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Foi dito

Itaan-ArrudaO lugar é Rio Branco. O mês é julho. O ano é 2061. Zé Ignácio já ia com os cabelos machucados pelo tempo e as articulações só lhe respeitavam as ordens debaixo de muita dor nas pernas sustentadas por uma hidrografia de varizes. A respeitada liderança do bairro Irineu Serra andava com dificuldade. Com 96 anos de idade, dedicou toda vida a fortalecer a comunidade do Alto Santo, conhecida mundialmente pelo uso doutrinário e ritualístico do Daime. Foi amigo da madrinha Peregrina, viúva do Mestre Irineu, caboclo gigante, criador da doutrina.

Beber do chá exigiu muito compromisso do velho. Participar daquela comunidade lhe forçou a brigar com governantes, autoridades, erguer faixas, denunciar, gritar palavras de ordem exigindo que o Governo se retirasse de sua vida em tudo o que lhe dizia respeito. “Governo, por onde anda, só atrapalha”, vociferava por onde ia. Para a história de Zé Ignácio, era uma verdade. Foi constatado.

O bairro Irineu Serra era exemplo concreto disso. No início do século, o Governo do Acre decidiu que iria construir 150 casas populares na Área de Proteção Ambiental do Irineu Serra. Era um descaso, inclusive diante da lei que proíbia qualquer edificação dentro da APA. O próprio governo estava sendo criminoso. Descumprindo a legislação ambiental que julgava ser defensor. Doía na alma de Zé Ignácio lutar contra a construção das casas. Ele sabia o que era ficar sem ter onde morar. Foi sentido.

Tinha vindo dos seringais de Sena Madureira com os pais e os 8 irmãos, expulsos pela ação dos “paulistas” que se instalaram na região na década dos 70 do século passado. Vinha miúdo, faminto. Chegou na capital e encontrou nos braços de Mestre Irineu a acolhida salvadora. Era pequenino. O pai pertencera também à doutrina desde o seringal. Não seria exagero dizer que na hora da desesperança, a comunidade criada pelo caboclo gigante do Maranhão lhe salvou a alma e o corpo das misérias. A APA do Irineu Serra, portanto, era uma parte quase sagrada dele. Foi dito.

Como impedir que outros pobres como ele tivessem uma moradia? Que direito tinha ele de empatar a felicidade alheia? “Mas, também, por que essa merda de governo resolve construir essas casas de rato justamente num lugar que deveria ser protegido”, perguntava para si mesmo quase trincando os dentes. Ele viu o projeto das casas, na mesa do governador. Esteve na frente “do homi”. Viu que “naquilo ali não cabia morar gente decente”. Foi alertado.

Resolveu falar com as autoridades depois que os engenheiros engrossaram a fala para a esposa, já medindo onde iriam construir as casas “que iriam trazer melhorias para a comunidade”. Zé Ignácio não se conteve. Falou para o próprio governador. “Isso não tá decente, homi”. Ninguém se surpreendeu. Sabiam que Zé não tinha freios na língua. “Esse projeto vai matar uns tanto de igarapé. Além disso tem pelos menos duas nascentes d’água que vocês vão encher de cimento. Vocês vão nos matar”. A reunião nem chegou a terminar. O governador inventou um telefonema e o grupo que representava a comunidade teve que sair. Foi lembrado.

Zé Ignácio foi para as tevês e rádios. Falou o quanto pôde. Quando as máquinas chegaram, tiveram que entrar por meio da ação da polícia. Foi notícia no país inteiro. Menino e mulher chorando. Zé Ignácio e os companheiros presos. Não teve jeito. As máquinas entraram e construíram as 150 casas. Aos poucos, tudo foi mudando: os igarapés morreram, as nascentes sumiram, as árvores foram derrubadas e um cortiço serpenteava o lugar, qual uma cobra sem rumo. Foi visto.

Hoje, o bairro Irineu Serra possui os índices mais altos de criminalidade. A comunidade ainda preserva o túmulo o mestre Irineu, mas já não há respeito como antes. Muitos adolescentes se drogam nas proximidades. Na janela da cozinha, sentado no banco, sozinho, Zé Ignácio tomava café preto em lata de Leite Moça, igualzinho no seringal. Olhar fixo. Via os meninos dos vizinhos correrem no fundo dos quintais. Zé Ignácio chora. Miúdo. Como antes. Mas, agora, sem ter o gigante acolhedor de outrora. Foi dito.

* Itaan Arruda é jornalista.

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