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Decifra-me ou te deleto

Helder-Caldeira---Foto-de-DHá menos de um mês, o Google lançou um empreendimento extraordinário: o Art Project. Trata-se de mais uma das geniais ferramentas do grupo que, ao lado do Facebook, vem revolucionando a dinâmica da era virtual e determinando os caminhos e os destinos de bilhões de pessoas ao redor do planeta. Assim como reinventaram os conceitos das relações humanas, passaram a ser decisivos no ambiente político mundial. A rápida e eficiente organização dos monumentais protestos que derrubaram três décadas de governos ditatoriais na Tunísia e no Egito e estão sacudindo a anacrônica geografia política do Oriente Médio, é apenas uma partícula inconteste do universo digital agigantado no horizonte. Sinal dos tempos. Novíssimos tempos.

O recém-lançado Google Art Project é uma galeria virtual que oferece ao internauta a fantástica possibilidade de percorrer, por enquanto, os salões e corredores de dezessete dos maiores acervos artísticos do planeta e, gratuitamente e sem sair da cadeira, explorar detalhes de mais de mil obras-primas. Isso é só o começo. O ambicioso projeto cultural idealizado pelo indiano Amit Sood – que aos 32 anos de idade é um dos jovens gênios profissionais do Google – já está em expansão e, em breve, irá disponibilizar outras milhares de obras de arte espalhadas por galerias e museus de todo mundo. Um deleite para os olhos e para a alma.

Já é possível, por exemplo, passear pelos jardins e salões nababescos do Palácio de Versalhes e defrontar-se com a delicadeza da pintora francesa Vigée-LeBrun em seu belíssimo retrato da rainha Maria Antonieta ao lado dos filhos, podendo alcançar a minúcia do olhar terno da princesa Maria Teresa com um zoom ultra potente. De lá, num clique, contempla-se as obras de Cézanne em um tour pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, ou os quadros de Goya, Rembrandt, Ticiano e Velázquez da Coleção Frick em Manhattan ou, ainda, dezenas de obras da Tate Gallery em Londres. Tudo isso com uma qualidade de imagens que chega a sete gigapixels. É fenomenal, podem acreditar.

Se a lente dos olhos digitais permitem à visão humana tamanha nitidez e flexibilidade espacial, não é difícil imaginar o que a era virtual está fazendo com os arremedos de pseudodemocracia que se espalharam pelo mundo no século passado. Principalmente em países que, como o Brasil, insistem em convencionar os jovens como uma população alheia à história e avessa à política. Extremamente hábeis no domínio do universo virtual, as novas gerações estão cada dia mais instrumentalizadas para a observação profunda e crítica dos governos e da administração de seus países, tendo como importante aliada a explosão da informação horizontal na internet.

Talvez pelo temor da dimensão e do alcance desses novos tempos é que nossa excrescente classe política ainda demonstre tanta resistência aos avanços indispensáveis da tecnologia e insista manter seus governos feito lixo sob o tapete velho da burocracia. Mas, se já podemos encontrar o imperceptível olhar voyeurístico de Rembrandt em seu quadro A Ronda Noturna, num passeio virtual pelo Rijksmuseum de Amsterdã, ou um quase invisível crucifixo oculto na obra Os Embaixadores de Holbein, exposta na National Gallery de Londres, não é difícil prever a devassa que era digital irá promover nas malandragens das administrações públicas. E, por maior que seja a resistência dos nossos políticos, essa minuciosa exposição de tudo e mais um pouco é um destino tão certo quanto maravilhosamente irremediável.

O impressionante desenvolvimento tecnológico que nos permite, em qualquer lugar e a qualquer tempo, desnudar ainda mais a Vênus de Botticelli ou contemplar os movimentos circulares do Céu Estrelado de Van Gogh, também é capaz de laçar o cavalo selvagem das nossas relações políticas. E dominá-las. Ao movimento de um clique é possível encarar, frente a frente, a milenar Esfinge no planalto egípcio de Gizé. Seu olhar ameaçador, tão enriquecido quanto castigado pelo tempo, confronta-se com o invisível ciclope digital e a mítica devoradora finalmente é desafiada: decifra-me ou te deleto.

Escritor, Colunista Político, Palestrante e Conferencista
www.magnumpalestras.com.brheldercaldeira@estadao.com.br
*Autor de “A Primeira Presidenta”, primeiro livro publicado no Brasil sobre a trajetória política de Dilma Rousseff.

 

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