Mobilidade social interrompida e permanência de escolaridade média baixa
Não é triste mudar de idéias. Triste é não ter idéias para mudar.
Barão de Itararé
Aumentou, permaneceu estacionada, ou diminuiu a desigualdade social na sociedade brasileira durante os dois mandatos do governo Lula? Esta questão tem provocado uma polêmica importante e, por enquanto, ainda confusa, obscurecida pelas pressões da luta político-eleitoral de 2010. Os defensores do governo Lula têm argumentado que estaríamos diante de um processo progressivo de maior mobilidade social. Tentam demonstrar esta conclusão pelo aumento de consumo de bens duráveis e semiduráveis. Esta posição corresponde ao senso comum sobre o tema. Conclusões apressadas, em problema tão controverso são sempre inadequadas.
Paradoxalmente, os defensores do governo têm admitido, também, com franqueza admirável que os ricos nunca ganharam tanto dinheiro como nos últimos oito anos, no que estão certos. Os informes do Bando Central sobre o volume de recursos do orçamento poupados para garantir o superávit primário, ano após ano, são incontroversos: todos os recordes foram batidos e quase R$1 trilhão de reais foram garantidos para os rentistas da dívida pública. A contradição irresolúvel entre os dois indicadores pode parecer intrigante, mas não é. É somente insustentável. Corresponde às necessidades da propaganda para diferentes bases sociais. Que o tema da desigualdade social permaneça obscuro, não deve servir para absolver posições obtusas. A desigualdade social aumentou mais aceleradamente durante o governo Fernando Henrique Cardoso que no atual, mas a tendência histórica de redução da desigualdade salarial entre os assalariados é muito anterior a 1994. O processo teve a sua origem nos anos oitenta.
É verdade que o Brasil passou por transformações nos últimos anos. Algumas mudanças foram progressivas – como a diminuição para metade dos brasileiros que estavam em estado de indigência, ou o aumento de jovens matriculados no ensino médio -, outras muito regressivas – como a desnacionalização da economia, ou a consolidação da privatização do ensino superior pelo ProUni -, mas é precipitado, no mínimo, discernir ainda quais são as mais conjunturais e as mais estruturais. Algumas, como a redução da taxa de fertilidade feminina (de 5 filhos por mulher em 1980, para menos de 2 em 2008) ou aumento da expectativa de vida (atingindo 71 anos em 2008), parecem consolidadas.1 Outras, como a redução do trabalho informal sobre o conjunto da população economicamente ativa não. O aumento do consumo de bens duráveis repousou em dois processos conjunturais: a redução do desemprego, entre 2004 e 2008, e aumento do acesso ao crédito, sobretudo, no segundo mandato de Lula. Os dois são circunstanciais, isto é, podem ser revertidos rapidamente em nova situação. Não são indicadores apropriados para sustentar que teria aumentado a mobilidade social. Por outro lado, o argumento verdadeiro de que as defasagens salariais entre os que vivem do trabalho diminuíram é insuficiente para provar a tese da maior mobilidade. É obtuso tentar argumentar que o Brasil ficou menos injusto, enquanto todos os indicadores macro-econômicos informam que os ricos ficaram mais ricos.
Estagnação econômica e decadência nacional
O argumento deste artigo é que a mobilidade social está, infelizmente, mais lenta que no passado, e não mais rápida. No intervalo histórico entre 1950 e 1980 a mobilidade social do capitalismo brasileiro foi muito mais alta do que nos últimos trinta anos, porque o país se beneficiou das “vantagens do atraso”. O Brasil da primeira metade do século XX era, anacronicamente, arcaico, mesmo em comparação com os vizinhos do Cone Sul. A passagem tardia de uma economia, essencialmente, agrário-exportadora para uma sociedade com mais de vinte milhões de consumidores de bens duráveis no mercado interno foi acelerada. O capitalismo brasileiro realizou a industrialização muito tarde, se comparado com países como a Argentina. Não obstante, o fez muito rápido, em pouco mais de cinco décadas.
O processo de crescimento econômico criou oportunidades de ascensão social geradas pela industrialização e expansão do setor de serviços O Brasil não se tornou menos desigual nesse período (o crescimento das favelas foi um dos traços desse processo), mas a espantosa miséria material e cultural diminuiu: reduziu-se o analfabetismo, aumentou-se a expectativa de vida, ou seja, elevou-se a acessibilidade à escola e saúde públicas. Desde 1980, o capitalismo brasileiro perdeu o impulso. A renda per capita parou de crescer. Enquanto duplicava a população de 50 para 100 milhões entre 1950/80, o Brasil triplicava o PIB. São já trinta anos de estagnação, em que passamos a ser uma sociedade de baixo crescimento, que acompanha com dificuldade a expansão demográfica. Quando o Brasil não andou para trás, andou para o lado.2
Hipóteses variadas de interpretação para este fenômeno regressivo já foram formuladas. Três grandes campos de interpretação estão na disputa ideológica. Simplificando, os liberais discordam entre si sobre quase tudo, mas estão de acordo em atribuir a lentidão quase catatônica da economia brasileira aos custos excessivos de um Estado demasiado caro e inoperante. Atribuem a superinflação dos anos oitenta à ausência de um ajuste fiscal de corte de gastos. Denunciam a expansão dos gastos sociais nos últimos vinte e cinco anos de democracia eleitoral, com políticas públicas como o direito à aposentadoria de milhões de pessoas que contribuíram para o INSS, reivindicando mais investimentos em infra-estrutura.
Os semi-keynesianos estatistas se dividem, também, em várias correntes, mas explicam esta estagnação quase vegetativa pela desastrosa conjunção de três fatores. Resumindo: (a) as pressões sociais internas, ou seja, a intensa luta de classes dos anos oitenta por uma melhor distribuição da riqueza nacional; (b) as pressões internacionais pelo pagamento da dívida externa; (c) a abertura comercial do governo Collor que destruiu o papel regulador do Estado e favoreceu desnacionalização e privatizações excessivas.
Os marxistas insistiram na idéia de que o destino do Brasil não pode ser compreendido sem uma análise da dinâmica do capitalismo mundial e das relações dos países centrais com os periféricos. O Brasil estagnou, enquanto a economia dos EUA teve dois mini-booms: um entre 1981/1987, com a expansão dos anos Reagan, e outro entre 1992/2000, durante os anos Clinton. O crescimento das décadas anteriores tinha sido articulado pelos investimentos estrangeiros, pelo papel do Estado que construiu uma imensa infra-estrutura e pelo aumento da poupança interna. A decadência nacional dos últimos trinta anos, em um país com o dinamismo do Brasil, um país de jovens, porque, sintetizando: (a) o Estado foi saqueado pelos rentistas que parasitaram a dívida pública; (b) a desnacionalização não foi suficiente para trazer investimentos estrangeiros produtivos, e agravou a crise nacional porque favoreceu uma recolonização da América Latina; (c) a burguesia brasileira não esteve disposta a imobilizar capitais na produção, em função das lutas de classes intensas dos anos oitenta e, também, porque duvida da potencialidade do mercado interno, mantendo uma parte de seus recursos fora do Brasil.3
Baixos salários e escolaridade média
Um dos fatores que deve ser considerado para compreender esta dificuldade de melhorar de vida tem sido a desvalorização salarial para os brasileiros de escolaridade mais alta. A dificuldade dos filhos terem uma vida melhor do que a dos seus pais, embora com escolaridade mais elevada, acontece, evidentemente, por muitos fatores. A mobilidade social maior ou menor obedece a processos estruturais complexos. Problemas complexos têm múltiplas determinações. Muitas variáveis, não somente o aumento nas vendas de automóveis, ou equipamentos eletro-eletrônicos, devem ser consideradas.
O mais importante é que o modelo de análise seja, historicamente, bem fundamentado, ou seja, estabeleça a comparação de bananas com bananas, e não com maçãs. Não se pode avaliar tudo aquilo que não é comparável. Indicadores como a variação dos níveis da atividade econômica, da taxa de desemprego, do salário médio, e suas correlações com a aquisição da casa própria, por exemplo, são alguns dos dados chaves para poder estabelecer uma percepção em perspectiva histórica. E depois deve se discernir o peso específico mais intenso de algumas causas sobre outras. Entre outros indicadores, o aumento da escolaridade parece ter deixado de ser uma variável qualitativa para o aumento salarial, confirmando que a dinâmica do capitalismo brasileiro continua regressiva. A decadência nacional iniciada com a estagnação dos anos oitenta não foi interrompida.
O aumento do salário mínimo e suas consequências
Parece interessante destacar, em primeiro lugar, que os dados do IBGE indicam que a tendência histórica de uma diminuição da participação do trabalho na riqueza nacional, que se iniciou na virada dos anos setenta para os anos oitenta, quando a moeda brasileira mergulhou em processo de super-inflação, não foi invertida. Os salários respondiam por mais da metade da riqueza nacional na década de setenta e, no intervalo dos últimos trinta anos, caíram para pouco mais de 40%. Esta variável é uma das mais significativas para uma avaliação da evolução da desigualdade social por várias razões. Primeiro, porque o Brasil de 2010 é uma sociedade que já completou a transição histórica do mundo rural para o mundo urbano (83% da população vive em cidades), e a maioria dos que trabalham recebem salários. É verdade que ainda existem milhões de brasileiros que vivem do trabalho e não são assalariados, mas são muito menos numerosos e, proporcionalmente, menos significativos do que há trinta anos atrás. Segundo, porque reduzir a desigualdade social foi, historicamente, muito mais difícil do que erradicar a miséria.
Duas tendências opostas no mercado salarial
Mas, por outro lado, parecem convincentes os dados que indicam que, dentro do universo dos assalariados, diminuiu a desigualdade social. Este processo ocorreu porque se verificaram duas tendências opostas no mercado de trabalho. Uma delas é, relativamente, nova, porque nos remete aos últimos quinze anos, e a outra é mais antiga, vem da década dos oitenta. Nenhuma delas nos deve fazer esquecer que o Brasil permanece um país de salários médios baixos, mesmo se comparado somente com países que têm uma localização semelhante no mercado mundial, o que já é, por si só, uma comparação arbitrária.
A primeira tendência foi uma elevação dos pisos salariais dos setores menos qualificados e menos organizados do proletariado. O salário mínimo veio se elevando acima da desvalorização da moeda brasileira de forma lenta, porém, contínua desde 1994 com a introdução do real. Este fenômeno foi novo, porque nos quinze anos anteriores tinha acontecido o inverso. O salário mínimo é uma variável econômica importante porque ele é o piso da remuneração das aposentadorias do INSS. Sua recuperação teve interações variadas sobre incontáveis outras variáveis econômicas. A elevação do salário mínimo, acima da inflação, de R$60,00 (aproximadamente US$100,00 de 2010), em 1994, para R$510,00 (aproximadamente US$270,00) em 2010, significou um aumento real de pelo menos 150% em dólares, embora um aumento real menor em moeda brasileira, em função de uma taxa inflacionária mais alta no Brasil do que a inflação nos EUA. De qualquer forma, este aumento diminuiu a distância do salário mínimo do salário médio nacional, porque este permaneceu, essencialmente, estagnado, próximo a R$1.200,00 (em valores monetariamente atualizados para 2010), o que contribuiu para diminuir a defasagem salarial interna entre as diferentes regiões, e desestimular a deslocalização geográfica que foi impulsionada pela guerra fiscal entre Estados e municípios.
A recuperação econômica favorecida pelo ciclo mundial de aumento da demanda permitiu, a partir do segundo semestre de 2005 e o primeiro de 2008, uma diminuição do desemprego e pressionou uma elevação do salário médio que conseguiu atingir, em meados de 2008, o valor que tinha antes da desvalorização do real no segundo semestre de 2002. A massificação da distribuição do Bolsa-família parece ter exercido, também, uma pressão sobre a remuneração do trabalho manual, sobretudo, nas regiões menos industrializadas, porque inibe a contratação de trabalhadores informais por valores inferiores ao salário mínimo.
A queda do salário médio dos empregos com escolaridade média mais elevada
A segunda tendência foi a permanência da queda nas remunerações dos trabalhos com exigência de escolaridade média e de escolaridade superior, um processo que vinha desde os anos oitenta. Comparativamente há trinta anos atrás, os salários médios de atividades no setor de serviços que exigem uma escolaridade igual ou maior que oito anos ou ficaram estagnados ou, na maioria dos empregos, caíram. O mesmo fenômeno aconteceu com até maior intensidade nas atividades onde existiu a exigência de escolaridade igual ou superior a quinze anos. Esta tendência histórica não é brasileira. Não é uma “jabuticaba sociológica”. É uma tendência amplamente conhecida, também, em outros países que chegaram tardiamente à urbanização e industrialização, e nos quais existiu intensa escassez de mão de obra com maior escolarização.
Pelo intervalo de uma ou duas gerações, enquanto não se consegue aumentar a oferta de mão de obra com escolaridade média e superior, os salários médios entre as três ou quatro faixas de crescente escolaridade foram muito diferentes. As diferenças superavam, facilmente, a proporção de 1 para 10 no Brasil dos anos setenta. Qualquer função que presumia nível médio tinha, em 1980, salário inicial superior a quatro ou cinco salários mínimos, e no nível superior tinha um salário inicial superior aos dez salários mínimos. A segunda tendência foi, portanto, a reversão dessa excepcionalidade.
Em conclusão: os dados disponíveis parecem indicar que o aumento da escolaridade deixou de ser um fator de mobilidade social tão importante como foi no passado. Nos últimos trinta anos a escolaridade média aumentou pouco mais de três anos. Um ano, por década, o que é muito lento. Temos uma escolaridade média para a população com quinze anos ou mais de idade de pouco mais de sete anos de escola. Todos os indicadores desta primeira década do século XXI parecem mais animadores, porque sugerem que até 45% da juventude com até 19 anos estaria completando o ensino médio. Mas, como partimos de uma base muito baixa, a escolaridade média evolui muito lentamente. Os mais velhos ainda pesam e tiveram muito pouco acesso à educação. Eis-nos diante do problema: a desvalorização da educação, com taxas elevadíssimas de evasão no ensino médio e superior, pode ser relacionada de forma convincente com a desmotivação de recompensa salarial? É possível estabelecer uma relação entre esta contextualização histórica da evolução salarial e a lentidão da evolução escolaridade? Os dados disponíveis sugerem que sim, que estas duas variáveis estão co-relacionadas.
Valerio Arcary
Professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia), e doutor em História pela USP.