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Pequenas grandes coisas

As pessoas reclamam. Nas redes sociais, nas conversas de bar, nas reuniões de família o assunto sempre dá um jeito de cair sobre a indevassável incompreensão do mundo em que vivemos. Adultos que estupram crianças. Amigos que se matam por grana. Pessoas que não toleram divergência de idéias, de religião, de sexualidade ou de comportamento individual. Governos tirânicos, que criam imagens de si mesmos absolutamente incoerentes com a realidade concreta. Gente que não ouve ninguém, gente que persegue. Gente implacável.

O que está havendo com o mundo?

Está havendo o que sempre houve: pessoas. E pessoas, segundo um velho ditado polonês, “são feitas de escolhas”. A sabedoria oculta nesse raciocínio milenar consiste em entender que a qualidade de uma sociedade resulta das ações dos seus indivíduos. Em outras palavras, não é possível querer uma sociedade melhor onde os cidadãos tratam mal uns aos outros. Não é possível querer uma sociabilidade pacífica onde o próprio fundamento da vida social é a violência: dar “carteiradas” em guardas de trânsito; colocar apelidos depreciativos em defi-cientes, idosos, obesos, homossexuais etc; escarnecer de pessoas maltrapilhas; tudo isso e muito mais ocorre em nosso cotidiano. Ou me engano?

Como podemos falar de paz, honestidade, liberdade, solidariedade e outras questões para todos os filhos e pais, com tais práticas? Claro que não é possível! E não é possível porque as duas coisas não são só inconciliáveis, mas principalmente porque produzem efeitos opostos. Uma sociedade cujos indivíduos não aceitam que as diferenças dos outros resultem de escolhas que não lhes dizem respeito; que não dizem “com licença”, “bom dia”, “obrigado”; que tratam os outros agressivamente, por medo ou raiva; que não dão a vez para idosos ou grávidas; que não pedem desculpas quando erram – e se o raciocínio anterior estiver correto, estamos todos errando e muito! -; e que diante de situações desafiadoras ou difíceis apelam para a violência física ou verbal, não pode ser saudável. Consequentemente não pode também ser honesta, pacífica, livre, enfim, tudo aquilo que gostaria de se tornar.

Já foi incorporado ao senso comum dizer que “violência gera a violência”. É uma verdade, mas a questão é mais complicada, e, como sempre ocorre com as grandes questões, reside na causa. Aqui, a causa desta fadiga social, desta hipervalorização do indivíduo em detrimento do coletivo, é um processo de largo fôlego a que a América Latina foi submetida nos últimos 40 anos e que atende pelo nome estranhíssimo de “neoliberalismo”.
No caso do Acre há outros ingredientes além dos experimentos político-econômicos do sistema financeiro. Tivemos entre nós, durante a corrida gumífera, a economia do aviamento: dela nasceu o “espírito” da sociedade acreana, o da violência do indivíduo sobre a coletividade em nome do poder. Influências externas e internas ajudam a explicar como nos tornamos uma sociedade tirânica, predatória, autofágica, onde todos vigiam todos, onde o comportamento polialesco é um dever moral. Como fomos forjados em processos sociais violentos, que ensinam que a normatização de costumes e valores são um ideal de civilização, o apelo ao tradicionalismo e aos heróis e grandes vultos – o galveísmo, o placidismo, o chico-mendismo, e, mais recentemente, o vianismo e o marina-silvismo – tem cada vez maior poder de mobilização.

Mas outras sociedades já fizeram esse percurso.

Após a Primeira Guerra Mun-dial, uma nação afundada na violência das primeiras crises do capitalismo elegeu o seu passado como ideal de futuro. Nessa angústia sacrificou o presente, deixando a condução social nas mãos de um herói do povo: Adolf Hitler. Da obsessão por um futuro que repetisse o passado produziu-se um ideal de purificação que convertesse o mundo, e, nele, uma sociedade violentíssima que presenteou o mundo com a Segunda Guerra Mundial – e que só terminou quando duas bombas atômicas advertiram que o poder de fogo disponível era bem maior que a capacidade de controlá-lo.

No Acre hoje, tirando a disponibilidade para a guerra, ocorre algo diferente? Não é muito difícil encontrar quem atribui a escalada da violência à “falta de valores”. A violência seria um sintoma da falta de tradição, como se o passado fosse menos violento que o presente – eis o mesmo germe do nazismo.

A verdade é exatamente o contrário: em qualquer país, o estímulo e o cultivo a normas coletivas como gentilezas, polidez, tolerância, são o resultado de um processo educacional, de aprimoramento cultural. São construídas. Ocorrem quando uma sociedade decide tornar-se melhor, pluralizando não só as escolhas individuais como também as condições em que os indivíduos fazem suas escolhas. Isso neutraliza o ascenso fascista.

Em suma, para anular a combinação de tradicionalismo e violência, outros conceitos e práticas precisam ser recuperados para o léxico e a prática sociais.  Cosmopolitismo, internacionalismo, solidariedade de classe, afastadas durante a avalanche neoliberal, precisam rapidamente voltar à vida cotidiana. A razão que as demanda permaneceu mesmo após a queda do Muro de Berlim, mesmo com o fim da URSS. Exceto por meio do aumento exponencial da população carcerária e da corrupção em todos os níveis de poder, a democracia meramente formal, representativa, essa que temos hoje, não pode mais dar conta desse quadro.

Não é que as pessoas precisam voltar a sonhar, ter utopias, respirar fundo, meditar. Essas práticas, como se sabe, são socialmente inócuas. As pessoas precisam agir se quiserem ter um futuro, se não quiserem que o que hoje ainda se chama sociedade se transforme numa multidão privada. Começando pelas pequenas grandes coisas. Se quiserem, o amanhã começa hoje mesmo. Agora, já!

* Jozafá Batista é sociólogo.

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