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O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE / CAPÍTULO XXI

Médio Amazonas
Estamos já no quarto dia de uma viagem insólita em que os personagens de importância real logo se fizeram tediosos, principalmente, porque dizem quase sempre a mesma coisa ou nada dizem, a não ser, esporadicamente, uns com os outros e quase nunca comigo.

– Ô raios! Caiu de novo o preço da borracha, na Europa e nos Estados Unidos. Onde vamos parar? Os seringais asiáticos estão dominando o mercado e nada de concreto podemos fazer, a não ser que o Governo brasileiro faça alguma coisa. – Foi o que disse o senhor Belchior Costa, talvez o mais ponderado e o mais informado dentre todos.

– O Governo brasileiro não sabe e não quer saber da existência desses trabalhadores que se penitenciam e morrem no meio da floresta, e também não dá a mínima importância ao empreendimento de estrangeiros de quem nunca ouviu falar. – Comentário descabido e besta, o meu. Nenhum dos magnatas sequer olhou para o autor destas frases para eles completamente desconexas e sem sentido.

Comigo, só o Tomás fala e já não com a mesma fluência e freqüência anteriores. São bem circunspectos, todos. Lêem bastante os jornais de Belém e de Lisboa. Há um com um exemplar de O primo Basílio, do Eça de Queirós. Uma senhorinha, também portuguesa, de nome Adelina, anda às voltas com um livro de poesias de Florbela Espanca, a musa do Modernismo de Portugal. Taciturnos, parecem estar sempre preocupados apenas com os negócios e não tanto com os filhos pequenos que enfrentam a viagem heroicamente, sem nenhuma reclamação. Vêem-me com indiferença. Também, desconfio eu que é por ser apenas um jovem aventureiro que não tem tanto o que conversar com aqueles senhores bastante amadurecidos. Eles jamais se disporiam ouvir-me. Sou realmente um menino na frente deles. Nada que parta desta alma apequenada despertará o interesse de gente tão graúda, pelo menos por enquanto. Certamente, eles ainda ouvirão falar muito bem ao meu respeito. Eu serei grande, apesar das circunstâncias, da gente e da terra inóspita. Quem viver verá.

Pedi ao comandante que deixasse subir ao convés superior um sujeito de média estatura, machucado pelo tempo, fraco de feições, amarelo despombalicido, mas tocador e dono de um instrumento de corda a partir do qual sempre nos chegavam aos ouvidos alguns acordes. Ele se fizera grato a mim por tê-lo curado de uma gripe apenas com uns limõezinhos que comprei em uma das paradas onde o Republicano pegou lenha e alguns víveres como carneiros, porcos e galinhas. Cortei os frutos em rodelas bem fininhas, machuquei-os bastante com um soquete, coloquei um copo de conhaque de alcatrão e balancei dentro de uma garrafa. Fiz duas vezes, o homem ficou duplamente bêbado por estar fraco demais, mas a doença  –  grave na Amazônia – se foi. Virei dotô. Uma bênção de Deus e uma graça para os necessitados, a partir de agora, o fato de eu saber ler, de cor e salteado, e entender muito bem entendido o que diziam as bulas dos remédios a eles vendidos a preços sem dó nem piedade. (Ora mais que essa! Aqui ninguém está para fazer graça ou ter piedade de quem quer que seja. Só eu!)

– Homem de Deus, aquele homem tá cheio de piolho! Tá fedendo! Os portuga não vão gostar dessa idéia. – Foi o que me disse o mestre com o espírito carregado de preconceito até a tampa.

– Deixe comigo. Já lhe arranjei um quicé com o qual raspará a barba. Dei-lhe sabonete e o homem tá novinho em folha. Além do mais, para a tripulação e para este que vos fala, trata-se de um meio de espantar a saudade. Deixa ele tocar a viola dele, Mestre!

Era já tardinha. Um resto de sol ameno achava tempero na brisa leve que varria o convés e espichava as vistas dos viajantes pra trás, no rumo da saudade que vinha de casa, lá longe, da origem de cada um. Tinham também aparado os cabelos do homem da música. Era hora de separar os homens dos meninos. O cabra, segundo o pessoal lá de baixo, deveria representar bem o seu papel de único artista único na ocasião. Só as calças é que davam pelo meio da canela, a camisa de cambraia branca estava amarrotada demais e, aos pés, as pragatas de couro duro de boi estavam um pouco sujas de lama da beira do rio. Mas era o que tínhamos. E tome aplauso!

Animação maior foi quando um dos portugueses lhe passou uma caneca de barro cheia de vinho do Porto. A viola delirava e o caboclo gemia de saudade e de paixão por uma zinha rameira que lhe houvera enfeitado a cabeça lá pras bandas do sertão do Quixeramobim. Aí ele acompanhou, de ouvido, um fado nunca visto ou ouvido a pedido de um dos convivas, o Antonino Mortes, que agora já cantava melancólico:

Lisboa querida já há muito que te deixo
Neste meu fado é que em ti penso e me vejo
Não vou voltar até que o meu amor me leve
Aí que saudades de um tempo ontem tão breve.

À noitinha, depois da janta parca, chamam mais uma vez o artista que acabo de lançar. É, novamente, a oportunidade de o sertanejo contristado tocador de viola fazer a sua apresentação. A função dele é aplacar as saudades dos lusitanos tão distantes da terra mãe, no dizer deles. O moço não conhece nenhuma letra nem nunca ouviu dizer que a música popular de Portugal é o tal fado. Muito triste. São lágrimas e nada mais.

Toca e canta só de ouvido, na base do talento puro. Cabisbaixo, contristado, ele sobe as escadas do convés superior com uma viola às costas. Tem um ar de infelicidade. Disse-me, enquanto chamavam as damas e as crianças, que, antes da paixão pela rameira, estivera noivo em Garanhuns, mas aquela com quem casaria falecera vítima de uma dessas febres que mata em um ou dois dias. Perguntei-lhe as graças. 

– Meu nome é Severino, seu moço. Severino Trapizomba Sobrinho.

– Mas é muita coincidência. Minha tia, no Ceará, falava da existência de um Trapizomba, conhecido seu, lá pras bandas de Juazeiro. É o mesmo? 

– Sim, é o mesmo, só que já falecido.

Depois, a pedido do senhor Adão Galo, o sofrido moço passou a pontear uma viola triste, quase chorosa, meio cantada, meio declamada. 

Encontrando-me com um sertanejo,
Perto de um pé de maracujá,
Eu lhe perguntei:
Diga-me caro sertanejo,
Porque razão nasce branca e roxa,
A flor do maracujá?  
Ah, pois então eu lhi conto,
A estória que ouvi contá,
A razão pro que nasci branca i roxa,
A frô do maracujá.
Maracujá já foi branco,
Eu posso inté lhe ajurá,
Mais branco qui caridadi,
Mais brando do que o luá.
Quando a frô brotava nele,
Lá pros cunfim do sertão,
Maracujá parecia,
Um ninho de argodão.
Mais um dia, há muito tempo,
Num meis que inté num mi alembro,
Si foi maio, si foi junho,
Si foi janeiro ou dezembro.
Nosso sinhô Jesus Cristo,
Foi condenado a morrê,
Numa cruis crucificado,
Longe daqui como o quê,
Pregaro cristo a martelo,
E ao vê tamanha crueza,
A natureza inteirinha,
Pois-se a chorá di tristeza.
Chorava us campu,
As foia, as ribeira,
Sabiá tamém chorava,
Nos gaio da laranjera,
E havia junto da cruis,
Um pé de maracujá,
Carregadinho de frô,
Aos pé de nosso sinhô.
I o sangue de Jesus Cristo,
Sangui pisado de dô,
Nus pé du maracujá,
Tingia todas as frô,
Eis aqui seu moço,
A estória que eu vi contá,
A razão proque nasce branca i roxa,
A frô do maracujá

Os cavalheiros e as damas fizeram um aplauso também muito triste, sem estardalhaço, vazio, quase uma melopéia. Uma senhorinha muito educada, de nome Alexandrina, esposa de Manoel Galo, disse com voz quase chorosa:

– É um lamento bem à moda dos de Portugal. Bem triste. Uma cantorina. Dá até vontade de chorar. – E chorou condoída, com a ponta dobrada do lencinho branco a enxugar-lhe os olhos, no ombro do esposo também pensativo, muito provavelmente com saudades dos pais que houveram permanecido no lado de lá do Oceano Atlântico.

Fiquei também muito pensativo, mas um pouco mais analítico. O que estes homens e mulheres têm na cabeça quando se aventuram em empreendimentos tão heróicos? Sim, porque é uma verdadeira epopéia, é como se fossem ou viessem da ou para uma guerra. Nenhum tinha certeza de um dia voltar à terra querida. Mas, enfim, é gente de uma coragem imensa. Se eu que saio do Ceará em busca de uma vida mais emocionante na Amazônia já morro de saudade da minha parentela que ficou distante, nos cafundós do Judas, imagine um homem e uma mulher, Manoel e Alexandrina, por exemplo, que, saídos do norte de Portugal, passaram mês e meio para atravessar o Atlântico e mais uma penca de dias para chegar à cidade quase vila de Xapuri, para montar o negócio dos seringais nos ermos mais distantes e sombrios da maior floresta do mundo, no Brasil. São verdadeiros mártires. É como no tempo das cruzadas em que os cristãos ibéricos, francos e itálicos atravessavam toda a Europa, a cavalo, para chegar à Terra Santa, Jerusalém, passando por todos os perigos, inclusive, por nações e guerreiros de outros credos religiosos cuja maior habilidade era decepar pescoços e arrancar crânios.

Por quantas dificuldades eles não passaram? No período da estiagem, ou verão amazônico, como o denominam, não se dão muito bem por causa do ar e do vento secos, além da friagem duradoura, de seis a oito dias, entre os meses de abril e julho, quando as temperaturas da região oeste amazônica chegam a baixar até os oito graus, ou menos, e o sol desaparece completamente. São repletas de características incomuns as intempéries, o clima, a nova realidade. E eles sofrem.
Na terra menor, construíram, junto com os sírios e libaneses, uma espécie de elite escorada nos compadres e comadres nordestinos que, na cidade, lhes prestavam os serviços menores na construção e arrumação das residências e das vidas cheias de um estilo português bem acentuado, inclusive com as telhas das casas vindas do Alentejo.

Certamente, os portugueses fizeram a sua parte gloriosa para o desenvolvimento do Acre, que ainda não é lá essas coisas. Eu os vejo caminhar por esta vida na busca de melhores dias para os seus. Eles merecem, sim, a homenagem destes brasileiros que os viram chegar e já se foram tornando amigos porque eles bem merecem o afago.

* José Cláudio Mota Porfiro – Este é o vigésimo primeiro capítulo do romance O inverno dos anjos do sol poente. Os demais podem ser acessados no www.claudioxapuri.blog.uol.com.br

 

 

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