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Os porquês da emoção

Parece-nos que as emoções são sempre intermináveis. É deveras complicado por termo ou dar cabo delas. Quanto mais as exprimimos, mais formas temos de as exprimir. Por isso, alguns as afirmam jorrar como em cascata, aos borbotões… E há doses mínimas de lógica na assertiva. Mínimas, sim, porque a lógica é sempre racional e os emotivos quase nunca ou nem sempre o são. Em suma, a emoção é sempre nova, mas as palavras têm sido usadas desde sempre, daí a tamanha dificuldade que temos em exprimir este estado de espírito.

Tínhamos já passado por algumas experiências em que as lágrimas brotaram abundantes, ainda na mais tenra infância. Eu e os irmãos convivemos com as mortes dos nossos ancestrais cearenses mais próximos, debaixo do mesmo teto, de zinco. Alguém, de uma hora para a outra, ficava viúvo ou viúva. Outros tornavam-se órfãos. Foram-se muitos para muito mais longe que o Ceará, e alguns até disseram adeus aos mais novos, como o meu queridíssimo avô Joaquim Porfiro, desaparecido em 22 de maio de 1965, depois de passar as madrugadas de um ano inteiro, deitado ou sentado a uma rede, no canto da sala, rezando o Ofício de Nossa Senhora, com o objetivo de mais fácil entrar no céu e lá ser bem recebido por qualquer autoridade de peso, como São Pedro, ou até mesmo O filho do Homem.

A família ainda é muito grande, como o foi outrora, quando membros dos dois troncos foram chegando ao Acre, a partir de 1908. Emociona muito lembrar os sertanejos encarquilhados se arrastando pelos caminhos da caatinga em busca do algo mais que poderia ser apenas pão e água… E, de quebra, quem sabe, a sombra de um marmeleiro qualquer. Eram três: o bisavô Porfiro e os dois filhos de, aproximadamente, quinze e dezessete anos. Depois, quem sabe, depois… Um emprego numa fazenda onde os baixinhos  –  metro e sessenta, no máximo  –  serviriam quase que exclusivamente para escorar carga em jumento.

E a viagem seguiu arrastada. A goela seca, a barriga roncando. E a paisagem sertaneja que, vagarosamente, foi ficando para trás. Dias mais tarde, Senador Pompeu, um vilarejo onde tiraram os documentos. Depois, uma viagem a cavalo, o mar, a brisa e as ondas, tudo, tudo, tudo muito estranho na viagem empreendida, já, a partir de Fortaleza, Ceará. Sentiram na pele e nas narinas a umidade e as chuvas de Belém que caem sempre em gotas grossas e assustadoras aos olhos de qualquer recém chegado, ainda hoje em dia. Ficaram deslumbrados com o grande rio e com a floresta ao longe. Viveram a viagem de mês e meio através da Amazônia, uma imensidão desconhecida. E chegaram ao Acre, enfim, nos cafundós do Judas… Eis a nova realidade, o novo patrão, a colocação sombria, a mata fechada, a saudade e a solidão… No início do século, num tempo em que a Europa vivia a Primeira Grande Guerra, cada um ocupou um posto na floresta, a distâncias de três ou quatro horas, a pé, umas das outras, no Seringal Porvir, entre Xapuri e Brasiléia.

Quantos sonhos os Porfiros pioneiros, heróis lá de casa, conseguiam embalar enquanto, em fuga ou em retirada, pisavam o chão ressequido pela grande seca de 1915?

Arcelino Pereira da Mota, o avô materno, também viveu, durante onze anos, sozinho, numa colocação do mesmo Seringal Porvir. Depois, apareceu-lhe um irmão que durou uns dois anos e morreu, parece-me, de tifo. Aí o vovô Mota veio para uma colônia bem próxima a Xapuri para se casar com uma prima, também do Baturité, a mais bonita serra cearense … Tremo só de pensar nos ermos enfrentados com tanta coragem por essa gente nordestina tão cheia de futuro e de tanta vontade de viver. Dá vontade de chorar!

Uma outra emoção está ainda à flor da pele ao lembrar que minha mãe era lavadeira e papai, estivador. Ele carregava parte da história do Acre às costas. Ela lavava e engomava roupas de alguns bacanas da época. Ambos, remoendo um cansaço enorme, jamais esqueceram o zelo mais puro pelo futuro dos seus, dos meninos lá de casa… E como deu certo!

São lágrimas realmente incontidas que me assaltam os olhos quando, na parada cívica do Dia da Pátria, vejo os militares em marcha batendo forte os coturnos no asfalto, como se assim dissessem que aqui estamos porque herdamos esta terra de verdadeiros caudilhos que, como os Césares romanos, vieram, viram e venceram, como venceriam qualquer audaz estrangeiro (que quiser) nossos brios de novo ofender. Lutaremos com toda energia, sem recuar, sem cair, sem temer. Ergueremos então destas zonas um tal canto vibrante e viril que será como a voz do Amazonas ecoando por todo o Brasil…

Dói em mim lembrar que o irmão mais novo, morto em acidente de carro há quinze anos, desfilou pela nossa Infantaria de Selva, num Sete de Setembro, de boina e farda verde-oliva, luvas brancas e com a bandeira do Acre na mão… A glória ímpar para um menino que cresceu acalentando o sonho de um dia marchar nas fileiras do Exército Brasileiro. Também o desfile dos escolares é contagiante, ainda hoje, e me faz lembrar o nosso orgulho incontido dos tempos do Colégio Divina Providência, quando marchávamos e cantávamos como se estivéssemos prontos para assumir os destinos deste rincão brasileiro.

Como não se envaidecer e como não se emocionar com tanta acreanidade?

Vejamos o legado que nos deixou Vinícius de Moraes, o poeta maior do cancioneiro nacional, nos dois tercetos do seu Soneto da Fidelidade:

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidã,  fim de quem ama
(…)
Eu possa me dizer do amor (que tive ):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Ao ler o poetinha, como ao ouvir o seu grande parceiro, Antônio Carlos Jobim, quem dentre os mais esclarecidos em termos de poesia não se sente também iluminar por essa aura e por tanta inspiração? Da mesma forma, tenho ouvido, desde algum tempo, clássicos como La Traviata ou Rigoletto, de Verdi, a Cavalgada das Valquírias, de Wagner, a Valsa do Imperador, de Satrauss II, o Coro dos Escravos Hebreus, dentre tantos… Certo é que viver todo este mundo pleno de emoções, às vezes até tardias, nos empolga e embala através de sonhos que, pela harmonia de sons e versos, nos leva a pensar uma humanidade cujos problemas vão desaparecendo, em compasso, gradativamente.

E quando nos nascem as crianças, quantos sonhos!… Como muito bem diz a amiga Ivone Moraes, pedagoga da Ufac, cada conquista, desde a mais tenra infância, desde o começo, é fonte das emoções mais vibrantes que pode um coração de pai ou mãe apaixonados sentir.

É real. Os primeiros monossílabos, as primeiras palavras, as primeiras frases e os primeiros passos nos deixam rejubilados. Deixá-los na escola, no primeiro dia de toda uma vida de sonhos de sabedoria, então, é um sentimento mágico que só os mais insensíveis não conseguem sentir o gosto de lágrimas adocicadas que teimam em rolar pelas nossas faces tão esperançosas.

Depois virá a parte que eu ainda não tive o prazer de experimentar. São as formaturas. (No próximo 2009, o Andrei, meu mais velho, terá já nas mãos um diploma de ensino médio, a Deus querer!) São os degraus alcançados na busca de um futuro que brindará os esforços dos que viveram perseguindo momentos como estes, tão bons para qualquer pai morrer de alegria.

Agora mesmo, à minha frente, ao ouvir este trecho, toma-se de arrepios e lágrimas a Maria do Socorro Muniz Ribeiro Pereira, minha amiga que enfrenta as vésperas do dia em que a filha, Rita de Cássia, de apenas vinte e três anos, tornar-se-á, definitivamente, médica, para honra dos seus. Obra do Altíssimo, minha irmã!
O sucesso de um filho, de um irmão, de um parente ou de um amigo, deste meu mais esforçado companheiro, igualmente, me faz ser feliz junto com o que buscou e alcançou e vive a glória de ser um grande conquistador de espaços ao sol dos justos.

Realmente, eu não consigo ser menos patriota e menos família. É piegas, mesmo. É coisa de interiorano, como já escrevi um dia. Mas a Bandeira Brasileira e o Hino Nacional me embalam nas asas da emoção. (Não sou como o Olavo Bilac. Não sou o acadêmico ou o parnasiano ou o positivista, que possa talvez parecer). Sou um cidadão extremamente apaixonado pelas coisas do Brasil.

Lembrar a Fafá de Belém cantando e chorando copiosamente, e o glorioso pavilhão a decorar os funerais de Tancredo Neves faz qualquer cidadão do meu tempo ficar triste depois de tantos invernos e de tantos crápulas que não nos permitiram sonhar, a não ser, hoje, pelo tino do metalúrgico Luís Inácio.

De minha parte, aos cinco anos, a copa do mundo de futebol de 1962 deixou apenas alguns vestígios na memória infantil, parcas lembranças, isto porque um dos mais velhos dos irmãos tinha um álbum de figurinhas que conseguiu completar com imensa dificuldade. Gritaram goal. Ficamos todos muito felizes com a conquista, mas a emoção foi contida porque, afinal, àquela época, homem ainda não chorava, como em 1970 quando, depois da partida final, o velho Padre José, cearense feito de pedra como os meus, foi às lágrimas e badalou o sino da matriz de São Sebastião de Xapuri por meia hora, em meio ao intenso foguetório, em comemoração ao grande feito do povo da pátria de chuteiras.

Depois, já aos vinte anos talvez, passei a ver arte  –  e muita arte  –  nos esportes. E uma arte que encanta, que emociona, que faz rir e faz chorar, como uma poesia do Drummond ou como um gol de bicicleta do Arantes… Este, então, ainda um ídolo dos garotos do meu tempo… Este, sim, que me faz virem lágrimas quando o vejo repetir, via televisão, muitos dos seus memoráveis mil e duzentos e cacetadas de goals. Ainda hoje, quanta emoção há em ver o Mané driblando um russo com a bola parada. Como é bonito ver a Marta partir e passar por adversárias que mais parecem tambores de marcação. E o Carlão, acreano, nos fez, de repente, torná-lo um herói do povo de Galvez ao arrebatar uma medalha de ouro nas Olimpíadas de 1992. Poucos são os que ainda agora não choram com as pole positions e as vitórias do Ayrton Senna… E haja heroísmo de todos. E haja glória para um Brasil de gente tão vibrante e com tanta vontade de vencer e aparecer para o mundo enquanto uma potência nos mais variados níveis.

Mas é preciso considerar que a razão nunca poderá diminuir o amor apaixonado, a afeição dos pais, a amizade, a benevolência, a devoção às ciências ou às artes… E não diminui, mesmo… O homem racional, quando sente essas emoções, deve ficar feliz por senti-las e nada deve fazer para re-frear a sua intensidade, pois todas elas fazem parte da verdadeira vida, isto é, da vida cujo objetivo é a felicidade, a própria e a dos outros. Nada há de irracional nas paixões enquanto paixões, e muitas pessoas irracionais sentem somente as paixões mais comuns. Ninguém deve recear que ao optar pela razão torne triste a vida. Ao contrário, pois a razão consiste, em geral, na harmonia interior. O homem que a realiza sente-se mais livre na contemplação do mundo e no emprego da sua energia para alcançar os seus objetivos exteriores, do que o homem que é continuamente embaraçado por conflitos íntimos. Como escreveu Bertrand Russel, nada é tão deprimente como estar fechado em si mesmo, nada é tão consolador como ter a sua atenção e a sua energia dirigidas para o mundo exterior.
Em verdade, Deus ter-nos-ia posto água nas veias, em vez de sangue, se nos quisesse sempre imperturbáveis.

 

Categories: Cláudio Porfiro
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