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Ao Dr. Thaumaturgo, com afeto

De um bom homem, geralmente, mensuramos o valor da alma translúcida tendo como parâmetro básico o tamanho da obra por ele erguida.

Daí, devemos considerar que há, antes, as obras empreendidas pelo e para o espírito. E há aquelas que têm a materialidade como substância primária. Uns criam filhos, constroem homens, plantam árvores, escrevem livros magníficos. Outros erguem impérios colossais, edificam palácios, templos e monumentos à grandiosidade dos seus feitos, à glória da sua brilhante passagem pelo mundo dos homens e de Deus. Há, todavia, para o ordenamento natural das coisas, aqueles que absorvem toda uma vida de quase um século fazendo as obras do espírito e também as substanciais.

Em verdade, meu bom e velho amigo, a dignidade pessoal e a honra não podem ser protegidas por outros. Elas devem ser zeladas, em particular, por nós próprios, os seus reais edificadores.

E temos levado a vida, cada um ao seu tempo e ao seu modo, com bastante esforço, dignificando o período que nos foi dado de presente por Deus. Depois, talvez, outros nos dignificarão, em nosso nome, se tiverem tempo e sensibilidade. Mas nós deles não aguardamos e não devemos esperar muitos tributos ou honrarias, uma vez que os nossos próprios filhos é que haverão de salvaguardar a sua própria existência gloriosa, em conformidade com o que lhes temos conseguido transmitir. É assim que quer o Altíssimo.

Não tenho parentesco algum com o ser humano aqui tratado. O que me move é o respeito que nutro pelos homens mais sensatos e mais proeminentes, meus contemporâneos. Por isto, sinto a necessidade e o dever de, enquanto formador de opinião e escritor e, principalmente, enquanto amigo particular, tratar da simpatia e do carinho que nutro por um dos homens mais dignos que este Estado já teve a honra de reverenciar. Aqui cabem, certamente, além da homenagem pura e simples, um tributo da minha pessoa em particular, e da minha família, em especial, ainda em vida, ao ex-deputado de quatro mandatos, o Dr. Francisco Thaumaturgo.

Na época em que o Governo do Estado o reverenciou com a comenda da Ordem da Estrela do Acre, lá estava eu entre os que o aplaudiam pelo exemplo e pela importância histórica de líder popular  –  e não populista  –  que, a partir de Cruzeiro do Sul, fez-se proeminente por si só e participou de duas assembléias estaduais constituintes, a de 1963 e a de 1988, ao lado de um seu pupilo, o também ex-deputado Geraldo Maia, desaparecido no fulgor dessas batalhas seculares.

Francisco Thaumaturgo travou dezesseis anos de ferrenhas lutas em favor do povo do Acre, especialmente, dos munícipes de Cruzeiro do Sul. Filho de João Thaumaturgo Sobrinho e Maria Florinda Taumaturgo, nasceu num seringal do município de Canutama, Amazonas, onde foi registrado.

Após a queda do preço da borracha, o pai abandonou o seringal e veio para a cidade de Sena Madureira, em 1914, onde se estabeleceu como alfaiate. Aí foi criado e fez o curso primário até o quarto ano na escola municipal. O pai tomou parte em todos os movimentos pela autonomia do Acre, tendo exercido o mandato de juiz de Paz e subdelegado, dentre outros.

Em 1927, João Thaumaturgo retirou-se para Manaus ali exercendo a sua profissão enquanto autônomo. Francisco Thaumaturgo, por exigência do Secretário de Educação do Amazonas, repetiu o quarto ano. Estudou o curso ginasial no Colégio Chevalier. Depois, se submeteu ao vestibular para a Escola de Farmácia e Odontologia de Manaus.

Tornou-se doutor em 8 de dezembro de 1936. Trabalhou na Clínica do Dr. Edson Melo durante cinco anos. Especializou-se em Endodontia e Pedia-tria, pois não havia naquele tempo nenhum especialista para estes segmentos da profissão. A convite dos seringalistas do Rio Juruá, viajou para Cruzeiro do Sul, onde fixou residência a partir de maio de 1940. Aí constituiu família ao estabelecer vínculo matrimonial com a Sra. Renée Assis Thaumaturgo, filha de um dos pioneiros do Juruá, o Sr. Francisco Januário de Assis.

Durante sua permanência em Cruzeiro do Sul, excursionou para atendimento aos ribeirinhos do Rio Breu, para atender no posto da Polícia Militar do Peru. Penetrou no Rio Tejo até o Seringal Restauração. Subiu o Rio Juruá Mirim até a foz do Tamboriaco, aproveitando a ocasião para visitar o lugar “Funin”, onde Euclides da Cunha tomou posse da função de Guarda Aduaneiro. (Euclides, quando dali saiu, escreveu o livro “Inferno Verde”, numa alusão à experiência amazônica.)

Convidado a voltar a Manaus pelo governador Plínio Coelho, que lhe prometia contrato vantajoso, optou por permanecer no Vale do Juruá. Em 1962, após a elevação do Acre à categoria de Estado, a convite do candidato ao governo, José Augusto de Araújo, concorreu ao cargo de deputado estadual constituinte, tendo sido eleito com a maior votação.

Boa parte das palavras acima, atendendo a um pedido informal deste franco admirador, foram escritas de próprio punho pelo homenageado. Hoje, aos noventa e oito anos, completados em 15 de agosto último, Francisco Thaumaturgo personaliza uma das páginas mais brilhantes da história do Acre e do legislativo acreano, pela sobriedade, pela competência e, sobretudo, pelo invulgar espírito público que marcou toda uma trajetória de grandes feitos.

Tentei ser dele um mero aprendiz. Talvez um discípulo mais dedicado. Não o consegui. O bom amigo já avançara para muito além da minha época. Afinal, eu rondo o meio século. E ele quase já completa um século inteiro. Mas aprendi com ele, sim. Qualquer coisa ou muita coisa de útil ou agradável consegui reter nos magros liames da inteligência. Por isto, os meus agradecimentos pelo convívio e pelas recomendações que serão sempre lembradas aí por esta vida minha afora.

Então, um poeta português do nosso tempo  –  Alexandre O’Neill  –  salva estas pobres loas, quase uma balada, a um amigo que, feito um César, veio, viu e venceu.

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo.
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!…

* Escritor: http://www.claudioxapuri.blog.uol.com.br

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