dessas perseguições, eles, os primeiros cristãos, enterravam seus mortos em galerias subterrâneas, as catacumbas, espécie de túneis escavados nas rochas, alguns metros abaixo da superfície. E que as paredes e os tetos desses locais começaram a receber as primeiras manifestações da pintura cristã que, no início, se limitaram a representações dos símbolos cristãos: a cruz, o peixe, etc., sendo que a arte cristã primitiva era carente de elementos artísticos, não sendo executadas por grandes artistas, mas por homens do povo, convertidos à nova religião. Por fim, veio o Edito de Milão em 313 tornando o cristianismo religião ofi-cial de Roma e os cristãos não mais sentiram necessidade de se ocultarem no interior das catacumbas. A arte, por sua vez, também se libertou, tomando novo impulso.
No caderno do menino os erros de ortografia podiam ser notados com uma breve leitura: olcutarem, em vez de ocultarem, catacubas em vez de catacumbas. Mas os erros de concordância nominal e verbal eram muitos, em nenhum trecho do texto a concordância se fazia conforme as normas.
A cópia do texto demorou todo o período da aula, segundo ele. E folhean-do o caderno do menino percebi que em nenhuma parte se encontrava sinais de correção por parte da professora. Já se passaram décadas quando a professora tomava os cadernos dos alunos, um a um, e fazia as correções necessárias, na sua frente, com tinta vermelha, além de exigir que escrevesse a mesma palavra, de forma correta, pelo menos dez vezes. O menino desse caderno ainda não aprendeu a consultar dicionários.
Quanto ao tema ele não com-preendeu absolutamente nada. Apenas disse que julgava ter sido uma aula de religião e que depois soube que era de artes. Ele nada sabe da história de Roma antiga. Não sabe o que quer dizer “primitivo”. E muito menos ficou com a mínima idéia de que a arte mencionada no texto era uma representação. Nada soube sobre símbolos e não viu em vídeo as imagens dos desenhos das catacumbas, nem mesmo as próprias cata-cumbas. Por conseguinte, a aula não tinha objetivo nenhum, sendo de artes a professora não dispunha de recurso visual algum, sendo um exercício de cópia não cumpriu também seu objetivo, porque não foram feitas as correções. O que comprova que a cópia, pelo menos na forma como é utilizada na escola é inócua.
Consultei uma pedagoga que lembrou de uma piada em que uma professora manda o menino escrever várias vezes a palavra coube, que ele havia grafado errado, e após encher uma folha de papel almaço, fez a seguinte observação: “professora, não escrevi mais por que não cabeu”. Na avaliação dela: “o problema não é a atividade de cópia em si, mas obrigar o aluno a copiar algo que não faz sentido para ele. Afinal, no dia-a-dia, fora da escola, só fazemos cópias com alguma utilidade, como copiar a letra de uma música ou um poema de que gostamos, ou uma receita de bolo, um endereço quando consultamos a lista telefônica, etc. Ou seja, a cópia funciona como suporte para a memória, ou para guardar coisas de que gostamos. E que só na escola ela é vista como um recurso para ensinar a escrever, mas o caso que você relata comprova que ela está sendo utilizada apenas para manter os coitados dos alunos quietos e ocupados”.
Notando meu interesse o menino quis me mostrar outra coisa. Disse que um professor pediu para desenhar uma flor e ele não estava entendendo. A flor, conforme vi na página do livro, era a rosa dos ventos, imagem gráfica dos pontos cardeais. Então, fui lhe explicar sobre os pontos cardeais. Ele disse que pensava que o Leste se tratava apenas do gesto de virar o braço para a direita. Daí surgiu a necessidade de lhe explicar o movimento da terra ao redor de si mesma e ao redor do sol, bem como a duração de cada um, um dia e um ano respectivamente. E também que medimos uma linha em centímetros e um círculo em graus, já que precisava demonstrar que a cada 15 graus que a terra se movimenta passam-se sessenta minutos ou uma hora. Ele ficou muito curioso e perguntou sobre a Lua.
Então fui explicar que a Lua é um satélite da Terra, fiz um desenho tosco para que ele tivesse uma imagem da disposição dos planetas, explicando o que é órbita, e o fato de que permanecem a distâncias determinadas do sol, segundo uma ordem cósmica. De ime-diato, expliquei que não há desordem no Cosmos. Ele riu muito quando fiz trejeitos e emiti sons tentando imitar a dinâmica interna do Sol com explosões constantes. E que sem o Sol não existiríamos, nem vida alguma. Daí, ele perguntou sobre as estrelas, mas o meu tempo disponível havia acabado. Além disso, meus conhecimentos nessa área são muito elementares.
O menino possui todas as condições para a aprendizagem, ele faz as perguntas que se seguem num encadeamento lógico E eu fiquei pensando na possibilidade de pelo menos uma vez por semana, voltar a vê-lo e folhear seu caderno.
Uma aluna de faculdade um dia desses, me perguntou, durante uma aula de história: professora, qual é a diferença entre patriarca e patriarcal? Fiquei em silêncio, sem acreditar no que ouvira, por alguns minutos. Então respondi, fingindo que era uma pergunta adequada ao contexto da aula: patriarca é substantivo, patriarcal é adjetivo. Ela se calou, mas eu percebi, de imediato, que ela também não sabia o que é um substantivo nem o que é um adjetivo. Ela nunca estudou em Língua Portuguesa sobre prefixos gregos e latinos. Não com-preende derivação de palavras, não sabe a relação lógica que existe entre sujeito e objeto e as palavras para ela são coisas soltas e não peças de um sistema de classificação.
A maioria dos acadêmicos ingressos em instituições privadas cursou o ensino médio há muitos anos ou nesses ensinos médios noturnos que a mídia adotou para vender tecnologias para os governos em nosso país. Aqui, o governo extinguiu o ensino médio regular noturno, seja para economizar na folha de pagamentos, seja para contribuir com a capitalização da Fundação Roberto Marinho e outras. A justificativa é de que os alunos desistem e não há “aproveitamento”. O engraçado é que algumas pessoas do Governo vêm fazendo faculdades à noite, de Direito. Outras lecionam à noite, seja na Federal seja nas particulares.
Quanto aos acadêmicos de bai-xíssima renda fazem cursos cujas mensalidades são mais baratas. Comerciários na grande maioria, estagiários, desempregados. Agarram-se no curso superior como a última esperança de suas vidas. E padecem a dramática situação de não conseguirem fazer aquilo que o Estado não cumpriu em seus cursos de ensino fundamental e médio: a ler, seja em silêncio seja em voz alta, e a entender o que lê. São como turistas que compram passagem para um país do qual não sabem absolutamente nada, da sua história, dos seus costumes e muito menos da sua língua. Alguns desistem, outros, a duras penas conseguem superar o choque cultural ini-cial e passar a transitar no universo acadêmico com um mínimo de desembaraço. São os novos heróis. São combatentes. São essas pessoas que me dão orgulho de ser acreana.