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Cuba: a última fronteira do socialismo

Chegar à Havana significa romper o ciclo do tempo. A modernidade das grandes cidades do planeta parece não ter chegado ainda à Capital de Cuba. Já na saída do Aeroporto Internacional José Martí a primeira cena parece insólita. Uma frota de carros parados com modelos que só existem nos museus dos automóveis ou nos filmes de época. O mais impressionante é que a maioria dos Fords, Builks, Chevrolets, Gordinis, Ladas, Pontiacs entre outros, fabricados nas décadas de 30, 50, 60 e 70 estão em perfeito estado de conservação e desfilam imponentes pelas ruas de Havana.
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Além disso, caminhões, furgões e outros veículos militares fabricados na antiga União Soviética, China e nos países do Leste Europeu foram adaptados para servirem de transportes coletivos à população e turistas. José Nuñes um mecânico de uma oficina estatal de carros define bem o quase milagre de tantos veí-culos antigos em perfeito estado de conservação: “Os mecânicos cubanos são mágicos”, diz ele. Nuñes revela que evidentemente não existem mais peças para a jurássica frota cubana: “Mas nós fabricamos as peças. Reinventamos e fazemos as adaptações necessárias. Aqui nada se perde, tudo se transforma”, ironiza.      

Por outro lado, o cenário urbano de Havana lembra o de uma cidade que acabou de emergir de uma guerra. A maioria dos prédios se encontra em péssimo estado de conservação. Mas o título de Patrimônio da Humanidade faz jus a um lugar que parece ter parado no tempo e não assimilado as transformações da globalização. O embargo econômico decretado pelo Governo Norte-Americano há muitos anos teve um efeito devastador sobre Havana. Mas apesar de todas as dificuldades de infra-estrutura e conservação, certamente, a Capital Cubana é uma das cidades mais bonitas do mundo.

Nem mesmo as dificuldades econômicas do país e a evidente restrição de condições para a manutenção do seu patrimônio arquitetônico conseguiu roubar o charme cosmopolita havanero. O caos urbano misturado a beleza e a alegria da sua gente forjaram um espírito diferenciado à população da urbe caribenha. O Oceano Atlântico banhando as encostas da Via Malecon, a sua principal avenida, emprestam uma luminosidade surpreendente ao sky line de prédios portentosos construídos nos mea-dos do século XX. Pela avenida litorânea desfilam uma diversidade de carros antigos e modernos que se fundem num colorido caribenho com pes-soas das mais diferentes raças. As descendências africanas e européias do povo cubano são notáveis na maneira com que se vestem.

No coração da cidade está Havana Velha com seus prédios construídos em diferentes épocas desde os anos colo-niais. Os varais com roupas estendidas nas sacadas dos apartamentos marcam a paisagem urbana e humana do centro nervoso da Capital Cubana. Ao lado de luxuosos hotéis internacionais que garantem um aporte de moedas estrangeiras precioso para a economia do país através dos milhares de turistas que visitam Cuba durante todo ano. 

A complexa economia cubana
A ilha caribenha fica a menos de 100 Km do litoral norte-americano. A Revolução Socialista jamais foi absorvida pelos mais diferentes governos que estiveram na Casa Branca durante os seus 53 anos. O embargo econômico dificulta o desenvolvimento do país e obrigou os seus líderes adotarem uma medida extrema em relação ao seu principal produto: o turismo.   

Circulam no país duas moe-das, o peso cubano e o peso convertível para os estrangeiros. O custo de vida para os cubanos é muito baixo. O Governo Socialista subsidia a maioria das despesas da população através da venda por preços insignificantes dos produtos de primeira necessidade como a alimentação básica e os insumos de limpeza. Um trabalhador cubano ganha em média entre 17 e 30 dólares, menos de R$ 60 por mês.

A maioria da infra-estrutura turística é estatal. Desde os hotéis, restaurantes até os táxis pertencem ao estado. Alguns têm economia mista e são compartidos em forma de sociedade entre o governo cubano e os empresários. O turismo é principal forma de garantir lastro cambial à economia cubana.

 Mas isso acaba criando alguns conflitos. Para se ter uma idéia um táxi do Aeroporto até a zona principal de hotéis na Via Malecon custa 25 pesos convertíveis, cerca de R$ 50. Ignácio, um motorista da Cubatáxi, revela que ganha 18 dólares por mês. Isso significa que apenas uma corrida é suficiente para pagar quase dois meses do seu salário. O lucro vai para o Estado que utiliza para os subsídios de sobrevivência da população e investimentos em saúde pública e, sobretudo, educação.

Perigosas contradições sociais
Em tese um sistema que privilegia uma educação acessível a todos e uma excelente saúde pública parece perfeito, mas na prática situação se complica gerando sérios problemas sociais. Muitos cubanos preferem orbitar em torno do turismo a troco de propinas pela prestação de serviços de guias, informantes ou mesmo aplicando pequenos golpes nos incautos. Algumas mulheres acabam se prostituindo atraí-das pelo desejo de consumo inspirado nos filmes, revistas e telenovelas do mundo capitalista. A moeda cubana dolarizada acaba se convertendo num perigoso objeto de desejos sem precedentes para parte da população que não quer viver de acordo com o regime socialista. Durante o 32* Festival do Novo Cinema Latino Americano, recém terminado, o filme cubano, Eva-Havana, retratou essa situação com sutileza.        

  
No entanto, vale ressaltar que Havana que tem uma população estimada em quatro milhões de pessoas está longe de ser uma cidade perigosa. É possível caminhar por suas ruas e avenidas com uma segurança incomum em relação a outras grandes cidades do mundo. A criminalidade se resume a pequenos golpes e a prostituição que acontecem num âmbito restrito. Mesmo assim, sem a violência tradicional das grandes metrópoles planetárias.

Magia da noite havaneira
As praias centrais de Havana são inadequadas ao banho de mar devido as suas encostas de corais. Por isso, a noite é a maior atração para o visitante da cidade. Soma-se a musicalidade natural dos cubanos com a existência de uma infinidade de teatros, boa-tes, cabarés e casas de show e se terá uma das melhores vidas noturnas da América Latina. Desde lugares espe-cializados em salsa até salas com sofisticadas jazz sessions existem opções de entretenimento noturno para todos os gostos em Havana. Sem falar nos cinemas, teatros, museus, restaurantes, galerias e bodegas variadas. Tudo acontece de domingo a domingo até a madrugada. Os estabelecimentos de entretenimento havaneiros não costumam fechar.

Uma escola médica de solidariedade aos povos
Talvez um dos maiores legados do sistema socialista cubano seja a Escola Latino Americana de Medicina. Criada nos anos 90 depois de uma catástrofe natural na Guatemala, a Elam, tem como principal objetivo formar médicos para atuarem em regiões empobrecidas da América Latina. Milhares de estudantes das três Américas, inclusive, dos Estados Unidos aprendem medicina totalmente subsidiados pelo Governo Cubano.

Nascida no Pará e militante do movimento social das mulheres numa das regiões de maior conflito da Amazônia, o Bico do Papagaio, Ana Lúcia Nunes, de 24 anos, estuda medicina na Elam há 3 anos. Originária de uma família com 14 irmãos, todos criados na zona rural de Marabá (PA), seria quase impossível para Ana Lúcia ter a oportunidade de estudar medicina no Brasil. As faculdades particulares são muito caras e nas públicas os vestibulares favorecem os estudantes que puderam estudar em colégios particulares com nível mais elevado de ensino.

Por isso, quando através do seu movimento social ligado ao MST (Movimento dos Sem Terra) ofereceu-lhe à oportunidade Ana Lucia não perdeu tempo. “A Escola de Medicina tem um conteúdo fantástico. Estudo o dia inteiro, tenho alimentação, alojamento e o Governo Cubano me paga uma bolsa de 100 pesos mensais (moeda nacio-nal). Quero me formar e voltar ao Brasil para continuar atuando na Liga Camponesa de Mulheres”, promete.

Ana Lúcia revela que na Elam estudam 4200 alunos, muitos deles do Acre. “Indígenas e acreanos ligados aos movimentos sociais estão se formando em Cuba. O interessante é que o foco da medicina cubana é voltado para o social. O ser humano está em primeiro lugar”, conta. Ana Lúcia também lembra que os alunos ligados aos movimentos sociais brasileiros costumam se reunir regularmente para não esquecerem a motivação de estar estudando no exterior. “Isso é uma missão que temos que cumprir superando as adversidades, principalmente, a distância da família e dos amigos”, confessa.

Segundo a estudante brasileira o nível educacional da Elam é altíssimo. “Tenho uma professora de bioquímica, Cardella, que ganhou o Prêmio Nobel. Recebemos todos os livros gratuitamente e nem uma Xerox nos pedem. Creio que a Elam é o maior investimento social do Governo Cubano que beneficia milhares de jovens de origem humilde de todos os países. Certamente um dia a humanidade vai reconhecer uma ação de tanta generosidade e solidariedade dos cubanos com os países pobres do planeta”, finaliza.  

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Angel Barroso, de 92, anos, militante comunista

Velhos comunistas anseiam por mudanças
A melhor maneira de entender o sentimento dos cubanos é conversando com as pessoas. Ninguém fala sobre mudanças políticas no país porque ainda existe um respeito e uma veneração enorme por Fidel Castro e o seu irmão, atual presidente, Raúl Castro. Mas todos são unanimes em relação às transformações que a economia cubana precisa sofrer.

O velho militante comunista, Angel Barroso, de 92 anos, exibe orgulhoso o seu carnê de combatente da Revolução Cubana. Ele conta que serviu sob o comando de Juan Almeida Bosque e que é testemunha viva das mudanças sociais do país depois da vitória do socialismo. “Até o dia da minha morte serei um socialista ferrenho porque vivi debaixo da ditadura de Batista e sei o quanto evoluímos nos últimos 53 anos depois da Revolução”, diz ele.

 Admirador do presidente Lula, Angel, quer saber como serão as coisas no Brasil depois que ele entregar a faixa presidencial para Dilma Rousseff. “Será que a nova presidente vai continuar ajudando os outros povos latino-americanos?”, indaga. O velho comunista se refere ao fato do Governo Brasileiro estar ajudando na construção do Porto de Mariel. “O Lula tem muita popularidade em Cuba por ser um dos grandes líderes do continente americano”, garante.

Mas apesar de toda dedicação ao Partido comunista Cubano, Angel, acha que o país precisa fazer mudanças. “Temos que avançar para um moderno socialismo do século XXI. O Raúl tem feito algumas aberturas importantes, mas ainda não é o suficiente. Precisamos fazer uma reestruturação da nossa economia. É preciso mais apoio e menos burocracia para as pessoas fazerem os seus negócios próprios”, argumenta.

Angel relata que muitos trabalhadores estão sem ocupação nas fábricas e outros órgãos produtivos da estrutura estatal. “O governo não pode mais ser um polvo com tentáculos tocando todas as áreas da vida social. Existem operários que estão 8 horas sem fazer nada e o povo continua pagando os seus salá-rios. É um erro que está se cometendo. Precisamos produzir mais para gerar riquezas e prosperidade à população. Temos que utilizar melhor os nossos recursos naturais”, analisa. O velho comunista garante que, em 1994, quando milhares de cubanos fugiram para os Estados Unidos os motivos foram puramente econômicos e não políticos.

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