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Fundação Amigos das Onças da Amazônia

Itaan-ArrudaAmarildo era uma espécie de relógio para os colegas de repartição. Cabelo liso, brilhantina sempre renovada. O dentifrício em pó guardava-o no bolso, misturado ao punhado de cravo para ocasião de discretos galanteios. Era homem modesto e pontual. Aliás, pontualíssimo. Tinha gente que acertava o horário quando o barnabé chegava. Às 7h30. Sempre. “Bom dia, Sr. Amarildo”. E a resposta vinha em tom seco, acompanhado de um gesto de reverência baixando de leve a cabeça. “D. Glória”. Todo dia era assim. Regulado. Pontual. Como uma máquina.

D. Glória era uma solteirona. Blusa de babado florida, saia pelos joelhos e dentes graúdos. Era datilógrafa, no tempo que isso ainda existia no Acre. Batia à máquina rápido, olhando discretamente para o Amarildo com os óculos de aros pretos e pesados. Quando vinham os repórteres com as dúvidas rotineiras sobre a repartição pública, ela já apontava o rumo em que o homem estava.

Amarildo era a referência para tudo no lugar. Qualquer problema no setor da administração estadual era ele quem resolvia. Era o único doutor por ali. Além das questões de praxe, estava se interessando por um assunto que estava começando a fazer moda: meio am-biente. Cuidou inclusive, de colocar logo o irmão para fazer faculdade em Belém: Ciências da Natureza com especialidade em Ecologia. “É o futuro”, argumentava a quem estranhava o fato de o irmão José Lineu não ser advogado também.

O assunto “meio ambiente” foi ganhando cada vez mais espaço nas páginas dos jornais. Não só do Acre. O mundo todo falava sobre o assunto. Animais em extinção, falta d’água nas cidades, enchentes, morte de rios, poluição dos oceanos. Até em elevação do nível das águas dos mares já se falava. “É um novo dilúvio”, abarcou Amarildo. A sentença, dita assim, foi parar nas páginas dos jornais do Acre. Amarildo foi chamado para se explicar com o próprio governador.

“Excelência, temos que tomar uma atitude”, sugeriu o empregado. O governador, olhando para fora da janela, com a cortina e passar-lhe na fuça, só ouvia. “Precisamos ter um instrumento que seja capaz de prevenir incêndios nas florestas, que mostre como estão os nossos rios e nos aponte alternativas para não desmatar mais do que já está. Tenho estudado o assunto. Nós vamos nos lascar se continuarmos assim”. A afirmativa do barnabé caia como uma pedrada na mesa da autoridade.

“Amarildo, eu tenho uma solução”, vociferou. “Vou te no-mear para o meu governo”, anunciou o governador. “Mas, governador, eu não peço por isso”, surpreendeu-se Amarildo. “Cale a boca. Tá dito aqui na reportagem que vai ter um novo dilúvio se as autoridades não tomarem uma providência. Pois bem. A partir de hoje, eu nomeio a ti como o meu secretário para Assuntos de Matas e Adjacências. Contigo ao meu lado, é possível que eu tenha lá na hora extrema um espaço para mim e os meus na tua barca”.

No outro dia, os repórteres, retratistas e radialistas anunciavam a novidade. “Amarildo integra governo”; “Amarildo é o homem das Matas”; “Amarildo é secretário de Matas e Adjacências”. O dedicado funcionário sabia que aquele fuzuê todo precisava de uma resposta rápida. Era preciso mostrar eficiência. A cidade já estava com falta d’água e a Rádio Difusora Acreana já estava noticiando que em Assis Brasil o Rio Acre tinha apartado.

A necessidade de mostrar serviço veio acompanhada da vaidade. Reuniões, entrevistas puxa-sacos, motoristas, viagens. Não há ego que aguente. Amarildo foi se deixando levar. O conhecimento da máquina pública mostrou a Amarildo caminhos já conhecidos e sempre criticados pelo pontual barnabé que, inclusive, passou a chegar atrasado aos compromissos. O espírito cívico foi dando lugar às concessões. Uma das primeiras providências foi mandar trazer de volta o irmão de Belém, recém-formado.

“Se eu ficar dependendo dessa estrutura, eu não vou conseguir trabalhar direito”. Era preciso criar um mecanismo que agilizasse a gestão pública; que trouxesse a prestação de serviço “ao patamar da excelência”. O irmão teve a solução. “Lá em Belém, mano, tão fazendo o seguinte: cria-se uma fundação e essa fundação presta serviços para um órgão público, sem precisar de licitação, de tomada de preço… de nada”, explicou José Lineu.

Foi a senha. Amarildo conhecia os meandros da gestão pública e sabia que Lineu estava exagerando. Ele foi além do que o irmão sugeriu: criou uma fundação e uma empresa. A fundação, chamada Fundação Amigos das Onças da Amazônia, era presidida pelo pai.  A sede ficava na divisa entre Sena Madureira e Manoel Urbano, terra do mapinguari. A empresa ficou sendo gerenciada por Zé Lineu.

A partir daí, Amarildo conseguiu o que queria. Trabalhava dentro do que a lei permitia, com agilidade. O irmão, dono da empresa prestadora de serviço, sabia antecipadamente (e em detalhes) as exigências dos editais. Como só ela dispunha dos serviços necessários, ganhava sempre. A Fundação Amigos das Onças da Amazônia assinou vários convênios com o governo.

Amarildo mudou. Chegava cada vez mais atrasado aos compromissos “por causa das reuniões” e aumentou o estoque de cravos para os constantes imprevistos. Não dispensava os motoristas e as viagens eram rotineiras, inclusive para o estrangeiro. Trocou as armações dos óculos, agora mais leves. Zé Lineu continuou com a empresa.

O tempo foi passando e o governo acabou. Amarildo aos poucos foi sendo esquecido. A secretaria de Matas e Adjacências foi extinta pela nova gestão. Amarildo voltou a bater continências durante as manhãs, pontualmente. Sem a D. Glória, recém-aposentada.

* Itaan Arruda é jornalista.

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