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O menino de asas

O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE     CAPÍTULO XXVIII
Pensando bem, calculando melhor ainda, as colocações são imensas. O conjunto das cinqüenta, no geral, forma algo gigantesco. O Seringal Boca do Lago é um colosso. Os comboieiros e o patrão levam vinte ou mais dias para percorrer todas as vivendas, isso, sem ir às estradas de seringa, o que é papel do mateiro, homem de confiança que, inclusive, se incumbe da localização das novas seringueiras que passam a ser cortadas e delas colhido o látex.

Um menino de cabelos arrepiados, sarará, triste e pensativo, pernas de cambito, costelas à mostra, cara rajada, treze anos, espingarda à mão, percorre os caminhos do Seringal Boca do Lago. É caçador, pescador, mateiro e um bocado de tudo o mais. Busco conversar com ele porque o vejo enquanto alguém que não vive apenas no mundo da lua, como qualquer um da idade, mas pensa bem longe, longe demais, como um dia eu pensei. Ele me diz coisas interessantes sobre a sua experiência na casa do Tio Raimundo Nonato, apelido Perneta, o comboieiro que veio do Seringal Albrácia há cinco meses, mas sabe anotar na caderneta e já lidera o grupo. O menino João de Deus, sobrinho, é ajudante de tudo, fala pouco, como gente grande e aprendeu a ler no sopapo, mas quer um dia escrever coisas muito profundas, baseadas nos seus comentários.

O que diz o rapazola empresta dimensão magnífica, heróica, epopéica ao seu tempo de menino passado no Albrácia.

Para ele, a poeira é quase areia, de manhãzinha, nos caminhos e varadouros do campo e da mata. Pés descalços pisam-na e a sentem friinha. Há orvalho nas sororocas e mata-cavalos e cipós-de-fogo. A caminhada é ainda lenta e preguiçosa.

– Tenho treze anos, sou criado no mato e, em vista da pouca idade, talvez, ainda estou um tanto sonolento, mas sigo rumo ao serviço. As famílias dos comboieiros podem cultivar o que quiserem. O roçado não é tão longe. Eu e minha tia, uma indiazona grande e forte, levamos uma enxada e um terçado, cada um. O primo também de doze anos  –  Ireno  –  vai à frente portando uma espingarda calibre 28. Há tatu, paca, veado, onça, queixada, caititu, cotia, mutum, canção, jacamim e muitas imbiaras. A intenção é que nós menores revezemos a enxada que agora levo.

– De cima de um morrete, avisto a plantação. Aos meus olhos é gigantesca, e muito sozinha. Há mandioca de fartura. Há bastante cana caiana, algumas ainda pendoando. Há velhos pés de milho sobre os quais o feijão amadureceu. Há tocos e troncos de árvores mortas, enegrecidas pelo fogo do roçado, sobre os quais o gurgutuba já está seco e em ramas emboladas, pronto para ser batido. É julho no seringal.

– A grande roça de macaxeira deve ser conservada limpa a enxada, por obra das mãos grossas de minha tia, irmã de minha mãe, uma índia grande, bonita e de cabelos longos e brilhantes em banha de porco batida e perfumada. O feijão de arranca  –  gurgutuba  –  deve ser arrancado à mão, mas só a partir de amanhã, terça. Na sexta, cortaremos e transportaremos cana no lombo do Fogoso, um burro bastante dócil, quase preguiçoso, e, no sábado, faremos uma grande moagem para a produção de rapadura, mel, alfinim e açúcar gramixó… Bom é lembrar que a bóia, o pão nosso do almoço e da janta, fica por conta de Maria José, minha prima de sete anos apenas… Espírito e coração de valentes!…

– É terça de manhãzinha e o caminho orvalhado é o mesmo. São seis e meia e já estamos colocando a rama do feijão seco sobre uma velha lona. Às nove, de posse de cacetes de maçaranduba, passamos a bater na trouxa amarrada onde os feijões se soltam das vagens. A russara dá coceira no corpo inteiro do aprendiz da vida dura. É isso o dia todo e também na quarta e na quinta. Acabamos, enfim. Agora, tudo fica por conta da tia Nalgídia que, habilmente, sacode o gurgutuba no ar, a partir de uma peneira grande, com a finalidade de livrar-se dos restos de folhas e gravetos. 

– É sexta e a faina dobra porque, a partir das cinco da manhã, já é hora de ir para o roçado cortar a cana, cedinho, para pegar menos russara.  É muita cana. O burro Fogoso dá umas vinte viagens, cada uma, carregando umas cem ou mais. A tia foi cortar uma estrada de seringa e nós, meninos, de tarde, vamos colher o látex com o qual será feita uma bola de jogar e uns sapatos de seringa caprichados. O tio está azeitando as moendas e limpando o vasilhame a ser utilizado na moagem, inclusive o tacho.

– Dormirão no Morada Nova  –  nome da colocação  –  o Aprígio, o Arigó, o filho do seu Salvador e um peruano conhecido por Valvito. Chegaram já era tardinha para botar força na engenhoca.

– Às três da manhã faz um frio da peste, no dizer do tio Perneta. Porongas e lamparinas iluminam a madrugada. Os quatro homens se abraçam com a engenhoca; e haja força. Eu, o primo Ireno e o menino do seu Salvador ficamos pegando o bagaço para devolvê-lo à minha tia, esta, encarregada de, mais uma vez, enfiá-lo nas moendas gritantes. Às dez, a parte mais pesada está concluída. É hora do fogo no tacho. É a vez de a minha avó mostrar todo o engenho e a arte nordestinos para dar o ponto na garapa que vira mel. E é abelha pra todo lado! Agora mesmo uma me pega pelos beiços que logo ficam por acolá. Doeu que só o cão!

– Domingo não é dia de trabalho. É dia de divertimento. Por isto, a pedida é pescar no igarapé Miguel Doido. Fomos de manhãzinha… Comemos traíras fritas, fresquíssimas, com feijão e arroz. Dos deuses! Conversamos potoca, chupamos laranja e lemos folhetos de cordel sentados à beira da barraca. Agora, colocamos arreios em dois potros, para os mais novos. O tio monta uma égua quase dourada de nome Lalinha. Na primeira arrancada rumo à porteira, de repente, eis que a minha montaria estancou e eu fui cuspido indo ter com as fuças numa toceira de capim santo… Fiquei todo ralado… É pra aprender…!

– É domingo novamente – continua o menino de asas. – É bom chegar ao barracão do Albrácia aí pelas oito para uma pescaria no Rio Acre ou no igarapé Morro Branco, porque os adultos ainda não estão bêbados. Depois, a cachaça corre farta misturada ao cortezano e, lá pelas cinco quase seis, passou por mim um pai trambecando, com um garotinho de uns dois anos num jamaxi, uns três outros meninos ou meninas atrás, a pé em suas roupinhas quase andrajosas, e a ainda jovem mãe atrás da turminha tão triste… E pensar que o pai, naquele estado, está acostumado a atravessar as famigeradas pontes, no escuro, e as crianças também, inclusive, o que vai dormindo no jamaxi… Se morre, não sabe nem porque já está no céu e já tem asas… Ó Deus de misericórdia!

– Num desses domingos, um amigo meu, o menino do comboieiro Guilherme, de uns onze anos, campeava o gado e viu um seringueiro bêbado querendo atravessar o igarapé Morro Branco. O homem lhe disse que jogasse a corda amarrada na chincha do burro. Ele se amarrou pela cintura e saltou no igarapé em repiquete, pela última vez, o burro empacou, não saiu do lugar e o Zé Vaz morreu afogado deixando a mulher e oito filhos. Ó céus!
O parapeito é quase uma instituição seringueira, pelo que diz o menino. De tardezinha, aos domingos, é praxe ficar ali planejando não-sei-o-quê. Eles sonham em “derribar” a casa de palha e fazer uma nova, agora coberta de zinco, o sonho de qualquer morador da mata.

Fato é que, depois, a madeira foi comprada e serrada e o zinco foi adquirido junto à Casa Zaire, em Xapuri. O tio Perneta teria, enfim, a casa com que tanto sonhara. E tudo ficou aguardando o verão, época em que seria tornado rea-lidade o grande sonho. Mas veio o infausto. O menino Antônio, mais novo, de criação, acendeu um cotôco de vela por sobre uma barata cascuda. Esta, num piscar de olhos, subiu pelo barrote da casa velha, foi pela parede de paxiúba e, enfim, alcançou a palha. Pegou fogo a madeira. O zinco derreteu. O sonho ruiu. Fazer o quê!… Compraram uma casa “na rua”, em Xapuri.
– No aceiro do campo, perto da cerca, há uma cajazeira enorme, onde os meus tios depositam quase sempre um copo de cachaça e uma vela acesa em honra do caboclinho da mata, uma entidade dita espiritual em que a seringueirada toda acredita, apesar dos milagres de São Sebastião, o guerreiro que, lá de cima, nos livra da onça, da cobra ou da queda de uma ponte qualquer, estas, sempre feitas de um só troco de bacaba ou patoá ou jitó ou manitê… São tantas, principalmente no inverno…

– Atividade difícil também é cortar cavaco para o defumador. O instrumento é o machado sobre o qual também tenho alguma habilidade; mas o corte na árvore já derrubada deve ser milimetricamente calculado, a olho, de forma a que o cavaco saia perfeito para os fins que lhe cabem. Há uma certa árvore cujo lenho faz mais fumaça que as outras na hora da coagulação do látex. Vai-se pela floresta adentro até encontrar o bendito pé de breu rosa.

Todo o relato acima data dos dias da vida de duas famílias que, como tantas, sonharam que sonharam, mas realizaram quase nada ou muito pouco. Os igarapés, os varadouros, o verde, os roçados e aquela gente concreta, hoje, já não são os mesmos. Viraram defuntos que já não sonham mais, com raras exceções. O próprio barracão do Albrácia ruiu como também ruiu Raimundo Sargento, o primeiro proprietário da terra.

Tudo são coisas de um outro tempo, do 1900… Tudo por lá é, hoje, tão melancólico, principalmente, porque me vem à lembrança um excerto de 1859, de Robert Ave-Lallement: “impenetrável floresta ensombra a superfície da maioria dos rios e cobre imensas planícies de eterna verdura que, com as torrentes, oferecem a imagem do infinito”. Já não é bem assim…

Ainda segundo o menino de asas grandes:

– Antes tão rijo e sonhador, Raimundo Nonato, o velho tio cearense de Morada Nova, ficou cego devido a fumaça do defumador que lhe envenenou os olhos. Depois, emagreceu, arqueou pra frente, arranjou uma bengala e, enfim morreu, na Rua Major Salinas, em Xapuri. Com a velhinha, minha tia, um ano depois, aconteceu o mesmo.

São vidas de pessoas humílimas que também contribuíram com o seu esforço e o seu sangue para a honra e para a glória desta terra de caudilhos.

Categories: Cláudio Porfiro
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