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A fome de Marina

Permiti-me porque fui autorizado, tendo em vista a campanha que se acirra, considerando o momento de júbilo por que passam os acreanos e o valor incomensurável do que me chegou às mãos. Quanta luminosidade em apenas um texto!

Não faz muito tempo, o grande Caetano Veloso desconsiderou do seu repertório eleitoral o presidente Lula dizendo tratar-se apenas de um analfabeto. Talvez seja por isso que o cantor baiano aderiu à candidatura de Marina Silva, que tem diploma de nível superior. E agora, como se não bastasse, a roqueira Rita Lee diz que nem assim vota em Marina para presidente, porque ela tem cara de quem está com fome. Resta observar que nenhum Silva tem saída. É do tipo se correr o Caetano pega, se ficar a Rita come.

Afirmações como estas são carregadas de preconceito porque foram feitas não por feirantes barulhentos, mas por artistas refinados, sensíveis e contestadores, cujas músicas nos embalam e nos ajudam a compreender a aventura humana. Eles não se afirmariam enquanto agentes de nenhuma espécie de conceito antecipado.

Num país dominado durante cinco séculos por bacharéis cevados e roliços, foram oficializados o canudo de papel e a obesidade enquanto requisitos indispensáveis ao exercício de governar, para o qual os Silva, por serem iletrados e subnutridos, estariam despreparados.

Caetano Veloso e Rita Lee foram levianos, deselegantes e preconceituosos, certamente. Ofenderam o povo brasileiro que abriga, afinal, uma multidão de silvas famélicos e sem escolaridade alguma.

De um lado, reforçam o conceito idiota e cartorial de que o saber só existe se for sacramentado pela escola e que tal saber é condição indispensável ao bom exercício do poder. De outro, pecam querendo nos fazer acreditar que quem está com fome carece de qualidades para o exercício da representação política.

A rainha do rock, debochada, irreverente e crítica, a quem todos admiramos, dessa vez pisou na bola. E pisou feio. Venenosa! Êh êh êh êh êh!/ Erva venenosa, êh êh êh êh êh!/ É pior do que cobra cascavel/ O seu veneno é cruel…/ Deus do céu!/ Como ela é maldosa!.

Nenhum dos dois  –  nem Caetano, nem Rita  –  têm tutano para entender esse Brasil profundo que os silvas representam. De Economia Política ou Direito Internacional Público, por exemplo, tanto Marina quanto Lula, têm muito o que ensinar a eles, isso, só para ficar em apenas duas áreas de domínio amplo dos representantes dos mal nascidos.

A senadora Marina da Silva tem mesmo cara de quem está com fome? Ou se trata de um preconceito da roqueira, que só vê desnutrição ali onde nós vemos uma beleza frágil e sofrida, com o seu cabelo amarrado em um coque, seus vestidos longos e seu inevitável xale? Talvez Rita Lee tenha razão em ver fome na cara de Marina, mas se trata de uma fome plural, cuja geografia precisa ser delineada. Se for fome, é fome de quê?

E aí cabe delinear o mapa da fome, em continuação ao que nos brinda e escreve o professor José Ribamar Bessa Freire.

A primeira fome de Marina é, efetivamente, fome de comida, fome que roeu a sua infância de menina seringueira, quando comeu a macaxeira que o capiroto ralou. Traz em seu rosto as marcas da pobreza, de uma fome crônica que nasceu com ela na Colocação Breu Velho, Seringal Bagaço.

Órfã da mãe ainda menina, acordava de madrugada, andava quilômetros para cortar seringa, fazia roça, remava, carregava água, pescava e até caçava. Três dos seus irmãos não aguentaram e acabaram aumentando o alto índice de mortalidade infantil.

Com seus cinqüenta e três quilos atuais, a segunda fome de Marina é dos alimentos que, mesmo agora, com salário de senadora, não pode usufruir: carne vermelha, frutos do mar, lactose, condimentos e uma longa lista de uma rigorosa dieta prescrita pelos médicos, em razão de doenças contraídas quando cortava seringa no meio da floresta. Aos seis anos, ela teve o sangue contaminado por mercúrio. Contraiu cinco malárias, três hepatites e uma leishmaniose.

A fome de conhecimentos é a terceira fome de Marina. Não havia escolas no seringal. Ela adquiriu os saberes da floresta através da experiência e do mundo mágico da oralidade. Quando contraiu hepatite, aos dezesseis anos, foi para a cidade em busca de tratamento médico e aí mitigou o apetite por novos saberes nas aulas do Mobral e no curso da Educação Integrada, onde aprendeu a ler e a escrever.

Fez os supletivos de primeiro e segundo graus e depois o Vestibular para o Curso de História da Ufac, trabalhando como empregada doméstica, lavando roupa, cozinhando, faxinando.

Fome e sede de justiça. Esta é a sua quarta fome. Para saciá-la, militou nas Comunidades Eclesiais de Base, na associação de moradores do seu bairro, no movimento estudantil e sindical. Junto com Chico Mendes, fundou a CUT no Acre e depois ajudou a construir o PT.

Exerceu dois mandatos de vereadora, quando devolveu o dinheiro das mordomias legais, mas escandalosas, forçando os demais vereadores a fazerem o mesmo. Elegeu-se deputada estadual e depois senadora, também por dois mandatos, defendendo os índios, os trabalhadores rurais e os povos da floresta.

Quem viveu da floresta, não quer que a floresta morra. A cidadania ambiental faz parte da sua quinta fome. Ministra do Meio Ambiente, ela criou o Serviço Florestal Brasileiro e o Fundo de Desenvolvimento para gerir as florestas e estimular o manejo florestal.

Combateu, através do Ibama, as atividades predatórias. Reduziu, em três anos, o desmatamento da Amazônia em cinqüenta e sete por cento, com a apreensão de um milhão de metros cúbicos de madeira, prisão de mais setecentos criminosos ambientais, desmonte de mais de mil e quinhentas empresas ilegais e inibição de trinta e sete mil propriedades de grilagem.

Esse é o retrato das fomes de Marina da Silva que  –  na voz de Rita Lee  –  a descredencia para o exercício da Presidência da República porque, no frigir dos ovos, o ovo frito, o caviar e o cozido/ a buchada e o cabrito/ o cinzento e o colorido/ a ditadura e o oprimido/ o prometido e não cumprido/ e o programa do partido: tudo vira bosta.

Lendo a declaração da roqueira, é o caso de devolver-lhe a letra de outra música  –  “Se Manca”  –  dizendo a ela: Nem sou Lacan/ pra te botar no divã/ e ouvir sua merda/ Se manca, neném!/ Gente mala a gente trata com desdém/ Se manca, neném/ Não vem se achando bacana/ você é babaca.

Rita Lee é babaca? Claro que não, mas certamente cometeu uma babaquice. Numa das suas músicas – “Você vem”  –  ela faz autocrítica antecipada, confessando: Não entendo de política/ Juro que o Brasil não é mais chanchada/ Você vem… e faz piada. Como ela é mutante, esperamos que faça um gesto gran-dioso, um pedido de desculpas dirigido ao povo brasileiro, cantando: Desculpe o auê/ Eu não queria magoar você.

A mesma bala do preconceito disparada contra Marina atingiu também a ministra Dilma Rousseff, em quem Rita Lee também não vota porque ela tem cara de professora de matemática e mete medo. Ah! A Rita Lee conseguiu o milagre de tornar a ministra Dilma menos antipática! Não usaria essa imagem, se tivesse aprendido elevar uma fração a uma potência, em Manaus, com a professora Mercedes Ponce de Leão, tão fofinha, ou com a nega Nathércia Menezes, tão altaneira.

Deixa ver se eu entendi direito: Marina não serve porque tem cara de fome. Dilma, porque mete mais medo que um exército de logaritmos, catetos, hipotenusas, senos e co-senos. Serra, todos nós sabemos, tem cara de vampiro. Sobra quem?

Se for para votar em quem tem cara de quem comeu (e gostou), vamos ressuscitar Paulo Salim Maluf ou Collor de Mello, que exalam saúde por todos os dentes. Ou o Sarney, untuoso, com sua cara de ratazana bigoduda. Por que não chamar o José Roberto Arruda, dono de um apetite voraz e de cue-cões multi-bolsos?

O banqueiro Daniel Dantas, bem escanhoado e já desalgemado, tem cara de quem se alimenta bem. Essa é a elite bem nutrida do Brasil…
Rita Lee não se enganou: Marina tem a cara de fome do Brasil, mas isso não é motivo para deixar de votar nela, porque essa é também a cara da resistência, da luta da inteligência contra a brutalidade, do milagre da sobrevivência, o que lhe dá autoridade e a credencia para o exercício de liderança em nosso país.

Marina Silva, a cara da fome? Esse é um argumento convincente para votar nela. Se eu tinha alguma dúvida, Rita Lee me convenceu definitivamente.
Passo-vos ao conhecimento apenas uma paráfrase por serem estas algumas ponderações que faço, devidamente autorizado, acerca do texto do professor José Ribamar Bessa Freire, coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Unirio.

* José Cláudio Mota Porfiro é escritor dos quadros da Universidade Federal do Acre.

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