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Existe uma nova classe média no Brasil?

Redução da expectativa de mobilidade social pelo aumento da escolaridade

         Diminuiu ou não a desigualdade social no Brasil? A mobilidade social está mais intensa ou não? Está se formando uma nova classe média? Como dizem os franceses, a porta da ascensão social está aberta ou fechada? O tema alimenta uma polêmica exaltada. Um bom parâmetro, porque incontroverso, é recordar que o Brasil se manteve, em 2009, como um dos dez países com maior desigualdade social do mundo segundo o relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) sobre o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) em 177 países.1 É importante acrescentar que o índice de Gini mede a diferença entre as rendas que remuneram o trabalho, portanto, não leva em conta as rendas do capital: juros e lucro. É uma informação insatisfatória para avaliar toda a dimensão da desigualdade.

          A formação de uma “nova” classe média foi alardeada pela mídia apoiada em um estudo feito por pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio: cem milhões de brasileiros teriam alcançado uma renda mensal  igual ou superior a R$1.200,00.2 O aumento da capacidade de consumo de uma parcela dos assalariados mais pobres é uma boa notícia, mas não é suficiente para demonstrar a formação de uma nova classe média.

           A elevação do salário mínimo acima da inflação, a ampliação da acessibilidade ao crédito e a redução do desemprego – associados a políticas públicas, como o Bolsa Família – parecem ter sido os principais fatores do aumento do consumo das famílias entre 2004 e 2009. Mas é um abuso concluir, por analogia com outros períodos históricos, que a mobilidade social estaria mais intensa. O consumo de bens duráveis e semi-duráveis, como automóveis e eletro-eletrônicos, não é adequado para demonstrar que teria surgido uma nova classe média.

Crescimento ou diminuição da classe média?

            A definição do que seria a classe média no capitalismo contemporâneo provoca grandes polêmicas sociológicas. O critério pode ser aferido pela ocupação profissional, ou seja, grosso modo, o lugar no processo produtivo, abraçado pelo marxismo. A classe média, em perspectiva histórica, era composta por pequenos comerciantes, artesãos ou proprietários rurais. Sendo muito heterogêneos, podiam ser identificados como membros das classes médias, no plural, para ilustrar a diversidade de sua inserção social. Os marxistas ampliaram a utilização do conceito de classe média para incorporar as novas camadas urbanas que se massificaram com a expansão dos setores de serviços que exigiam uma elevada escolaridade, os profissionais liberais. O conceito se vulgarizou na linguagem coloquial com as ambições de ascensão social que tornaram preconceituoso ou até pejorativo o pertencimento à classe trabalhadora, e passou a ser usado, também, para classificar todos os que, mesmo sendo assalariados, não realizavam trabalho manual.

          Outras correntes metodológicas preferiram identificar a estratificação social usando critérios combinados de renda familiar, escolaridade e consumo. São essas pesquisas que pretenderam identificar uma nova classe média em função do aumento do consumo que acompanhou o crescimento econômico, entre 2004 e 2008, e a expansão do crédito, sobretudo, na modalidade de crédito consignado. Estima-se classe média, nesse critério, famílias que correspondem a cerca de 52% da população.3

           A classe média dos países centrais se constituiu, majoritariamente, a partir de pequenos proprietários rurais. Ela foi importante para que mercados internos ganhassem escala. A concentração da propriedade da terra no Brasil foi, historicamente, um obstáculo para a formação de uma classe média de agricultores, com poucas exceções. Entre elas, a experiência dos colonos de origem européia no Rio Grande do Sul foi a mais significativa.4 A maioria da classe média brasileira foi beneficiada, na segunda metade do século XX, por dois processos que acompanharam a urbanização. Resumindo: (a) a industrialização tardia e acelerada levou à formação de dez grandes regiões metropolitanas, com pelo menos um milhão de habitantes, e a demanda por habitação impulsionou a valorização exponencial dos imóveis urbanos; (b) o atraso cultural e baixíssima escolaridade da maioria do povo, em condições de crescimento econômico, potencializaram uma enorme desigualdade entre os salários do trabalho manual, e os salários dos setores médios mais instruídos. Patrimônio valorizado e escolaridade mais alta, no marco de um processo de urbanização que, durante meio século, permitiu uma situação de pleno emprego, foram os fatores mais significativos para a formação da classe média brasileira. 

Duas tendências contraditórias

            Os dados disponíveis (estudos do IPEA, e da PNAD de 2008 do IBGE) informam dois indicadores que são incongruentes. A Pnad de 2008 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revela que, entre 2001 e 2004, a renda dos 20% mais pobres cresceu cerca de 5% ao ano, enquanto os 20% mais ricos teriam perdido 1%. Mas, nesse mesmo período houve queda de 1% na renda per capita, e o Produto Interno Bruto (PIB) não cresceu significativamente. Acontece que a evolução do PIB foi uma variável decisiva na história econômico-social do Brasil. A explicação para a redução das desigualdades estaria, segundo pesquisadores do IBGE, nos programas de distribuição de renda como, por exemplo, a cobertura mais universal da aposentadoria do INSS, e o Bolsa Família. Mas, ainda assim, o tema permanece controverso, porque existe uma subnotificação da renda da riqueza: rendimentos financeiros no Brasil e no exterior, ou aluguéis, por exemplo.5

          As informações disponíveis são contraditórias porque sinalizam tendências antagônicas. Por um lado, a participação proporcional dos salários sobre a riqueza nacional continua descendente, o que é claramente regressivo, acentuando a desigualdade entre proprietários de capital e assalariados. O total pago na forma de salários como proporção do PIB era, em 1995, superior a 35%, enquanto, as rendas do capital eram um pouco superiores a 31%. Dez anos depois, em 2005, as posições se inverteram. A proporção do total de salários no PIB é inferior a 31%, enquanto, a proporção das rendas do capital está quase alcançando 36%.6

          Por outro lado, a disparidade de renda entre os assalariados – as diferenças entre o salário médio do trabalho manual, o salário médio de trabalhadores em funções de rotina, e o salário médio dos assalariados com nível superior -, veio diminuindo nos últimos quinze anos. Os assalariados têm uma remuneração mais homogênea. Em resumo, a desigualdade entre os salários veio sendo reduzida. Este processo revela dinâmicas econômico-sociais contraditórias, embora não seja inusitado: a elevação do piso da remuneração do trabalho manual é positiva, mas a queda do piso dos assalariados com elevada escolaridade é negativa.

          A recuperação econômica, entre 2004 e 2008, teve efeitos positivos sobre a renda média das famílias. A redução da diferença entre o salário médio dos trabalhadores manuais, dos assalariados em atividades em funções administrativas de rotina, e dos assalariados com nível superior e responsabilidades de gestão intermediária parece ser uma tendência consolidada. O Relatório Mundial sobre Salários 2008/2009 da OIT informa que, se considerarmos o aumento do nível salarial médio, a América Latina e Caribe foi a região que registrou a média mais baixa de aumento, 0,3% ao ano, mesmo percentual registrado no Brasil no mesmo período.7

Mobilidade social menor através da educação

          O lugar da educação como instrumento de ascensão social foi sempre muito valorizado pela classe média brasileira, que se destacou pelo esforço de garantir a elevação da escolaridade para seus filhos. Os investimentos públicos em educação, proporcionalmente ao PIB, continuaram, contudo, baixos, embora tenha ocorrido uma pequena melhora nos últimos anos.8 Os sacrifícios da classe média para garantir uma educação superior de qualidade para os seus filhos têm sido, portanto, muito grandes, porque significaram financiar o ensino básico em escolas particulares, em função do funil seletivo dos exames de acesso às universidades públicas.9 O setor de educação privada expandiu e passou a ter uma expressão significativa sobre o PIB, a partir dos anos setenta e oitenta do século XX.10

          A classe trabalhadora, contudo, alimentou esperanças, incomparavelmente, menores. O orçamento doméstico da maioria das famílias proletárias não podia garantir as mensalidades do ensino privado. Permaneceu atendida pela matrícula de seus filhos na escola pública primária e secundária, porque a maioria da geração adulta já considerava uma vitória o simples aumento de escolaridade além daquela que tinham tido oportunidade. Essas expectativas parecem estar se invertendo.

          O esforço de garantir o acesso à universidade da geração mais jovem vem aumentando, entre os trabalhadores, mas a esperança, entre a classe média, de que uma escolaridade superior poderia ser um impulso para ocupações melhor remuneradas, parece estar diminuindo. Esse desânimo não é infundado: há algumas décadas o salário médio dos assalariados com nível superior vem em queda lenta. Mais de 80% dos brasileiros com cursos superiores completos trabalham em atividades diferentes, e até, distantes, de sua formação profissional.11 Este paradoxo parece intrigante. O crescente desalento da classe média sugere que as relações entre as taxas de mobilidade social absoluta e relativa estão mudando.

            A explicação para esta diferença repousa em uma experiência histórica da sociedade brasileira. Durante meio século, entre 1930 e 1980, ela conheceu uma mobilidade social absoluta significativa, comparativamente, à situação atual. Esse processo foi possível em função da acelerada urbanização que permitia a absorção massiva de mão de obra analfabeta ou semi-alfabetizada pela indústria. Mas a mobilidade social relativa foi estacionária, ou quase imperceptível e, essencialmente, restringida à classe média.12 Se analisarmos a origem social da maioria da classe média e, também, o que podíamos chamar o “repertório cultural” das gerações anteriores, veremos que, com raras exceções, uma grande parcela destes segmentos intermediários foi favorecida pelo aumento da escolaridade de um período histórico anterior.

           Esse fenômeno é chave para compreendermos a crise atual, porque foi excepcional. O padrão histórico dominante na história do Brasil foi outro. O Brasil agrário era uma sociedade de desenvolvimento econômico lento e grande rigidez social. Durante muitas gerações os antepassados da maioria esmagadora do povo brasileiro foram vítimas da imobilidade social e da divisão hereditária do trabalho. Os que nasciam filhos de escravos, não tinham muitas esperanças sobre qual seria o seu destino. Os filhos dos sapateiros já sabiam que seriam sapateiros. Os filhos dos médicos, ou engenheiros, ou advogados, mesmo se não tivessem propriedades, poderiam, em contrapartida, aspirar uma inclusão nos meios burgueses.

O período histórico que favoreceu a mobilidade social absoluta ficou para trás

         A contextualização em história é feita através de variados recursos, mas o mais importante é a periodização. A periodização está para a história como a lei de gravidade ou a relatividade geral está para a física, e a seleção natural está para a biologia. Delimita o sentido das pesquisas. Sem periodização a história não pode ser ciência. O seu objeto de estudo são as transformações que afetaram a vida social dos povos ao longo do tempo. Este tempo social é diferente do tempo cronológico, porque nem os dias, nem todos os anos, nem as décadas, e nem mesmo os séculos são iguais uns aos outros. O século XX, por exemplo, pela intensidade das mudanças que ocorreram, corresponde a vários dos séculos que o precederam.

          Periodizações são indispensáveis, portanto, porque a história se apresenta, aparentemente, como um fluxo contínuo de acontecimentos, ou uma sequência ininterrupta de eventos, com um ritmo definido pela nossa experiência física de dias de vinte e quatro horas. Houve épocas, no passado, em que civilizações que, por um período foram prósperas, depois sofreram longas estagnações. Há épocas, etapas e, sobretudo, conjunturas em que o tempo histórico se acelera. Os sistemas sociais conheceram eras de formação ou gênese, desenvolvimento ou apogeu, e declínio ou decadência. Quando as mudanças são inadiáveis, mas as relações sociais se mantêm intactas, as sociedades mergulham em crise. As crises econômicas assumem a forma de convulsões sociais irrefreáveis. A forma destas transformações na época contemporânea foram as revoluções políticas e, quando radicalizadas, revoluções sociais. Os ritmos da história são identificados na forma de periodizações. Periodizar significa classificar. Há diferentes métodos para se realizar classificações corretas. Não basta que sejam coerentes. A coerência é um dos critérios teóricos para se conferir a qualidade das periodizações, mas está longe de ser só por si satisfatório. Boas classificações exigem comparações que identifiquem semelhanças e diferenças entre as diferentes épocas, etapas e conjunturas, e expliquem quando e porquê as mudanças foram qualitativas. Toda periodização visa atribuir sentido. Periodizar é buscar um fio condutor de explicação na aparente confusão dos acontecimentos.

           A sociedade brasileira entre 1930 e 1980, mesmo considerando-se os limites impostos pelo seu estatuto subordinado na periferia capitalista, foi uma das economias com mais dinâmica no mercado mundial. Perpetuaram-se as desigualdades, por suposto. Mas, existiu durante cinco décadas um capitalismo com taxas aceleradas de crescimento econômico, enquanto se realizavam as tarefas históricas de urbanização e industrialização. Os dois processos foram simultâneos, ainda que não tenham tido a mesma proporção em todo o país. O certo, todavia, é que existiu mobilidade social absoluta para a maioria do povo, que ficou menos pobre e, também, também, relativa, beneficiando a classe média.

        O crescimento parece ter sido mais significativo que a escolarização, mas é provável que tenha ocorrido uma sinergia na confluência de causas. Logo, a promessa de que seria possível ir além dos limites do capitalismo agro-exportador, e fortalecer um crescimento apoiado na expansão do mercado interno e, portanto, viver melhor, através de reformas como uma educação pública universal – a percepção popular do nacional-desenvolvimentismo – era uma promessa que alimentava esperanças. Garantia alguma coesão social para a estabilidade dos regimes políticos. A força de inércia das ilusões reformistas repousava nessa história.

Vinte e cinco anos depois do fim da ditadura o balanço  é desanimador

         A expectativa de que o capitalismo periférico brasileiro poderia realizar uma regulação social do mercado, quando se encerrou a ditadura, era compartilhada por milhões. A experiência histórica, vinte e cinco anos depois, parece desanimadora. As poucas reformas desse período democrático foram efêmeras, transitórias e instáveis. Não se construiu um Estado de bem estar social. Como dizem os portugueses, o que tem de ser, tem muita força.

        Quando raciocinamos neste horizonte de perspectiva, verificamos que a economia brasileira perdeu o impulso que teve até os anos oitenta. A questão decisiva é que o Brasil é hoje uma sociedade econômica e socialmente congelada, comparativamente, àquilo que ela foi. A explicação fundamental deste processo parece ter sido a estagnação econômica entre 1980 e 2010 que se manifesta pela permanência da mesma renda per capita: duplicamos o PIB, mas duplicamos também a população. O capitalismo brasileiro do século XXI é um capitalismo com taxa de mobilidade social muito baixa, e a educação deixou de ser um trampolim social. O salário médio dos setores que alcançam uma escolaridade técnico-profissional como os operários qualificados, oscila pouco acima do salário médio. O daqueles com escolaridade elevada, ou seja, o ensino superior, mantém uma curva descendente contínua há mais de duas décadas: professores, quadros intermediários da administração pública ou privada, profissionais assalariados, como médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, etc.

               Todas as informações disponíveis confirmam que a possibilidade de se conquistar recompensas econômicas e sociais, ou uma vida mais segura e mais confortável através do esforço individual de uma educação maior está reduzida. Em outras palavras, a mobilidade social relativa está estagnada, ou retrocedendo. A razão de fundo deste processo foi a estagnação econômica. A crise crônica da sociedade brasileira já foi percebida, pelo menos parcialmente, pelas massas trabalhadoras, e mesmo pelas camadas médias, ainda que esse mal estar não se manifeste, como nos anos oitenta, em uma elevação da participação política. Os anos de suspiro entre 2004 e 2008, com seu crescimento baixo, foram recebidos com alívio por uma geração que vivia entre recessões longas e curtas. A função social da educação na sociedade é cada vez mais estabelecer a divisão do trabalho que vai permitir a perpetuação das relações sociais existentes. Ou seja, a educação não questiona as relações sociais, somente as perpetua.

               Uma outra forma de ilusão gradualista nas perspectivas de justiça social nos limites do capitalismo foi a esperança de que uma população mais educada mudaria, gradualmente, a realidade política do país. Se fosse assim, a Argentina ou a Coréia do Sul, dois exemplos de sociedades que conquistaram – a primeira na primeira metade do século passado, a segunda mais recentemente – índices elevados de escolaridade, não seriam infernos de desigualdade social para os trabalhadores.

           Todas as promessas de que a educação seria o instrumento meritocrático que permitiria que, nos países de inserção periférica, cada um tivesse a sua justa função na sociedade, tremeram com a crise dos ajustes neoliberais do final dos anos noventa, e começam a desmoronar com a crise de 2008/09. A ideologia de que cada um tem o lugar social que merece é uma ideologia reacionária, porque naturaliza aquilo que não é natural. Legitima o que é anti-humano. A ideologia que justifica que os capitalistas cumprem uma função indispensável; que defende que o direito de herança ilimitado de fortunas (não raras vezes maiores que a economia de nações) é justa; que argumenta que a desigualdade social é inevitável, e a escola é o instrumento que permite a seleção que justifica a divisão do trabalho, é percebida como um fatalismo por milhões de pessoas. Mas, ainda que em crise, esta ideologia mantém influência entre as massas – porque as ilusões reformistas não morrem sozinhas – em especial entre os professores, que são, paradoxalmente, um dos instrumentos sociais de convencimento de que a escola poderia mudar a sociedade.

           O que a história sugere, mas ela tem poucos estudantes, é que a transformação social não é possível sem luta. Se o capitalismo resistir às reformas distributivas, e a classe burguesa não estiver disposta a fazer concessões, a demanda social não fará senão aumentar, ou seja, a pressão objetiva de uma crise social insolúvel vai ficar mais forte, o que abrirá o caminho para a revolução brasileira.

 

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