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Admirável mundo velho

Depois da farta distribuição de diplomas para uma parte da juventude semi-alfabetizada, e agora desencantada, digo-vos que ainda há uma meia dúzia de bons alunos em cada sala de aula da minha escola noturna de ensino médio, e já está bom demais. Pena que outrora esses números foram bem superiores aos atuais.

Jogaram diplomas coloridos em papel couche, do alto de uma janela governamental, e a galerinha rude correu a apanhá-los para, depois, poder andar, orgulhosamente, com um canudo debaixo do braço como se fora desodorante.

Também, pudera. Não havia muito a fazer com essa imensa parcela de eleitores entontecidos, aparvalhados, bestificados, com a parca cultura com que foram sorteados pelo sistema que os quis  –  e continuará sempre querendo  –  apenas enquanto massa de manobra do tipo eu te esquento um diplominha aqui e tu me dá o teu votinho chinfrin acolá.

E colou. Colou direitinho. Os embasbacados projetos de novos intelectuais foram presas fáceis de uma armadilha estúpida, bocó. Aliás, todo mundo colou porque, para as elites brasileiras, vale para os filhos dos mais pobres a máxima medíocre segundo a qual quem não cola não sai da escola… E fica de esmola por toda a vida.

Não tão bem lembrada é aquela máxima bizarra da década de 70, dirigida a Gilberto Mestrinho, do Estado do Amazonas: ele roubou, mas fez.

A invenção da Rede Globo, como toda organização que torna a fantasia produto vendável, foi, mais uma vez, genial. A clientela do absurdo concluiu mais uma etapa da vida marcada por tanta enganação e subiu mais um degrau no rumo da inconsistência e da inconsciência com diploma debaixo dos braços tenros a perfumar-lhe as tristes axilas. Nas vinhetas televisivas deixaram-lhes claro que todas as portas estariam abertas, inclusive as das universidades públicas e as das penitenciárias sempre lotadas por aqueles a quem sequer foi dado o direito de sonhar e se enganar redondamente.

E, num desses dias cabalísticos, eu pedi à minha ajudante de ordens, formada pelos programas de educação de jovens e adultos, que lesse um rótulo de embalagem de margarina. Ela balbuciou uma meia dúzia de monossílabos guturais inteligíveis e disse que não conseguiria de modo algum, pois houvera aprendido apenas a escrever a assinatura, como as suas amigas que vivem das sobras que caem das mesas da rasa elite tupinambá.

Ora, esqueceram de ensinar a moça a ler. (Também! Com uma poronga enfiada na cabeça!)

Aqui em casa é que ela, com o apoio das crianças e do adolescente obcecado por livros, tem aprendido muito mais que os rudimentos do be-a-bá dos baianos ensinado nas escolas engraçadas onde se lia, desde criança, três ou mais vezes, Marcelino Pão e Vinho, o velho livro do espanhol José María Sanchez Silva.

Melhor. A Rubisnete está conseguindo ler os textinhos condensados dA Bíblia do Pequeno Leitor (Editora Atos). Outro dia, inclusive, ela já estava a escrever o nome, familiarizando-se com o teclado do computador. Isto é que é uma beleza!

Esta é, sim, a realidade de um espaço bastante diferente daquela dos seringais de Sena Madureira, onde viveu até os vinte e dois anos. Penso que, para ela, este é, talvez, o admirável mundo novo a que Aldous Huxley se refere.

Ora, senhores. Nós um dia conseguiremos viver organizada e harmoniosamente, como prega o senhor Huxley.

E o que vem a ser a ação organizada e disciplinada do admirável mundo novo? Observo que os meus filhos, por exemplo, dispõem de computadores, sim, mas, antes, vão aos livros, porque sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever, inclusive, a sua própria história. (E olhe que eu me indignava quando um velho mestre da Academia, no início dos anos 80, passava, às vezes, uma aula inteira a propalar as qualidades dos filhos ditos muito brilhantes.)

Bem antes, ainda no período colegial, muito eu ouvi das freiras e dos padres que pregavam coisas do tipo a vida não é fácil e você deve se acostumar a essa realidade, mesmo que você seja um filho de seringalista.

A verdade é que não subir e apenas permanecer na base da pirâmide é relativamente fácil. Ruim mesmo é o riquinho nascer no topo e, de repente, no auge da juventude transviada, despencar lá de cima e se estatelar no chão duro da história dos vencidos. O pescoço de vidro perderá a correntinha de ouro e não suportará o baque. Fim da linha. (Aí cabe aquela da regência nominal: se eu vou AO cemitério, é porque voltarei para casa. Porém, se eu vou PARA o cemitério, lá deverei ficar por todos os séculos.)

Então, nasceu em mim essa inclinação por tornar-me um cê-dê-efe, de uma vez por todas; isso há muito tempo. Depois, fugidos os anos, passei a usufruir das prerrogativas e privilé-gios que cabem a esse tipo de gente. Disse-me um desses, lá de Xapuri, o Dr. Félix Almeida de Abreu, parece-me:

– Prestam-nos até homenagens! – Ao que respondi de bate pronto:

– É bom ser legal com os cê-dê-efes. Existe uma grande probabilidade de você um dia vir a trabalhar para um deles. – Ele sorriu divertidamente. Estávamos em Cabo Frio, Rio de Janeiro.
Àqueles que comigo tentam aprender alguma coisa, em sala de aula, tenho repetido uma das máximas mais interessantes do Bill Gates segundo a qual, se você acha que o seu professor é um grande chato, espere até um dia ter um chefe. Ele não vai ter dó nem piedade.

E veio a mim depois um desses tabareuzinhos sexualmente desvirtuados, mas boa gente, a reclamar de uma série de obstáculos colocados por pessoas muito ruins em meio ao seu caminho.
– Ora, professor! O meu pai é culpado pela metade dos meus dilemas. Mamãe tem a outra parte da culpa. O professor de matemática é o responsável por eu não saber dividir por dois. Aquele professor de português pilantra pecou muito porque eu não aprendi a separar as sílabas das palavras. A minha tia escorregou comigo, pois me colocou o primeiro copo de cerveja na boca quando eu era ainda uma criança…

Haja paciência e tolerância para uma litania tão lamentosa. Por isto, mais uma vez, recorri ao Senhor Gates:

– Esqueça quem quer que seja. Pense em você mesmo. Se você fracassar, a culpa não é dos seus pais. Por isso, não os culpe pelos seus erros, mas aprenda com eles.

É claro que estou aqui a compor uma crônica a ser lida, talvez, por ninguém. A moça da psicologia, minha ex-cunhada, Deborah Oliveira, é que prega mais ou menos que, antes de você nascer, os seus pais não eram tão críticos como agora. Eles só ficaram assim por pagarem as suas contas, lavarem as suas roupas, e assim por diante. E ela continua, agora em tom quase profético: antes de querer salvar o planeta para a próxima geração, desejando consertar os erros da geração dos seus pais, tente limpar o vosso próprio quarto.

E a vida peregrina anda lerdamente pelas salas de aula desse mundão. E uma das conclusões a que se chega é que a escola pode ter eliminado a distinção entre vencedores e perdedores, mas a vida não é assim. A boa competição deve ser acirrada. Em muitos casos, o projeto de cidadão não entende que perder faz parte do processo, isto, claro, porque existem os livros de auto-ajuda que tornam milionários autores que vendem o otimismo acima de qualquer suspeita. Isto não tem nada a ver com a vida real.

Aqui, não há a pregação do pessimismo, mas do realismo puro e simples. Por isto, convém lembrar uma assertiva antiga segundo a qual o sucesso é um professor perverso. Ele seduz as pessoas inteligentes e as faz pensar que jamais haverão de cair com os joelhos por terra. Por Deus!

 

Atividade
1.    Busque, no dicionário, o significado das palavras grifadas.
2.    Leia atentamente a seguinte afirmativa: “… os mais pobres continuarão a ser tratados apenas enquanto massa de manobra do tipo eu te esquento um diplominha aqui e tu me dá o teu votinho chinfrin acolá.”. Qual o significado dela?
3.    Faça, aqui, uma lista de cinco razões que podem levar você a cair na realidade e viver uma vida real, segundo o texto.
4.    Explique a seguinte afirmação: “…A verdade é que não subir e apenas permanecer na base da pirâmide é relativamente fácil. Ruim mesmo é o riquinho nascer no topo e, de repente, no auge da juventude transviada, despencar lá de cima e se estatelar no chão duro da história dos vencidos.”
1.    Qual o significado da expressão “ … um desses tabareuzinhos sexualmente desvirtuados…”?
5.    Por que o autor elaborou esta crônica?
6.    Qual a moral da crônica? A partir de qual princípio básico o texto foi elaborado?

Categories: Cláudio Porfiro
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