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O ovo da serpente

Entender por que as sociedades dão legitimidade a regimes totalitários sempre foi um quebra-cabeças para as ciências sociais. As causas sempre são diversas e as análises tendem a reforçar uma ou outra característica, dependendo da linha teórica que se segue. Há, porém, um consenso consolidado há algumas décadas: o apoio popular a tiranias não nasce da degradação moral da sociedade, nasce do combate a ela.

Mais precisamente, nasce da promoção de um ideal normativo de moralidade que deve, em tese, integrar todos os indivíduos e promover a paz. A idéia é que se todos os afazeres legais forem escritos e claros e a obrigação de segui-los for suficientemente enfatizada nos meios de comunicação a sociedade será harmônica, pacífica e coesa.

O resultado disso é uma ditadura moral, fenômeno presente em vários momentos da história – precisamente no período de ascensão de ditaduras.

Esse fechamento conservador nasce de uma única condição: ignorar que a moral, a ética, as leis e a ordem são noções mutáveis historicamente. Não são valores por si próprios, dados e eternamente válidos como se tivessem origem transcendental. A rigor, sequer resultam do consenso social em determinado momento histórico. As leis, por exemplo, são tentativas de remediar, via Poder Legislativo, a explosiva combinação de democracia representativa e classes sociais numa mesma sociedade. Representam interesses que dependem do funcionamento da sociedade sobre uma base de profunda desigualdade entre cidadãos teoricamente iguais. Interesses dos quais fazem parte o Estado, que cria e executa as leis, e a elite financeira, que delas necessita para manter a disciplina dos trabalhadores.

Se os valores morais não existem por si próprios, sendo convenções criadas para administrar as contradições mais profundas da sociedade, tentar adequar à ordem os movimentos por novos direitos revela uma consciência política irresponsável: acossados para defender valores que acreditam como imutáveis e eternos, os indivíduos transformam-se em soldados, prontos para agredir, denunciar e punir em nome do bom funcio-namento do organismo social.

Foi exatamente assim que o nazismo matou 35 milhões de judeus. Em menos de cinco anos – e mataria mais, não fosse a entrada da União Soviética na 2ª Guerra Mundial.

É nesse marco que deve ser pensado um movimento importante como o da luta homossexual. Desde que, em 1927, Sigmund Freud escreveu o “O mal-estar da civilização”, sabe-se que há uma crescente paranóia com a sexualidade nas sociedades com famílias nucleares. A profusão de literatura de auto-ajuda sexual mostra que hoje as pessoas nunca foram tão infelizes nessa área na mesma proporção em que nunca se falou tanto sobre o assunto. O problema nasce, de novo, do enrijecimento das regras sobre a vida real: gays que se casam com mulheres heterossexuais para manter seu círculo de interesses ou a “honra da família”, pessoas que lidam de forma agressiva com homossexuais ou fazem um papel histriônico da sua própria sexualidade para ocultar a sua própria orientação homossexual, mentiras de toda sorte para manter relacionamentos de conveniência – enfim, uma série de situações que muita gente (a maioria de nós) já ouviu falar.

Não se trata, por outro lado, da acusação que alguns atiram desavisadamente ao movimento homossexual quando este assunto é abordado em alguma roda: a de que se pretende converter todos em iguais: gays, lésbicas e assemelhados. Esta lógica missionária seria, sem dúvida, a solução autoritária, a solução do stablishment. O importante aí é que, de forma torta, os que assim pensam acabam por projetar as suas próprias vivências no que consideram o objetivo do movimento.

Em vez disso, há que se fundar a possibilidade de uma democracia sexual. É algo que não temos hoje. Significa que as pessoas possam, livremente e sem coerções externas, escolher se relacionar com quem tiverem atração. Pela simples razão de que não faz sentido condicionar a sexualidade de alguém a um dever-fazer ideológico, a uma lei moral, aos princípios da família ou mesmo aos papéis que uma sociedade espera. Principalmente se esta submissão for um princípio moral atemporal, engessado, universalista.

Mensurar a dignidade de alguém pela sua orientação sexual, pelo gênero com o qual se relaciona intimamente, é provavelmente a atitude mais evidente de alinhamento com essa ordem, e, portanto, tem propensões totalitárias. É mesmo tão difícil perceber que são dimensões diferentes da riqueza do ser humano?

A reação dos deputados da Assembléia Legislativa do Acre (Aleac), e de outros rio-branquenses no dia 20.11 (domingo), a uma manifestação considerada impudica na última parada gay em Rio Branco, é um exemplo lapidar deste perigoso ascenso. Por razões de espaço não discutirei a origem do ovo da serpente acreana. Vou tratar a parada como exemplo para fechar a argumentação de forma que todos entendam a gravidade do quadro geral.

A questão principal e mais óbvia é a do homem simulando sexo oral em outro. Onde mais se pode aguardar ver algo do tipo, a não ser em um evento de contestação à… moral sexual? É evidente que não se aguarda que homossexuais ou heterossexuais façam sexo (ou simulação) em praça pública, em qualquer ocasião. Na parada é diferente, o evento é justamente em nome de uma causa: a busca de uma sexualidade mais livre (pela mesma razão simbólica, várias festas populares exageram o tamanho dos bonecos e personagens). Em um evento de protesto, as atitudes dos indivíduos revestem-se de simbolismo. O povo mais simples, que intui isso automaticamente, aparece sorrindo nas fotos. Por que os deputados ficaram tão indignados mesmo?

Alguns devem lembrar: em diversos países europeus, homens e mulheres já tiraram a roupa em protesto contra o avanço do desmatamento na Amazônia. O que se pretende nos dois eventos, a não ser chamar a atenção, precisamente, para a moral pérfida? A moral que justifica enriquecer matando populações nativas é a mesma que discrimina e até mata por se considerar melhor, elevada, uma dádiva dos filhos de Deus.

Quanto às crianças, a imprensa também erra quando tenta passar esses eventos como dos homens de bem, das famílias e dos animais. É uma tentativa de classificar e enquadrar o movimento. E, a menos que se queira ensinar as crianças a lidar com a sua própria sexualidade de forma menos paranóica, compreendendo essa parte importante da vida como natural e necessária, para que levá-las?
Outro equívoco é estabelecer a condição homossexual como inerentemente não-cristã. Mas, e se homossexuais quiserem ser também cristãos, não podem? Diante das inumeráveis transformações doutrinárias que o cristianismo e outras religiões passaram nos últimos 20 séculos, alguém pode mesmo dizer que tem o monopólio de alguma crença?

Na Alemanha nazista, antes dos campos de concentração, os judeus, comunistas, negros e homossexuais foram encarcerados em guetos. Que história é essa de homossexuais, que ainda são seres humanos com o direito constitucional à expressão religiosa, não poderem cantar uma música cristã em uma parada gay? Desde quando ser homossexual subtrai o direito a uma religião?

Onde os deputados pretendem criar o gueto acreano?

Vi que o deputado Jamyl Asfury (DEM) reclamava direitos humanos para si próprio, pois se considerava atingido em sua religião. Mas, atingido pelo que? A marcha ridicularizou uma religião porque executou uma música evangélica? Isso não é parte da propalada democracia, dado o fato, de novo, que muitos gays são também evangélicos e gostam de música gospel?

Vossa Excelência, o senhor é o dono da religião ou da democracia? Ou de ambas? Felizmente, essas atitudes revelam claramente a concepção de democracia que os nossos – vergonha! – representantes têm: uma vontade inconfessável de guetar a so-ciedade, de separar os indesejáveis dos homens e mulheres de bem, de garantir que a norma moral seja una, universal e, o mais importante, incontestável. O deputado sonha reeditar o 3º Reich?

Concluo esse texto com uma reflexão da filósofa Marilena Chauí, no livro “Convite à Filosofia”:

“Frequentemente, não notamos a origem cultural dos valores morais, do senso moral e da consciência moral porque somos educados (cultivados) para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos. Por que isso acontece? Porque, para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de geração a geração, as sociedades tendem a naturalizá-los, isto é, a fazer com que sejam seguidos e respeitados como se fossem uma segunda natureza. A naturalização da existência moral esconde, portanto, a essência da moral, ou seja, que ela é essencialmente uma criação histórico-cultural, algo que depende de decisões e ações humanas.”

Para reconhecermos isso, basta, aliás, considerarmos a própria palavra moral: ela vem de uma palavra latina, mos, moris, que quer dizer “o costume”, e no plural, mores, significa os hábitos de uma cultura ou de comportamento instituídos por uma sociedade em condições históricas determinadas. Da mesma maneira, a palavra ética vem de duas palavras gregas: éthos, que significa ‘o caráter de alguém’, e êthos, que significa ‘o conjunto de costumes instituídos por uma sociedade para formar, regular e controlar a conduta de seus membros’”.

 

* Sociólogo. Contato: josafabatista@gmail.com

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