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Vida de menino pobre

Aprendi a pensar com o pessoal da engenharia. Foi assim mesmo. De início, passou por mim e ficou por dois anos um padre ranzinza que fazia partos em pobres mulheres pobres do seringal, consertava aviões, saía planando pelos céus e possuía uma motocicleta barulhenta do tempo da segunda guerra, vinda da Itália, de presente para ele não se sabe como. Depois, o diretor Higino aspergiu na minha alma gotas de competência e serenidade no trato com dinheiro alheio.

Aí, então, um agrônomo amigo meu, o Chico, ensinou-me os vieses da união da prática e da ação, ao sentimento e ao pensamento. Em fins da década de setenta, então, passei a conviver, por treze longos anos, com engenheiros civis que me ensinaram sobre como agir sem neurastenia, mas com competência, como resolver problemas caóticos em dez minutos, como iniciar e concluir debates e reuniões em não mais que meia hora de relógio pequeno. O tempo urge, a vida corre… Ergui, enfim, um bangalô ou vivenda de gosto refinado para dez entre dez deles.

Para se ter um retrato mal acabado da visão estóica e objetiva dos engenheiros, um dia, em viagem de estudos a Xapuri, pelo Projeto Rondon, findamos por ser convidados pelo alcaide municipal a um desses bailes glamurosos ditos do high society. E nós fomos tomando chegada da festa, assim como quem não quer nada e já querendo. Havia dúzias de moças sentadas às mesas sem que um cavalheiro se aventurasse a tirá-las para dançar. Nós, dignificados representantes da Ufac, éramos uns nove. No meio, dois professores. Um deles, codinome Dudu da Mangueira ou Barão de Belém, da porta do clube, em vista do harém que se desenhava à sua frente, estusiasmadíssimo, alegre feito periquito em barreiro, esfregou uma mão à outra e já foi dizendo:
Eu não quero nem que Deus me ajude; só quero é que Ele não me atrapalhe!

Depois de algumas investidas e contradanças, de bochecha colada às da diva de saias justas, segundo contam à boca pequena, o gajo intrépido e fagueiro findou por sentar-se ao lado da bela moçoila, dessas de parar o trânsito da nossa pequena e pacata Princesinha do Acre. E que trânsito!

Afianço-vos que fui amparado, na base, por parteiras e médicos afeitos a problemas de pobres mais saudáveis que doentios. Em garoto, comi mingau de araruta ou macaxeira, tripa, bucho e mocotó, bebi leite do peito da vaca, e andei descalço por caminhos cheios de tocos que não me estilhaçavam as unhas dos pés grossos e acachapantes. Proteína da boa vinha da carne de bichos do mato porque papai era exímio caçador noturno, inclusive de rabos de saia, e mamãe era cozinheira prendada nos quitutes da floresta.

Aprendi a ler em casa aos cinco de idade porque Regina, minha irmã, hoje falecida, era alfabetizadora de mão cheia. Depois, se tirasse nota menor que cinqüenta, levava porrada daqueles que em mim impregnaram, desde menino, caráter e ousadia na base do sopapo. Sou feliz por ter sido feito assim e os meus garotos taludos já não levam palmadinhas porque são fortes demais e a lei não deixa. Aqui em casa, com certeza, atitude e vergonha na cara são semeadas na base do cinto, sim senhor, como faziam os ignorantes lá de casa, os meus velhos tão queridos e tão saudosos, a quem devo de tudo um bocado a mais, inclusive a luz própria que ilumina a mim e a um punhado dos que dependem do que digo ou escrevo, aqui e ali, pelos becos e ruelas desta vida tão íngreme.

E veja o que vem a ser vida de menino pobre, isto, antes de arranjar a primeira namorada que, no dia em que soube do namoro com ela, deu por encerrado o romance quando ainda eu sequer havia chegado a garrote. (Na verdade, tia, as minhas letras não são tão toscas como nesta crônica. Sei ser refinado e até sublime quando quero, faço poesia e sei cantarolar baixinho, no banheiro, mas a alma é sertaneja, áspera e forte como a dos meus ancestrais, como Ariano Suas-suna, de onde brota inspiração como brotam as águas do igarapé Majoçá).

Ainda não tão passado na casca do alho, num dos dias de outubro de sessenta e nove, fui a passeio ao Seringal Filipinas, cujo gerente, à época, era um senhor branco, estatura mediana, careca, calmo e sereno, apelidado Paulista, apesar de ter nascido em Brasiléia.

Antes da viagem, fora ouvir de perto, em Xapuri, o que contava o vizinho Gregório Calisto, segundo quem, na curva do Rio Acre, havia um poção escuro, de trinta metros de profundidade, em frente à sede do seringal, onde morava uma cobra sucuriju mais grossa que três camburões, de uns vinte metros de comprimento. A bicha era desafiadora porque a cada dois meses comia um cavalo ou um boi.

Num domingo de 1942, então, segundo as mentes mais fantásticas do meu mundinho atroz, chamaram todos os seringueiros reunidos costumeiramente no barracão para a beira do rio. Lá já estava o Gaston Mota de posse de uma grande e grossa corrente com um anzol de vergalhão na ponta e um bezerro espetado. O anzolzão, da grossura de um cabo de machado, foi lançado n’água e a bichona logo abocanhou a isca gorda. Quando ela tentou ir para o fundo, a seringueirada – uns cinqüenta homens – agarrou a corrente e começou a puxar. A força foi tanta, de um lado e do outro, que o rio entortou, a cobra não veio e hoje lá há uma curva bastante sinuosa de onde, pela madrugada, ainda se ouve um esturro de arrepiar os cabras mais destemidos da região. 

Neste mesmo seringal, ficava a boca do Igarapé Filipinas onde, aos catorze anos, fui pescar de tarrafa, sozinho e Deus… Era outubro, as águas estavam barrentas e as arraias estavam chocas. Destemido, com água pelas coxas magras, de repente, senti o sopapo. Saí andando pela água arrastando um peso nos pés. Quando deu, consegui erguer o que me fazia gelar a alma. Era uma arraia do tamanho de uma bacia grande que, imediatamente, arrancou o esporão do meu rejeto com um cutruco. Eu subi o barranco me arrastando. Lá em cima, comecei a pular com uma perna só. Cálculos malfeitos, aconteceu que pisei numa ruma de merda de boi, infelizmente, o que veio para piorar a minha situação. Aí, então, depois de várias compressas de Antiflogestine, pegamos o barco com motor de popa e rumamos para Xapuri onde fiz curativo e, por doze dias, tomei vinte e quatro Benzetacil, ao fim dos quais fui a uma festa na Boate do Cabôco, no piso inferior da hoje denominada Casa Branca, calçado com sapato Verlon e de meia. Resultado: o local da ferrada apodreceu, eu fiquei mais um mês de perna pra cima, no hospital, tomei mais um monte de injeção e perdi incríveis dias da vida; inclusive perdi a Joana que nunca pensou em me enamorar.

Vida de menino pobre é uma pinóia. Qualquer brincadeira de perna-de-pau ou jogo de pião é como se fosse pilotar, hoje, um play station2, ou ficar abestalhado, no meio do mundo, falando sozinho e alto para uma engenhoca mínima chamada telefone celular.

Julho era o melhor mês do ano. O verão não era esfumaçado. Não tinha lama e vinham umas friagens de uns oito ou dez dias de tremer a alma em vista do frio que, inclusive, matava alguns despossuídos.

O rumo era o seringal, onde a curtição era garantida. Cortava cana, fazia moagem, capinava roçado, colhia látex, ajudava na defumação, tomava banho de igarapé, pescava, caçava de baladeira e andava a cavalo, este, um dos grandes prazeres devido o vento que cortava de açoite a cara cheia de pequenos arranhões.

A primeira experiência no turfe e no hipismo do seringal foi sobre um potro de nome Zéca que seguia a mãe, de nome Tutu, para onde quer que ela fosse tendo como ginete o meu bom tio Perneta.

– Amunta, Zé Craudi! – Foi o que ele gritou. E eu montei… E o animal saiu em alta velocidade mas, de repente, estancou, parou de uma vez… E eu voei por cima da cabeça do potro indo de encontro a uma tosseira de capim santo. A cara ficou mais ralada ainda.

– Vamo, cabra! Tu é muito é mole, menino besta! – E eu segui adiante de forma a que, no outro dia, já saltava com o Zéca sobre a porteira da pequena propriedade, como numa prova hípica de obstáculos no Hipódromo da Gávea.

Um dia, fomos à praia, aquela da Rua Major Salinas. O calor era grande e resolvemos cair n’água. Era sábado folgazão. Eu apenas me molhei e voltei mais uma vez a atenção para o meu papagaio empinado com linha zebra acima da última nuvem azul do céu de verão. O Motinha, meu irmão imediatamente mais novo, bastante afoito, não se conteve e foi mais adiante. Havia, bem próximo, uma ponta de praia, local do rio que repentinamente fica fundo. E foi ali que o garotinho peralta caiu e começou a afogar-se. O espírito prático me fez agir. Sapequei uma vara de canarana na água, o negrinho se agarrou a ela e eu o puxei, salvando-o do afogamento. Em casa, encarei D. Francisca que se esqueceu dos apuros que havíamos passado e deu-nos uma boa sova, de umas doze lapadas em cada um, com um cinto do velho estivador, o meu pai. Das muitas, talvez tenha sido a surra que me enfiou mais vergonha na cara.

Os métodos deles eram rudes, sim, mas surtiram um efeito incalculável e, lá em casa, ninguém se atreveu a seguir por caminhos indesejados, com as bênçãos de São Sebastião de Xapuri.

Num desses domingos de veraneio, ainda manhãzinha, partimos em expedição à pequena fazenda do tio José Maciel, ali pelas proximidades do Seringal Equador. Os adultos foram de barco e nós por terra. A falta de atenção e de costume com os caminhos que se cruzavam com as estradas de seringa, levou-nos a trocar uma coisa pela outra. Não observamos que, no verão, em vista do trabalho do seringueiro, as estradas são largas porque limpas ainda em abril ou maio e pelo uso quase diário. Enquanto os caminhos são meras veredas sempre meio tomadas pela vegetação rasteira que sobrevive na estiagem devido a sombra das árvores mais altas.

O resultado ficou entre o quase trágico e o quase cômico. Tomamos um rumo errado e nos perdemos no meio da mata. E como rodamos. Pior é que passamos umas três vezes por cima de uma árvore caída a fazer-se de obstáculo em meio ao caminho. Os mais novos já choravam. Os mais velhos  –  eu e o Aníbal  –  sentamo-nos sobre um toco e tentamos nos acalmar. O registro mais importante era o meu grito de socorro:

– Perdidôôôôô!

Saímos, então, numa clareira. Lá avistamos uma casa e um senhor que havia respondido batendo com o terçado no assoalho. A uns cem metros ficava o rio. Do lado de lá, a fazendinha.

Sobre quedas de árvores, prefiro não comentar muito porque foi numa dessas que o irmão Jorge, hoje falecido, despencou de um baita pé de graviola e ficou estirado no chão, desmaiado. A padiola foi mamãe, que rezava para que Nossa Senhora lhe salvasse o filho, enquanto corria com ele nos braços rumo ao hospital onde Irmã Rosa, mais uma vez, obrou milagre depois de haver me curado da ferrada de arraia.

É, meu bom! Vida de menino pobre é realmente uma grande aventura. Salve-nos Deus!

* José Cláudio Mota Porfiro é escritor dos quadros da Universidade Federal do Acre.

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