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Drama da fome: Feridas abertas que os poderosos insistem em não curar

         As paisagens urbanas e rurais, através de sua geografia
humana, sobretudo nas periferias do capitalismo globalizado que marca
os dias atuais, vem sendo caracterizadas pelas manifestações
aviltantes cada vez mais agudas do drama da fome, as quais cristalizam
o significado da exclusão de grande parcela dos seres humanos,
espalhada pelos quatro cantos do planeta, a qual ainda não foi
beneficiada pelas conquistas tecnológicas e por sua capacidade de
gerar emprego e renda decentes que garantam melhores dias, formulando
de forma efetiva o real sentido da cidadania.
         Os donos dos meios de produção selecionam metodicamente
espaços que são e serão beneficiados pela ação do capital em suas
múltiplas metamorfoses e interesses, relegando ao esquecimento àqueles
que não interessam de imediato à reprodução das estruturas de poder.
São os espaços marginalizados que não servem a curto ou médio prazos,
muitas vezes também a longo prazo, aos propósitos definidos em
infindáveis reuniões temperadas pelo gosto refinado por dinheiro em
quantidade absurdamente estratosférica.
         Assim, cotidianamente milhares de pessoas são atiradas no
fosso da miséria, da pobreza e da fome, pois sem perspectivas de
melhores dias amargam a triste realidade do abandono e do infortúnio,
sendo submetidas à escravidão da falta de interesses dos poderosos que
as enxergam apenas como frios números das estatísticas que permitem
absurda maximização de lucros com interessante minimização de custos
para àqueles que são contemplados pelas benesses do sistema.
         Citando exemplo clássico presente nas distorções
inter-regionais brasileiras, indubitavelmente podemos afirmar que em
consonância com o despovoamento do campo no nordeste brasileiro
desponta de forma imperiosa o agrobusiness em determinados espaços
rurais previamente selecionados, dotado de tecnologia de primeiro
mundo. Em contrapartida, a agricultura familiar vem sendo notavelmente
prejudicada e desestimulada em razão que percentual significativo dos
investimentos garantidos pelas políticas públicas voltadas para o
agro, viabilizadas pela ação do Estado, destina-se ao sucesso da
produção agrícola concentrada em atender as exigências do mercado
externo a fim de gerar divisas para fomentar a política paternalista
que caracteriza a atuação do Estado em garantir os privilégios da
poderosa classe que detém o poder.
         Além do mais, os poucos recursos destinados ao fomento à
agricultura familiar não vem acompanhado de necessária e eficaz
instrução técnica que permita favorecer o sucesso da produção e da
comercialização agropecuária, não esquecendo ainda que existem graves
denúncias de corrupção envolvendo a destinação dos recursos para este
setor produtivo que garante inúmeros benefícios para suprir o mercado
interno, ao contrário do primo rico que se dedica a atender as
exigências externas cada vez mais sofisticadas.
         O resultado óbvio é o recrudescimento da situação de penúria
dos que sofrem com a intransigência da lógica do capital, avançando de
forma desumana as conseqüências trágicas da desnutrição. Crianças,
elos frágeis da teia maléfica montada pelo capitalismo, perdem a visão
por falta de alimentos, ficando apenas no couro e no osso devido à
ausência de proteínas que possam garantir a sobrevivência e
engrossando dia-a-dia as estatísticas referentes à mortalidade
infantil, motivada por doenças provocadas pela fome.

         Esqueléticas e famintas desfilam suas desditas pelos espaços
menos privilegiados das favelas, alagados, palafitas, pontes, campos
adustos, lócus urbanos sem infra-estruturas e outros locais usados
como moradias, pois sinônimos da ausência de compromissos, esses
lugares se constituem nos territórios da fome e das privações.
         Enquanto isso, os poderosos que mandam e desmandam não
demonstram nenhuma sensibilidade, nenhuma comoção, nenhuma atitude
concreta, que seja pragmática de fato, a qual possa reverter o quadro
surreal que vem tomando aspecto tétrico, cada dia pintado de forma
mais intensa com cores berrantes que revelam o drama da miséria e da
fome, da insensibilidade de parcela intransigente da humanidade
satisfeita e feliz com o esquema montado sobre privilégios.
         Recantos esquecidos espalhados na imensidão nordestina
abrigam populações famintas e desvalidas cujas condições de vida são
iguais às apresentadas pelos grandes bolsões de carência crônica do
continente africano, pois os indicadores sócio-econômicos teimam em se
repetir em cada amostragem populacional que busca revelar a situação
do povo brasileiro, embora saibamos que muitas foram propositalmente
maquiadas para atender determinados interesses.
         Mães aflitas, viúvas das secas e dos descasos, choram pelo
destino que o sistema relegou aos seus filhos, aos quais tudo é
negado, desde um prato de comida decente à educação de qualidade que
possa garantir-lhes um futuro melhor, com esperanças e felicidades,
não esquecendo ainda que saúde também é algo negado de forma injuriosa
e infame. A injustiça tornou-se palavra de ordem no imaginário dos
poderosos.    Historicamente a pobreza vem sendo tratada como caso de
polícia, pois exemplo disso temos na forma desumana como os aparelhos
repressivos do Estado trataram Canudos, como verdadeiro caso de
segurança nacional, simplesmente por que a sociedade alternativa
fundada no sertão baiano conseguiu superar os limites extremos da
exploração desmedida capitaneada pelo draconiano latifúndio que impera
desde a formação sócio-econômica brasileira.
         A intensificação do drama da fome foi profetizada e alertada
pelo cientista Josué Apolônio de Castro (Recife – 05/09/1908 – Paris –
24/09/1973) quando de sua magnífica campanha em prol da erradicação do
maior drama da humanidade, mas desde então nada foi feito, pelo
contrário, pois o problema ainda está sendo encarado como um tema
proibido, o qual escancara a mesquinhez contida na manutenção e na
reprodução das estruturas de poder que privilegiam poucos e humilham a
grande maioria excluída do complexo processo que caracteriza os dias
atuais.
         A ousadia e a independência de Josué de Castro, quando
denunciou a fome como flagelo fabricado pelos homens, foram
responsáveis por momentos ímpares na história da humanidade, mas que
infelizmente responsabilizaram-se também pelos momentos de angústia
que o levaram à morte prematura em seu exílio na França, imposto pela
intransigência dos militares que derrubaram o governo constitucional
de João Goulart, histórico herdeiro político de Vargas.
         Refletir sobre as bases do pensamento do importante teórico
nacional, reconhecendo a importância da atualidade de suas pregações e
defesas, é condição sine qua non para que busquemos lutar pela
superação dos aviltantes contrates que separam incluídos e excluídos,
contribuindo dessa forma para a consolidação de um mundo melhor, com
justiça social e harmonia para o gênero humano. Insistindo em não
curar as feridas abertas com o drama da fome, os poderosos do planeta
alimentam insatisfações cujas conseqüências poderão se revelar
imprevisíveis, pois a partir do momento que o grito dos excluídos
tornar-se mais intenso e estridente talvez a composição contida na
superestrutura não surta tanto efeito a fim de abafar as reclamações
que se avolumam de forma impressionante devido a ausência de amor que
vem sendo observada na conjuntura em que impera a ganância e a falta
de compromissos com a sofrida realidade humana daqueles que estão à
espera de olhares mais humanos e compenetrados com suas situações
desesperadoras.

* José Romero Araújo Cardoso. Geógrafo (UFPB). Professor-adjunto do Departamento de Geografia (DGE) da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Especialista em Geografia e Gestão Territorial (UFPB) e em Organização de Arquivos (UFPB). Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA – UERN).

 

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