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Relógio terminal

foto-de-Itaan-Arruda-1Amanhecia no Terminal Urbano de Rio Branco. O clima quente e úmido já fazia suar a chefe do financeiro das empresas de ônibus que começava o dia contando dinheiro para dispô-lo aos companheiros cobradores. O cubículo era mínimo. As cédulas e moedas se amontoavam em uma mesa suja e velha. O ventilador pequeno de hélices grudadas com fitas adesivas aumentava o calor. Lá fora, a faxineira varria o corredor empoeirado pelos ônibus que chegavam, barulhentos, repletos de fumaça e sono. Ao longe, um protestante ensaiando a leitura decorada da Bíblia a uma senhora cega e pouco interessada.

“… Entra na minha casa.
Entra na minha vida.
Mexe com minha estrutura.
Sara todas as feridas…”

Começava a programação da Rádio Terminal. Os ânimos já estavam alterados. Eram sete horas. O ritmo já era bem outro. Na pressa honesta dos usuários do terminal, olhos aflitos querendo frear os relógios e xingar os motoristas pela lentidão. “A patroa tem que ir pro trabalho e não tem com quem deixar a menina. E esse ônibus que não chega, meu Deus”

“… Me ensina a ter santidade…”

Meio-dia. Hora da saída dos alunos. Alguns deles já estavam no Terminal bem antes. Gazetaram aula. Havia Coca-Cola na meia garrafa de pinga. Os cabelos ao estilo dos craques de futebol denunciavam vaidade e tempo ocio-so. Óculos escuros. “Cuba Libre” quente. As meninas também fa-ziam parte da algazarra. Abraços. Sorrisos. Gritos. Prazer por ser visto. Percebido. Evidências da juventude.

Um senhor de 70 anos tenta entrar no ônibus na outra plataforma. Cai porque o motorista do ônibus não esperou. Os jovens vaiam. Mangam… do velho que chora de dor. Talvez tenha quebrado a bacia. Samu chega. Barulho. Fumaça. Calor. Mais vaias dos jovens. Gritos. Correria.

Uma menina quase é atropelada ao correr do amigo. Brincadeiras. Uma senhora oferece banana frita salgada. O homem de 70 anos é levado em uma maca. Carro do Samu sai. Mais vaias. O grupo já está completamente bêbado.

“… Vou deixar a vida me levar

… pra onde ela quiser…”

Mochilas são jogadas de um lado para outro. Raro momento em que as Leis de Newton vão e vem de uma plataforma a outra no Terminal Urbano. De outra mochila, sai um Drummond desconfiado. Mais risadas. João Cabral. Lavoisier. Uma confusão.

“Meu Deus, ainda tenho que fazer almoço pros meninos irem pra escola”. Outro ônibus quase atropela uma garota. Um protestante uivava “em línguas” com uma Bíblia sebosa e um terno que lhe aquecia a alma e as carnes em quase 40 graus à sombra. Um policial assistia a tudo.

De repente, um alvoroço. Uma correria. Pânico. Choro. Desespero. Um dos garotos puxou um terçado e correu para atacar o colega que mexera com sua namorada. O golpe fatal atingiu um homem que se levantava ao amarrar o cadarço do tênis da filha. O corte pegou no pescoço. Morte instantânea. Sangue. Muito sangue. Polícia. Um fugitivo e o temor de muitos.

“… tá lá um corpo estendido no chão.
Em vez de rosto uma foto de um gol.
Em vez de reza uma praga de alguém
E um silêncio servindo de amém…”

A tarde foi repleta de várias versões e muitos policiais. Anoiteceu tranquilo naquele dia. Silêncio. Solidão, até.

Amanhecia no Terminal Urbano de Rio Branco. O clima quente e úmido…

* Itaan Arruda é jornalista.

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