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Mulheres que eu amei

Ela não é apenas ela, por si só. Ela é tão somente a representação de todas elas, de uma só vez. A deusa dos meus sonhos e musa da minha arte é real. Vive o meu condomínio e o meu cotidiano funcional pródigo e próspero, respira o ar do mesmo ambiente, sorri sorrateira e com bastante desdém. A pele é morena, os cabelos são pretos, longos e sedosos. Tem olhos amendoados e, parece-me, tristes. Mas é compreensivelmente feliz. Também, pudera! Aos dezoito anos, três quartos da humanidade goza a vida a plenos pulmões.

Um dia, então, fui atraído por um olhar furtivo da moça da primeira fila. Na outra semana, percebi vastos e insondáveis significados quando me fixava as pupilas brilhantes. Em um mês, nos olhos antes matreiros, já não havia tanta expressão. Havia interesse, sim. Interesses perceptíveis aos olhos de todos, inclusive dos mais afoitos, dos que, como todos, emprestam palpites à vida alheia. Por isto, em um quarto de hora, percebi-me apaixonado. Ela bem poderia ser aquela com quem é gostoso passar o tempo. Não apenas um tempinho, mas todo o tempo do mundo, deste mundo tão fatídico, desta vida esforçada e rica de tantos amores, tão transitórios e mais passageiros que a velha nuvem do poeta ainda novo.

Discutiu comigo alguma coisa sobre verbos transitivos indiretos e as preposições que lhes dão vida, e eu lhe falei de assuntos amorosos. Depois dessa conversa inicial e enfadonha, discutimos sobre o sexo. Dos anjos, é claro! Moça distinta, prendada, elegante e de boa família não se mete em histórias que culminam na tão famigerada conjunção carnal. Pensei, sim, cá com os botões da libido já abertos, em relações sexuais sobre a cama ou dentro do carro, temperado com suor e bastante prazer, como todo bom rapaz, mas ela insistia em falar de amor, como toda boa menina.

Em menos de mês, já tínhamos compromisso tácito, mas ainda não explícito. Ela falou das suas manias. Eu falei dos meus vícios e das minhas andanças em meio à cervejas e basilares. Em pouco tempo, já ditava normas sobre como devo me comportar. E eu, é claro, já dizia das minhas preferências e dos meus modos de empreender as tão famosas apelações do tipo ou dá ou desce, felizmente.

– Se você prestar bastante atenção ao que lhe digo, teremos uma convivência duradoura e pacífica, desde que não me proíba de ir ter com algumas moças que me satisfazem as necessidades biológicas em lascivos quartos de motel. Falou!

Disse, sim, porque, como sempre, eu nunca me dei ao luxo de deixar de ser verdadeiro. As mulheres, certamente, devem ser dotadas de tolerância e espírito pacífico, como também deveriam ser todos os homens. O diálogo não deve ser interrompido pela intolerância. Talvez já estejamos até vivendo a era de aquário, quando o equilíbrio dos humanos será a tônica e a força maior.

As mulheres que eu beijei – quase todas elas  –  tiveram de ouvir de mim este discurso cabotino, caviloso, severo, divertido, ladino, sacana até. Quem não gosta de diplomacia, principalmente, nas relações amorosas? Só não gostam as doidas varridas.

Aí, uma moça adentrou o meu local de trabalho estabanada e sem antes bater à porta. Sequer deu bom dia ou fez um meneio de cabeça, ou um sorriso forçado no canto do lábio. Nada mesmo.

– Eu quero é saber desse negócio de avaliação. Qual foi a nota que o senhor me deu? – Foi o que disse a destemperada Luzia não-sei-das-quantas.
– Bom dia para a senhora também. Eu não dou notas. Esta parte fica a cargo do seu chefe imediato. Apenas lanço-as no relatório. E, sim, queira me desculpar até pelo fato de eu ter nascido sobre a terra e debaixo do céu. – Foram estas as minhas palavras, ao que a moçoila abriu a porta com um safanão, deu-lhe um sopapo para fechar e se foi sem dizer adeus. Não fez falta. O ar, antes rarefeito e pestilento, de repente se fez puro, puríssimo.

No trânsito, em frente ao colégio onde estudam os meus filhos, uma mulher estacionou em fila dupla numa ruela estreita, e foi buscar a sua cria. Voltou dez minutos mais tarde, vociferou palavreado impublicável e deu algumas bananas (de braço) para os que buzinavam. Este não é um bom exemplo para a guria de mais ou menos seis anos, de quem era acompanhante, nem para ela própria enquanto humana bem vestida e montada num Mercedes Benz cinza.
Uma garota de doze ou treze anos, em frente ao mesmo instituto, aos gritos, proferia palavrões cabeludíssimos ao cumprimentar ou chamar uma amiguinha. A mim mesmo fiquei a perguntar sobre onde ela teria aprendido tudo aquilo? Conclui: em casa, com a própria mãe, que deve ser mais uma inominável e abjeta barraqueira.

Tenho ficado velho por fora, mas nunca por dentro. Quero ser eternamente jovem, todavia concordar com esse vandalismo cultural jamais conseguirei. Palavrão em boca de mulher bonita é como se ela estivesse com todos os dentes podres, o que vale para as feias também.

Não que haja a necessidade de uma moça jovem e bela penitenciar-se diante de um brucutu que até lhe esmurra. Não. O ideal seria que todas as mulheres bonitas fossem também inteligentes. Aí não haveria a necessidade de casar-se com um doido qualquer que a destrata física ou psicologicamente. Uma boa criação e uma boa faculdade dariam esse up grade de que tantas necessitam para não se verem na premência de sujeitar-se a relacionamentos que as fazem sofrer tanto. É tão interessante a autonomia feminina na modernidade quanto é cabível aos homens o respeito e a dignidade no tratamento para com elas.

Mas é conveniente voltar a ser dama, sem precisar tornar-se estátua de talco, como na poesia, sem nenhum valor mais positivo na cebaça.

O que o Millôr Fernandes disse vale também e muito especialmente para as mulheres: a diplomacia é a arte de discordar sem ser discordante. Para viver num mundo tão forte em contradições, é preciso, sim, muito jogo de cintura, muita manha. É conveniente ser maleável, entrar de leve e sair macio, sempre com a cautela que os casos requerem. É claro que em momentos especificamente mais graves, que são difíceis, uma boa dose de energia nos argumentos será conveniente. (Raríssimos, porque não costumo ter como companhia essas malucas de pedra.)

Nos final dos anos oitenta, uma mocinha um tanto fraca de feições foi minha aluna no terceiro ano do secundário e teve passagem brilhante. Fez em seguida vestibular e passou para o Curso de Economia da Ufac. Depois, num domingo à tarde, passados quatro anos, apareceu na minha casa pedindo que eu lhe revisasse uma monografia. Bem escrito o trabalho, a nota foi a máxima e ela se diplomou. O seu grande sonho se tornava realidade. Concluíra um curso superior e já estava trabalhando num órgão do Governo Federal, onde o salário subira consideravelmente depois de se tornar economista. Aí foi a hora de dar um mal passo. Casou com um sujeitinho mais novo que ela uns cinco anos e, logo em seguida, engravidou. E teve dois meninos e uma menininha no espaço de três anos, mais ou menos. É claro que a natureza não lhe fora favorável. Os seios e mais uns outros itens lhe caíram das prateleiras do tempo.

 Ela encolheu um pouco, murchou por dentro, mas comprou um carrão de luxo para o maridinho eternamente desempregado com o qual ele passou a sair todas as noites para a balada e com o dinheiro que ela lhe oferece, invariavelmente. O grande sacana namora uma vizinha que me foi apresentada enquanto noiva. Em síntese, a inteligência foi grande demais para o tamanho da cabeça de Aurora que, outro dia, me fez este relato quando eu caminhava com os meus gê-meos pelo Parque Tucumã.

É esse tipo de relacionamento que as fê-meas de bom senso evitam por todos os meios. Não consigo compreender porque uma mulher deve manter um relacionamento desse tipo só para dizer para as outras que é casada. Talvez seja por isto que têm dado tão certo os amantes que residem em locais diferentes. Um mantém a liberdade e o outro preserva a autonomia.

Aí, então, é oportuno rememorar frase tornada enjoativa do argentino Che Guevara: hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás. Nem na hora do jogo duro será necessário perder o respeito pelo outro que até pode ser um desafeto seu.

Afirmo-vos que não existe mulher feliz sem um cavalheiro educado e cortês ao lado. Da mesma forma que as melhores amantes têm no diálogo a sua força maior. São as fêmeas dialógicas. As grandes damas. As rainhas do lar ou do local onde trabalham. São estas as melhores da espécie, pérolas ou tulipas negras, as mais procuradas. É para e por elas os esforços redobrados dos homens que sucumbem ao poder da circunspecção. Aí eles se rendem, sim, e lhes enviam, além das flores, as chaves do cabriolet novinho em folha. Por isto é que vos garanto que a diplomacia e o tato ao lidar com o(a) parceiro(a) são a base para toda e qualquer relação entre gente que honre esta denominação. Gente que é gente, claro!

Muito bem diz Vinicius, o poetinha já morto: para viver um grande amor é preciso muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso, para viver um grande amor. Pô! Como esse cara consegue ensinar com tamanha didática?… O poeta vai além e eu aqui me permito uma paráfrase licenciosa, com as devidas escusas.

Para o poetinha, é sempre necessário ter crédito na loja de flores. Vai que um dia se está sem dinheiro e é preciso ser agradável à sua alma gêmea.
Não é bom ter mais de uma mulher. É preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro, seja lá como for. O corpo deve ser uma morada onde viva a mulher amada. Aí, o amante ficará de fora com uma espada para a proteção do seu amor. É conveniente estar sempre apaixonado, do contrário, a tendência é o desgaste. Na verdade, não existe amor sem fidelidade, pois quem trai seu amor é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor. Importa ser bem conhecedor de arte culinária. E não basta ser apenas bom sujeito, é preciso também ter muito peito, peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor. É muito importante também saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, estrogonofes, comidinhas para depois do amor. Nada melhor que ser bem cortês sem cortesia, doce e conciliador sem covardia e saber ganhar dinheiro com poesia. Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva desvairada não se souber achar a mulher amada – para viver um grande amor.

Duvido que alguém nalgum dia ouse ou consiga escrever algo tão interessante sobre e para ela. Mil perdões, por tudo!

* José Cláudio Mota Porfiro é escritor produtivo, mas não filiado à ABL, como o Sarney.

 

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