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Assédio moral e preconceito racial

Aí, o poeta insano atirou a alma da mãe pela janela grave e sisuda rumo ao despenhadeiro profundo e nebuloso. Ela voou, voou, plainou, fez volteios pelo ar e lhe trouxe de volta do vale distante uma flor de pau d’arco e três ciriguelas caprichosamente brilhantes de tanta luminosidade. É que o bom anjo voltara ao lar depois das lágrimas do sepultamento. Não suportara ficar lá, no escuro, sozinha. O versejador meloso, piegas e agora já quase romântico, então, sem saber o que fazer, escondeu a alma da mãe debaixo da cama do quarto dos fundos da casa da rua das castanholas, em Xapuri.

E nem era setembro na hiléia verde. O céu azul, quase anil, sequer mostrava um pontinho branco que fosse devido à friagem seca que se abatera sobre a paradisíaca colônia da Praia Formosa, depois Praia do Inferno; tal denominação emprestada pelos habitantes do lugar tendo em vista a existência de uma cachoeira, quase corredeira, que fazia sofrerem os navegantes que, no verão, se aventuravam subir o Rio Acre no rumo das nascentes. O espetáculo da natureza era apreciado a partir do alpendre da casinhola de cavaco e paxiúba. Os batelões e ubás eram arrastados por duzentos metros através da praia e só assim conseguiam transpor o obstáculo natural. Como não havia estrada, a comunicação com a parte alta do rio era, obrigatoriamente, por água.

A praia se estendia por quase dois quilômetros numa curva que fazia um sacado tão fechado que parecia sempre prestes a tornar uma ilha aquele lugar cheio de bananeiras, coqueiros, jaqueiras, laranjeiras, de barulho de crianças e do cantarolar de Maria que, a plenos pulmões, entoava antigas canções de um Ceará hoje guardado num cantinho das lembranças da parentela, ou da raça lá de casa, no velho Baturité cheio de tantas esperanças hoje chegadas ao Acre.

 Eu tava na peneira
 Eu tava peneirando
 Eu tava no namoro
 Eu tava namorando.
 O vento dava balança a cabeleira

 Sacodia a saia dela no balanço da peneira.

Umas garças bicavam a areia fina lá onde o rio não mais permite brincadeiras de nenhuma criança, de nenhuma forma. É que na ponta da praia o rio fica repentinamente fundo e peixinhos recém-nascidos, bem na beirinha, fazem festa inocente enquanto bicos pontiagudos não lhes conseguem devorar. Há tetéus, ou maçaricos, sempre à mercê de um tiro de baladeira que os leve a uma caçarola besuntada com banha de porco e à espera da farinha de mandioca, o adereço e peça principal de uma boa passarinhada com arroz.

A pescaria da tardinha tinha como prêmio apenas duas e não mais que três matrinchãs ou curimatãs, retiradas do rio através de iscas de farinha de macaxeira em grãos, e pela força do arco e da flecha bem manuseados por caboclos amazônicos e ribeirinhos oriundos do Nordeste do Brasil. Na colônia, almoçava-se sempre galinha, ou pato, ou capote, ou carneiro, ou porco ou alguma carne de caça na mistura. À noite, a praia oferecia a possibilidade de uma atividade pesqueira: era o faxinar da soia quando, de posse de porongas de seringueiro, seguia-se pela água rasa a espetar com o terçado os espécimes semi-enterrados. Os rastros de onça não eram levados em conta uma vez que, segundo consta, elas têm medo do fogo da grande lamparina.

Depois da orla da praia, vinha uma faixa larga de canaranas, de vez em quando surpreendidas por uranas verdes, frondosas e espalhadas lambendo a praia; e, em seguida, era a mata entrecortada por um igarapezinho límpido e cheio de carás, jijus, traíras, jacundás, dentre outros peixinhos sempre prontos para a mesma frigideira d’inda agora.
Depois do setembro, então, veio o outubro e não poderia ser de outra forma. As dores e contrações foram apertando até que, enfim, Maria houve por bem mandar Arcelino chamar Maria, a parteira aparadeira que lhe ajudou a dar à luz Francisca, a terceira filha bela no dezoito do mesmo mês, que veio para homenagear o Santo pregador da humildade e autor da assertiva marcante segundo a qual
é dando que se recebe,
é perdoando que se é perdoado
e é morrendo que se vive
para a vida eterna, amém…

Corria o ano da graça de 1923. O resguardo tradicional de Maria contou com galinha da primeira pena em canja, e mais mutum caçado na floresta com o fito de dar sorte. Houve presentes de água de cheiro, lavanda, talco Orly, cueiros de murinho, roupinhas de crochê, sapatinhos de tricô, amém! Batizou a menininha o Bispo Dom Próspero Bernardi, à época, em desobriga pelos altos rios. Os padrinhos foram Mariana Praxedes e o esposo. Eis uma criança feliz!

Mas os tempos de bonança se foram e o pai veio a faltar-lhe. A vida dele foi ceifada por uma pneumonia que não respeitou a estrutura física mínima, as costelas que teimavam em sobressair e a tez pálida, meio macerada, esquálida, doente de muitos males, desde algum tempo.

Maria tinha um irmão, José, e um tio, Rai-mundo, que moravam em Xapuri e eram carpinteiros. Mas as coisas vieram a faltar para a família que já contava com mais três meninos. Um dia, Maria, uma mãe desesperada porque os filhos estavam com fome, resolveu jogar-se no rio cheio do mês de janeiro, e foi seguindo para a beira do barranco já rente à água. Lá chegando, ouviu o choro de Francisca, pequenina, que lhe chamava e lhe salvava de um fim muito triste, por afogamento. Então, ela voltou e chorou que chorou, mas rezou em agradecimento a Deus que lhe presenteou uma vez mais com a mesma vidinha parca e sem graça.

O irmão a acolheu na casa da cidade e as crianças foram criadas indo, inclusive, para a escola… Era a felicidade que voltava…

Francisca estudou as quatro séries iniciais em um grupo escolar instalado na hoje conhecida Casa Branca, em Xapuri. Aprendeu a ler e a escrever com aquela caligrafia desenhada dos antigos escrivães de cartório. Sabia as quatro operações. Em moça, lavava roupa para famílias mais abastadas da sua cidade natal, fazia tricô, crochê, bordava panos de prato e ia para a missa dominical sem falta. As preces pediam um futuro melhor que o passado.

O marido  –  pai do poeta  –  apareceu-lhe, como por acaso, trazendo-lhe já dois filhos prontinhos e chorões. Ele fora morar numa vilazinha contígua à casa de Francisca, com os dois garotos, o mais novo dos quais, o Marcos, com apenas ano e meio, parece-me. Depois de ouvir o choro deste por um dia inteiro, ela se apiedou e passou a tomar de conta das crianças, em sua casa, enquanto o pai, o Estivador, trabalhava. Deste desprendimento e deste amor exorbitante, então, como não poderia deixar de ser, veio um casamento de quarenta e um anos que rendeu cinco filhos homens e uma menina, a Socorro, que socorreu a mãe até o pôr do sol do último dia da vida desta.

O mais velho, de nome Manoel, prosperou e venceu na vida em vista do volume e da qualidade dos conselhos da mãe tão postiça e tão amada. O segundo não apenas progrediu como se fez um gênio pequenino de uma época áurea do Colégio Divina Providência. O poeta, irmão do meio, e mais o Mota e o Jorge engraxaram sapatos dos aquinhoados, venderam docinhos, salgadinhos, mingaus e refrescos aqui e ali, ou de porta em porta, para ajudar na sobrevivência de uma família numerosa, de muitos talentos e poucas posses.

Um dia, em Xapuri, à moda dos antigos romanos, perguntado sobre quem veio, quem viu e quem venceu, o poeta respondeu: todos, inclusive os vizinhos, os amigos da escola e toda uma comunidade que se fez feliz porque vivia e vive em estreita colaboração, sempre acreditando nas possibilidades dos outros e de todos, sem invejas ou injúrias, mas na certeza de que é o amor ao próximo que gera o amor à Princesa e à sua gente, de ontem e de hoje. 

Aqueles foram tempos de glórias. Estas são épocas de esperanças. Francisca se foi num oito de maio, o dia da coroação de Nossa Senhora assunta ao céu, bem próximo de completar oitenta e seis invernos prósperos e frutificáveis. Deixou à prole uma herança incalculável usada, hoje, com muito cuidado e probidade, para que muito dela continue sendo transferido aos netos e aos netos dos netos, na graça de Deus.

Os bens deixados são muito mais significativos porque espirituais. Deste legado intransferível, herdado pelos partícipes daquela mesa feliz, todos houveram muito bem por aproveitar e fazer prosperar a civilidade, o respeito, a retidão de caráter e a crença no futuro buscado a partir de algum talento, muita coragem, esforços madrugadores e vergonha na cara, como é tão comum entre os ín-dios xapuris da pós-modernidade.

– Deus te dê fortuna e felicidade! – Era o que diziam, pela manhã, à tarde e à noite, a avó Maria, a mãe Francisca e o Estivador, o miraculoso e heróico pai do poeta.
Tanto é o orgulho que nem mais cabe no peito ou na poesia.

* José Cláudio Mota Porfiro é cronista de Xapuri.

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