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Escola do Silêncio

(ou Sobre Bichos e Homens Sem Música)
Itaan-ArrudaEra uma vez no tempo em que os bichos falavam no Acre. Como em toda floresta, eram muitos. Em quantidade. Quem a duvidar esteja, basta perguntar aos homens e mulheres mais velhos de hoje. Todos eles têm uma história do tempo em que os bichos falavam por aqui. É certo que as espécies eram mais abundantes e diversas. Agora, ficamos tão admirados e tão distantes dos animais que até os colocamos em parques para poder apreciar de forma protegida. Antes, não. Eles andavam assim, ó, a esbarrar nas canelas da gente a pedir licença. Entre bichos e homens, o certo é que as histórias não se diferem tanto assim como se verá.

Contam que, certa vez, um grupo de pavões nascidos e criados aqui (sim, nesta época havia pavões por essas bandas) resolveu revolucionar a vida na floresta. Afinal de contas, “era preciso dar governo a isto aqui”. Muitos animais falavam e cantavam ao mesmo tempo. Ninguém se entendia. Os pavões foram espertos. Iniciaram a empreita criando uma Escola Acreana de Música, Cantos e Outros Arranjos. O nome saiu assim pomposo e cumprido para abarcar o tamanho da desordem.

Mas, o exército de cutias, antas, macacos e demais bichos se perguntavam: “Por que motivo a urgência de se construir uma escola de música, antes de levantar outras coisas mais necessárias para o conforto das carnes?”. A pergunta procedia. Havia outras prioridades a serem atendidas. Mas o argumento pavoneado tinha lá certa dose de sentido. “A desordem está tamanha que só a disciplina da música e a Beleza nela contida darão o rumo necessário à vida na floresta”.

Argumento aceito, ordem imposta. Imediatamente, o exército de bichos se dispôs a trabalhar. A construção do espaço exigiu muito esforço. Como na época não havia dinheiro, a importância da empresa se media pelo número de bichos que se morria durante a obra. Morreram muitos animais para concretizar a idéia. Os pavões eram um nervosismo só. Não podiam errar. Era a primeira vez na história que o concerto de uma floresta começava pelo culto à Beleza. Trabalhavam para ser “uma referência ao mundo. Um novo modelo de vida”.

Aos poucos, a obra foi tomando forma. Foi crescendo. Foi ficando bonita aos olhos. Mas, à medida que o prédio avançava, naturalmente, a desconfiança da bicharada aumentava também. Por mais desordenada que tivesse a mata naqueles tempos, ficava difícil aceitar aquele bicho esquisito “nascendo do chão sem ter raízes”. Música por música todos ali davam o seu bocado de barulho quando precisasse sem precisar tanto esforço. “E ademais, esses pavões nem perguntaram se a gente queria essa tal de escola, nem planejaram direito”.

Bem ou mal, a obra não parava. Pacas, formigas e onças foram os que mais trabalharam. Foram também as espécies que mais morreram. Já havia uma certa preocupação por parte dos pavões. “Essa obra precisa acabar logo”, exigiam. “Precisamos iniciar os consertos”. Houve um princípio de rebelião. Um beija-flor e uma coruja lideraram o movimento argumentando que “aquela estrutura não era necessária… que música era muito bonito, mas que tinha que ser melhor planejada. As coisas feitas apressada e ‘disconforme’ desse jeito não dão certo…” etc. etc. O tumulto foi geral. Um bando de queixadas ameaçou derrubar a primeira parede. Os pavões tiveram que pedir apoio das onças para que a obra fosse concluída como exigiam.

E assim foi. Finalmente, o grande dia chegou. Graças aos esforços de muitos e a vida de outros tantos, a Escola Acreana de Música, Cantos e Outros Arranjos estava pronta. As salas eram coloridas, arejadas, bem iluminadas. Um mimo. Realmente, bonita. Um potó enxerido, depois de percorrer todos ambientes, abarcou no meio do silêncio que se fazia para o pavão-rei ser ouvido. “Cadê os instrumentos?” Foi um deus nos acuda. No meio do tumulto, um curió engrossou o coro. “Cadê os professores?”. O alvoroço piorou. E, para completar, a arara sepultou a glória dos pavões. “Os professores, quando a escola tiver, vão seguir quais planos de aula? Eles vão ter uma cartilha para seguir?”

Dizem os mais antigos, que os mais de mil alunos matriculados não deram, até hoje, uma só nota de lamento.

*Itaan Arruda é jornalista.

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