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Melancolia

Boca do Acre, Amazonas. Defronte à edificação bem pintada de verde e no meio de uma relva surpreendentemente sadia e bem cuidada, está uma placa tosca onde se lê: Capitania dos Portos. Um homem de dois metros, de nome Gino, está a nos receber à porta. Dizem-no um fidalgo negro com nome de italiano. Estou deveras surpreso. O cidadão é realmente muito digno, na melhor acepção do termo.

Como uma atração circense, o crioulão paid’égua, já no meio da rua de terra, joga ou dança os seus cangapés e dá golpes de capoeira no ar. Trata-se de uma espécie de luta, que é também coreografia, praticada pelos escravos africanos desde a chegada destes à colônia brasileira. Gino, que teria vindo com os pais, hoje falecidos, do antigo Quilombo dos Palmares, tem família grande, garotos e garotas na escola, boa casa, emprego estável, segundo me conta um dos amazonenses da tripulação (rico em detalhes sobre a vida de muitos) que é amigo dele e aprecia a sua forma inteligente e cortês de ser e de se portar.

De repente, um salto. O negro dá três corcoveadas no ar e cai em pé, sorridente. Estou de queixo caído porque percebo que o homem já passa dos sessenta anos. É um ás dos esportes e, acima de tudo, um cavalheiro. Dirigindo-se à pequena platéia que optou por descer do navio, ele faz uso fluente da língua pátria, sem sotaque nenhum e com bastante altivez:

– Cavalheiros e damas! Esta é uma pequena cidade perdida na floresta. Seu nome é Boca do Acre. Sim, esta é a foz ou desembocadura do Rio Acre que já vem das cidades de Brasília, no Brasil, de um lado, e Cobija, na Bolívia. Passa também por uma cidadezinha de nome Xapuri, a partir de onde os brasileiros através do herói Plácido de Castro derrotaram o exército regular dos bolivianos e fizeram daquele mais um pedaço de Brasil. Daí, passa pela capital do Território Federal, a cidade de Rio Branco, e só depois é que chega aqui para um grande abraço com o Rio Purus, aquele acolá. – Diz, apontando com o queixo e o gigantesco indicador para o rumo leste.

Trata-se de um cicerone ou guia turístico no melhor estilo italiano. Fala em ótimo português e realmente impressiona pelo garbo e altivez sempre em camisa branca amarrada pelo meio e calças também brancas um palmo acima da linha do mocotó. Além do que vejo, segundo o tripulante que me acompanha em terra, o negrão é ainda exímio no nado e no mergulho. Já tirou o filho mais velho, o Doca, do abraço de uma sucuri ao empurrar nos costados da cobra um terçado afiado quando esta já levava o rapazola para o fundo do rio. Antes de tudo, um valente.

Do lado dele, agora, postam-se Nina e Cacheado, parte da prole do Gino. São realmente bonitos e, no futuro, penso, terão a compleição física do pai. Têm pele escura e vestem bem. O cabelo da garotinha é preto e liso, e o do menino é cheio de cachos, isto, devido à descendência indígena miscigenada, daí o apelido de família. Um fenômeno étnico racial jamais visto por mim!

À sombra de um pé de beijamin, um português de nome Desdemundo Moura serve-nos um café ralo com leite e tapiocas frescas. Uma delícia. O homem é muito amigo do Gino e dos lusos que comigo viajam. É baixo, o nariz redondo e apimentado, sua em bicas, ficará careca em um ano, o avental é sujo, mas os bigodinhos são cofiados a cada balançada na frigideira da tapioca, não sem antes passar mais uma vez a mão nas vestes. Sem nenhum resmungo, como poderia ser natural para um português nos trópicos ardentes, ele faz comentário acerbo sobre a sua desdita:

– Meu pai veio da região do Alentejo, Portugal, ainda em 1908. Fez fortuna, comprou embarcação e se foi para a cidade de Belém, onde negocia com couros e peles de animais silvestres. Eu fui ficando por aqui… Sabe como é que é, não é?… Família grande, crianças, muita carestia, a mulher sempre meio adoentada, poucos recursos, dificuldades maiores, chuva e sol, sol e chuva…

É preciso seguir Rio Acre acima, no rumo da venta, como dizem os sertanejos de lá e de cá. O pequeno relato anterior, mesmo agora, quase uma hora depois, ainda me mantém agastado. Como pode um pai largar um filho ao léu, aos vinte e poucos anos, só porque tem uma mulher e dois filhos? Parece-me um tanto rude. É o que penso.

O barranco é muito alto. A Vila que sedia o Seringal Antimari é hoje chamada Floriano Peixoto e tem umas quatro ruas, uma igrejinha e um cemitério de túmulos bem antigos. Na parte de baixo, quase rente ao rio, algumas casas comerciais dentre as quais duas bem maiores se destacam pela diversidade de artigos em exposição em vitrines de vidro bastante coloridas.

Pessoas se acotovelam no pequeno porto, uma espécie de trapiche trabalhado por bom marceneiro. Um pouco mais acima, à porta de uma das casas comerciais, está um homem alto e de barbas brancas, mas bem aparadas. Trata-se, segundo me informam, do Senhor Rodrigo Afonso, o homem mais rico da redondeza. Ao seu lado, perfila-se uma espécie de ajudante de ordens, um sujeito branco com cara de europeu, alto quase envergando que segundo sou informado, é o dono do seringal do outro lado do Rio Acre. Trata-se de Custódio Rabelo, homem de posses e também dono de mais um grande seringal. (A memória é como se fosse a de um dinossauro e as anotações são sempre rápidas e seguras, embora o papel seja de embrulho e o lápis, de carpinteiro, daqueles da ponta grossa.)

Desembarca, aqui, o francês Jacques Lamounier com a sua pequena tralha. Os cumprimentos, observo, são frios, como não poderia deixar de ser. Afinal, está de chegada apenas um estrangeiro desconhecido e sem história. Por que maiores cerimônias? Sabe-se lá de quem se trata! Rodrigo Afonso cumprimenta-o com um aperto de mão e um meneio de cabeça. O estrangeiro tem jeito de homem ponderado e inteligente e os dois seringalistas me parecem quase submissos ao porte físico  –  peito largo  –  e à maneira educada do recém-chegado. Ele sobe as escadas para a parte da cidade mais alta, onde estão as residências e a igreja do vilarejo. Uma porta se abre e não mais o vejo.

Um cidadão de nome Manoel Severiano sobe e atravessa seguindo pela prancha do navio. Embarca, então. Ele não está incumbido de revisar a embarcação. É passageiro que segue rumo a Rio Branco com a finalidade de comprar uma peça mecânica de um motor que gera luz para o pequeno vilarejo a partir das seis da tarde.

Sou, então, apresentado ao novo passageiro que é muito mais tripulante, segundo observo, pelo fato de ir direto para a casa de máquinas do navio.
Manoel Severiano de Oliveira, apelidado Badá, é um embarcadiço e mecânico das grandes máquinas dos navios que por ele são revisadas. Depois, algumas vezes mais o encontrei. De passagem, exercendo o seu ofício de marinheiro dos rios, em viagens até Brasília, Acre, nos cafundós do Judas, já na divisa com a Bolívia, ele muitas vezes encostou o seu batelão ou lancha no trapiche da Boca do Lago, carregada de víveres ou borracha ou castanha, para tomar um café e ter comigo uns dedos de prosa.

Tem oito filhos, quatro meninos e quatro meninas e um casarão de alpendre de madeira. Há pouco ficara viúvo, mas já está casado novamente. A primeira esposa tinha por nome Cecília. A nova é chamada Davina e é viúva de um português que lhe deixou dois filhos, agora, somados à prole do incansável Badá. Normalmente, fica uma ou duas semanas com a família e, depois, com os filhos sob a responsabilidade do cunhado Bazin, segue noutra tarefa que significa buscar e trazer mercadorias para o consumo do povo da vila, ou borracha, castanha, madeira, peles e carne de caça. É um ás na manga dos que exercem o capitalismo nos seringais da Amazônia. Sem esses corajosos, a economia da borracha não teria feito tanto sucesso. O Badá é um desses que caça, pesca, conserta motores, fabrica palhetas, faz lamparinas, revisa até a parte elétrica do motor que ilumina a Vila do Antimari.

Segundo reza a lenda, o velho pai do Mestre Badá, Antônio Severiano, um dia, às quatro da tarde, depois de deixar o látex para a defumação a cargo de um dos filhos mais velhos, foi em casa, bem próximo à boca do Rio Antimari, para tomar um gole de café. Lá chegando, a esposa do bom cearense, de nome Sabina, comunicou-lhe a falta da indispensável farinha para a janta que teria como iguaria principal uma pirapitinga de uns dezoito ou mais quilos, isto, para uma família de uns nove entes. O peixe tem gosto acima do excelente, mas como poderiam fazer o pirão escaldado tão tradicional entre os amazônicos? O nordestino não se fez de rogado, botou um calção e pulou, de facada, no rio e sumiu. A véia nem se preocupou, assim como os meninos que, em seguida, foram banhar-se na fonte de águas cristalinas e frias nascida junto ao pé de uma grande samaúma, a árvore mais frondosa e mais bonita, talvez, da Terra. Às seis e trinta, então, o corajoso já estava de volta subindo o barranco e já o sol se punha. Ele havia ido a Rio Branco, mergulhado na sombra de uma arraia e, agora, trazia três quilos de farinha da boa comprada numa daquelas biroscas próximas à Rua Seis de Agosto. Por esta peripécia puseram-lhe o apelido de Honorato Cobra Grande. Era antes de tudo um forte.

De outra feita, lá se foi o homem entrando casa adentro com uma enorme onça morta a terçado às costas. O piso era de alvenaria, assim como era atijolada a rua de Boca do Acre por onde viera carregando a bicha. Muitos viram os buracos que foram ficando, inclusive na residência, no lugar dos rastos do homem, em vista do peso descomunal da maçaroca da pata grande. Há, ainda, na cidade, garantias de quem realmente viu o caso acontecer.

Num domingo, então, Honorato pegou a repetição carregada e mais umas vinte balas num bisaco. Iria rapidinho a uma comida próxima, uma caxinguba ou manitê, em busca de um veado para o almoço dominical das crianças à base da espinhaçada cozida. Demorou que demorou porque foi caminhando varadouro adentro e não se apercebeu do quanto caminhara. De repente, a mata ficou escura de meter dedo no olho, mas ele continuou andando até sair numa clareira. Assombrado, apertou o passo, avançou uns vinte metros e olhou para trás. Viu então que houvera caminhado por dentro da carcaça de um imenso jacaré, desses de museu. Entrara a partir do ânus do bicho e saíra, vinte metros à frente, na boca do animal. Aí o homem sentiu muito medo e teve que fazer um  arrodeio longo por onde conseguiu chegar de volta à casa. As crianças já almoçavam três capões de estimação que há muito tinham deixado de ser galo. Foi essa, sim, a única vez em que Honorato teve medo de alguma coisa. Arre égua!

E a embarcação, agora, cortava as águas mansas e barrentas do Rio Acre acima.

– Que Deus me leve a vida ou que a vida me leve um dia a Deus! – Foi o que disse antes de pegar no sono fustigado por enormes carapanãs que mais pareciam besouros tanajuras.

Antecipadamente, fiz mal juízo e pensei tratar-se apenas de mais um pequeno lugarejo en-fiado no meio da Amazônia. Errei. A cidade de Rio Branco, Capital do Acre, está em início de construção, de um lado e do outro do rio. Uma igrejinha bem bonita, de São Sebastião, um colégio católico ao lado, um mercado bastante movimentado e recém-construído, um comércio bem evoluído nas duas margens, barcos com uma cobertura de tecido que atravessam o rio levando e trazendo pessoas e sonhos – as famosas catraias – uma praça arborizada, a silhueta de uma construção grande que, segundo dizem, será o Palácio do Governo. Não desembarco, mas aprecio tudo do tombadilho.

Aí desembarcam as freiras para, depois, segundo afirmam, seguirem para Xapuri, onde a Ordem das Servas de Maria Reparadoras está construindo uma escola e os padres Servos de Maria constroem uma igreja que um dia será muito bela.

Seguimos subindo o rio até o Seringal Benfica. Lá está localizado um pequeno monumento em alvenaria marcando o exato local em que Plácido de Castro, o gaúcho líder da revolta dos acreanos, foi tocaiado por uns invejosos da sua liderança e pelo fato de o mesmo ser considerado pelo governo da República como um grande caudilho.

Há lenha em abundância para o abastecimento das caldeiras. Já é quase noite. A janta, em terra, é uma delícia. O pessoal da classe alta come galinhas mortas agorinha mesmo, com farofa das tripas das mesmas aves. Há abacaxis e açaí. Como à tripa forra. Bebo, ainda, suco de cupuaçu, um maná dos deuses do meu completo desconhecimento. À janela de uma pequena vivenda coberta de cavaco, com plantinhas bem cuidadas em latas pregadas à parede frontal, uma moça morena de cabelos longos e olhos amendoados canta uma modinha:

No meu jardim tem uma rosa
Tem uma rosa no meu jardim
No meu jardim tem muitas flores
Foi meu bem quem plantou pra mim
Lá tem rosa e açucena
Tem cravo branco e até jasmim
No meu jardim tem muitas flores
Foi meu bem quem plantou pra mim.

Boa parte do tempo da minha vida ainda haverei de levar pensando na doçura daquela voz quase menina que me embala as fantasias. Muito dela lembra a musa dos meus sonhos, por quem meus sinos dobram, lá em Belém. Há alguma semelhança entre uma e outra, mas a de cá tem os lábios grossos e os mocotós roliços demais. Todavia, é bela, extravagantemente bela, e se chama Palmira.
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* Este capítulo é parte do romance O inverno dos anjos do sol poente.

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