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A Amazônia percorrida por Euclides e a vida de quem mora nela hoje

Euclides da Cunha escreveu no início do século passado que a Amazônia não estava preparada para receber o homem e o homem não estava preparado para a Amazônia. A frase é uma referência ao conflito travado entre essa natureza selvagem que dificilmente o ser humano conseguiria sair como vitorioso. Caso ousasse enfrentá-la, o homem teria que encarar as mais difíceis adversidades, como o calor, insetos, animais ferozes e a dificuldade de acesso aos serviços mais básicos e alimentos.
Passado um século, o homem continua a viver no meio da selva e pouca coisa mudou quanto à sua sobrevivência. É na floresta que retiram os medicamentos necessários a tratar qualquer enfermidade. Os hospitais estão a dias e até semanas de viagem pelos rios. Os serviços de atendimento médico pelos barcos das prefeituras ficam meses sem visitar as famílias.

A educação é precária. Nas poucas escolas existentes, crianças de todas as idades dividem a mesma sala de aula e o mesmo professor. Precisam andar horas e mais horas dentro de uma floresta perigosa para aprender um pouco sobre o mundo afora. Quando terminam a quarta série, precisam parar os estudos. A alimentação é a mais natural possível. Nos terreiros de suas casas cultivam a mandioca (alimento indispensável na vida do ribeirinho), a banana, o arroz e o feijão.

Comer carne somente a de caça ou de peixe. Entrar na floresta em busca de uma anta ou porco do mato nem sempre é sinônimo de voltar com o animal e preparar a refeição. A criação de galinhas é uma opção para garantir o almoço e o jantar de cada dia. No cardápio magro não pode faltar, lógico, a carne de jabuti ou tracajá. É um cenário não muito diferente do que Euclides da Cunha encontrou em 1905 durante sua passagem pela Amazônia.

Para Daniel Piza, autor de “Amazônia de Euclides – A Viagem de Volta ao Paraíso Perdido”, no tocante ao desenvolvimento humano esta região do país não mantém muitas diferenças do que o autor de “Os Sertões” encontrou nos primeiros anos do século 20. A viagem que Piza realizou pelo Rio Purus em 2009, junto com o fotógrafo Tiago Queiroz, serviu para traçar um paralelo da realidade hoje e daquela registrada por Euclides.

“A maioria dos seringueiros mais antigos é analfabeta, mas seus netos já sabem ler e escrever rudimentarmente”, observa. Completa Piza: “a questão socioeconômica é muito parecida com aquela época. Euclides retratava o abandono do homem da Amazônia com uma vida sem perspectiva, isso tudo continua igual, mudando somente as gerações”.  

Dos antigos seringais produtivos, hoje o homem da floresta sobrevive da agricultura de subsistência. Outra diferença é a presença indígena maior às margens dos rios. “A geografia humana mudou muito”. Às margens do Purus, Daniel Piza teve contato com as etnias Kulina e Kaxinawá. 

Sertanejos amazônicos
O principal objetivo de Euclides da Cunha ao explorar a Amazônia era escrever aquela que ele considerava a sua segunda obra vingativa. A primeira tinha sido “Os Serões”, quando ele mostrou ao Brasil o verdadeiro homem nordestino, o jagunço que defendia o arraial de Canudos. Euclides escreveu com riqueza de detalhes cada cenário daquela guerra entre o exército da República e o formado por homens maltrapilhos.

Ele morreu antes de finalizar o livro sobre a Amazônia. O título seria “O Paraíso Perdido”. Teria esta obra alcançado o mesmo nível de “Os Sertões”? Conseguiria Euclides da Cunha entrar na alma do amazônida co-mo na do jagunço e seu ambiente? “É difícil responder”, diz Daniel Piza. Para ele, Euclides encontraria vantagens e desvantagens.

Em sua obra-prima, completa, Euclides precisou uma guerra, esteve no campo de batalha. “Uma grande narrativa”. Já na Amazônia o cenário era outro. Não havia nenhum confronto; “o teatro era outro”. “A grande história da viagem dele pela Amazônia é a própria viagem”, destaca. Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas durante a expedição, como doenças, equipamentos e embarcações perdidas, alimentação escassa, não foram suficientes para superar toda a dramaticidade de Canudos.

Piza classifica “Os Sertões” como a primeira narrativa do jornalismo literário brasileiro. Segundo ele, os textos deixados por Euclides sobre a Amazônia já apresentam uma mudança de personalidade e estilo literário. “Ele usa frases mais sintéticas, com períodos mais curtos”. O autor dizia que “Os Sertões” era a obra de sua juventude, e “O Paraíso Perdido” da maturidade.

 

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