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Erguer a dramaturgia: considerações sobre a adaptação de Levantado do Chão

Um ano após a montagem e duas temporadas na Usina de Arte, com um público aproximado de 3.800 pessoas, o espetáculo Levantado do Chão, de José Saramago, recebe, através das poéticas palavras de Juarez Dias, hoje em Portugal, uma emocionada homenagem. Suas memórias, despertadas pelo contato com a língua e as paisagens portuguesas, buscam registrar desde a idéia inicial da montagem, passando pela adaptação do texto, composição das cenas até o trabalho final.

 Quando se completa 1 ano da estreia da montagem teatral de Levantado do Chão, do romance de José Saramago, encontro-me em Portugal, especificamente em Lisboa, com acesso a suas regiões como Montemor-o-novo e Freguesia de Lavre (Monte Lavre), Évora, Pegões, espaços concretos e reais da narrativa do escritor Prêmio Nobel de Literatura. Realidade e ficção, paisagens, gentes e lugares. O acento da língua materna leva-me agora a reouvir o texto, reler capítulos, cenas e personagens.

De outro lado, há mais de ano, cheguei ao Acre, a convite da Usina de Arte João Donato e de Cida Falabella, diretora do espetáculo, para ministrar oficina de dramaturgia aos alunos do Curso de Teatro, seguindo-se à produção da adaptação do romance saramagueano para a montagem de conclusão daquele curso. Distante do Sudeste, de onde vinha, esse estado cercado pela imensidão amazônica traria a mim profundas e inesquecíveis belezas. Dessa forma, este texto trata das minhas memórias, de um encontro singular entre o Acre e o Alentejo descrito pelo autor, entre Brasil e Portugal, entre um texto teatral a ser produzido e o romance de Saramago, entre o grafado e o falado, entre o lido, o escrito e o vir a ser encenado.

Certamente, a escolha da Usina pelo primeiro romance premiado do escritor português tinha razões evidentes: Levantado do Chão narra a vida dos camponeses do Alentejo, acompanhando em primeiro plano a saga da família Mau-Tempo, que luta contra as mazelas da pobreza, da exploração do trabalho pelos donos do latifúndio, pela ocupação e exploração da terra. Iniciando-se um pouco antes da Proclamação da República em Portugal, que este ano completa seu primeiro centenário, e culminando na Revolução dos Cravos, quando o governo ditatorial de Salazar foi deitado a baixo, o enredo do romance é estilhaçado por lendas, casos acontecidos e inventados, falações paralelas, como rios que cortam e alimentam o vasto campo. Portanto, o trabalho de transportar esse romance para o palco viria deparar-se com a própria narrativa do Acre e suas questões parentais e também singulares, como os ciclos da borracha, os seringueiros, camponeses, a disputa política pela posse do estado entre Brasil e Bolívia, o assassinato de Chico Mendes – e muita, muita paisagem, como sentencia o escritor português na abertura de seu livro, exaltando o Alentejo: “O que mais há na terra é paisagem”.

Assim, tinha-se uma obra de 360 páginas, um elenco de quase 20 atores e 20 músicos a executar a trilha sonora, composta e arranjada pelo maestro Roberto Bürgel, e um projeto de arte e cidadania exemplar da Usina de Arte João Donato, capitaneada por Clarisse Baptista. Mãos à obra!
A oficina, primeira etapa do meu trabalho, tinha como premissa a experimentação e exploração do romance, de desenvolvimento de cenas objetivando o espetáculo. Entretanto, a complexidade do livro de Saramago e sua busca pela grafia da oralidade crua do povo alentejano, aliadas ao seu estilo de escrita virgular, levou-nos a mergulhar e vasculhar a obra de origem. Esse trabalho compreendeu leituras de capítulos do romance, exercícios de narratividade, almejando a embocadura da vocalização do texto, procedimentos de contação de histórias, visto que já se sabia tratar-se de um espetáculo bastante narrado. A oficina culminou em apresentação em praça pública dos alunos-atores contando algumas histórias extraídas do romance. Tratou-se, portanto, de um trabalho que buscou encontrar o ator e seu texto, de matéria literária, entre a escrita original, sua leitura e posterior vocalização.

A segunda etapa concentrou-se na adaptação do romance para a peça, partindo de experimentações da direção, improvisações e sugestões do elenco. Em diálogo constante com a diretora, traçamos uma estrutura cênica, que foi-se modificando ao longo do processo, selecionando episó-dios da saga dos Mau-Tempo, tentando concentrar o que num romance pode ser vasto e detalhado e que o teatro exige a compressão. A beleza da escrita de Saramago, e razão maior dessa escolha para o espetáculo, acredito, deveria ser a matéria-prima da dramaturgia. Optamos dessa forma pelo processo de edição, que preserva a grafia do texto autoral, operando sobre ele apenas cortes e reordenações.

Quando se trabalha um texto literário no teatro, tal preferência não deve limitar-se ao enredo ou à fábula, que por sua vez podem ser escritos por outrem, mas sim pela forma de contar, pela linguagem e suas idiossincrasias. De outra forma não haveria tanto sentido em se aproximar de uma obra de natureza tão aparentemente distinta daquela que se conhece como a da linguagem teatral. Dada a extensão do romance e sua enormidade de episódios, nomes e personagens, escolhemos escrever um prólogo para o espetáculo, apresentando os membros da família Mau-Tempo e suas características, assim como os demais personagens como os Bertos e D. Clemência (representando os donos da terra), a guarda (Estado) e o Padre Agamedes (Igreja).

Como exceção ao processo de edição e como recurso teatral importante para situar o espectador sobre o que ele iria assistir, tal prólogo levou-me a uma aproximação ainda maior com a obra de Saramago. Era preciso camuflar o autor na minha escrita, visto que esse texto não prescindia do livro e seria então exclusivo do espetáculo. Era necessário que o espectador imaginasse por um momento que essa primeira voz textual fosse do autor do romance que, em verdade, não o tinha escrito para o palco. Ambiguidades inerentes ao processo de transposição literária para o teatro, a voz do dramaturgo deve confundir-se com a voz do autor de origem, misturar-se com ela, perseguir uma unidade. Ser dois em um.

Outro procedimento para orientar o espectador foi organizar as cenas em quadros temáticos, titulando-os, capitulando a dramaturgia, que na sua concretude transformaram-se em estandartes apresentados ao público e criados pelos alunos do Curso de Artes Plásticas, seguindo-se de uma vinheta musical. Tal código se repetia e constituía a costura dramatúrgica, cumprindo sua função de anunciar o que está por vir, destacar, tão ao modo consagrado por Brecht. A música também cumpria função narrativa, com letras em sua maioria extraídas de frases do próprio romance ou criadas originalmente pelo maestro Roberto Bürgel, tendo sua materialidade explorada por tantos e distintos instrumentistas e cantores do Curso de Música, ao vivo, potencializando a ação cênica, arrancando o espectador de uma possível contemplação.

Narrar e encenar o romance. Erguer uma dramaturgia para levantarem-se do chão atores, diretora, dramaturgo, maestro, cenógrafo, figurinista, costureiras, produtores, assistentes, auxiliares, uma equipe numerosa disponível a contar uma história tão distante e tão próxima. Brasil e Portugal. Acre e Alentejo. Parentescos que se irmanam pela amplidão da paisagem, que é anterior ao humano e está além dele. Revendo o vídeo do espetáculo, ecoa em mim a vinheta musical “Terra”, vêm-me imagens de Sebastião Salgado e canções de Chico Buarque e Milton Nascimento, sons e imagens que evocam o Alentejo e a natureza que remetem à Amazônia e ao Acre, confirmam o prazer deste trabalho e o carinho dos amigos que deixei em Rio Branco e que comigo vivem em lembrança, emocionam-me a grandeza da Usina de Arte e Saramago.

Agora em Portugal, procuro o Levantado do Chão, a matriarca Sara da Conceição no manicômio em Lisboa, onde veio a morrer, cidade onde também veio trabalhar sua neta Amélia em casa de família. Saboreio um vinho verde produzido em Pegões, em cujas vinhas trabalhou Maria Adelaide, neta herdeira dos olhos azuis do protagonista João Mau-Tempo, filho de Sara. Vou à Évora, sento-me na Praça do Giraldo e imagino se foi dali que Saramago contou o comício contra os comunistas e em prol de Salazar, tendo como plateia camponeses obrigados contra sua vontade. De ônibus, voltando de Évora a Lisboa, vejo da janela Montemor-o-Novo, a que pertence Lavre, busco no que meus olhos veem a paisagem descrita no livro, penso no campo e no trabalho, em João Mau-Tempo, Manuel Espada, Sigismundo Canastro. Onde agora os personagens de Levantado do Chão? Por fim, ouço o Grândola Vila Morena na voz dos atores e cantores da Usina, música de Zeca Afonso, que se tornou símbolo da Revolução dos Cravos no 25 de abril de 1974, “neste dia levantado e principal”, por cujos versos, despeço-me:

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
(…)
Lisboa, setembro de 2010.
Juarez Dias é doutorando em Teatro pela Unirio, Mestre em Literatura pela PUC-MG. Sua última direção no teatro foi Atrás dos olhos das meninas sérias, da Cia. Pierrot Lunar, da qual é membro integrante e diretor da nova montagem, o romance Sexo, de André Sant’Anna.

 

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