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UM CRIME QUE JÁ NÃO É MAIS ‘INVISÍVEL’

 Acre entra de vez na ‘guerra’ contra a exploração local e o tráfico internacional de suas crianças e adolescentes
Procurador Carlos Maia destaca as parcerias e a mudança na atuação do Ministério PúblicoO ano de 2011 foi marcado por muitos avanços para o Estado. Mas, sem dúvida, um dos maiores deles foi o despertar da sociedade acreana para a exploração e o tráfico sexual de crianças e adolescentes, alguns dos crimes mais covardes e socialmente revoltantes da índole humana. O que parecia antes ser uma realidade distante, enfim deixou o campo da obscuridade e passou a ser encarada ‘de frente’ pelo poder público e, acima de tudo, pela população.

O embate contra a violência aos menores ainda não é tão maciço e popular quanto o das drogas, roubos/assaltos, agressões a mulheres e crimes ambientais. No entanto, já deu um passo gigantesco e hoje beira o mesmo nível de preocupação destas outras tipificações de delitos. Tudo graças a uma sólida revolução nas frentes de enfrentamento e de conscientização social. E foi justamente com este progresso combativo que começou a se conhecer os diferentes aspectos da exploração sexual do público infanto-juvenil no Acre.

Descobertas como: os maiores autores dos abusos não são os amigos e os estranhos, mas sim os principais membros da família (estudo das secretarias estaduais de Saúde e de Segurança revela que em 2010 as mães foram responsáveis por 30% dos casos de violências moral, psicossocial e sexual contra os filhos, os pais tiveram 20%, padrastos e madrastas 30% e os 20% restantes ficaram divididos entre conhecidos/amigos e estranhos); a maior incidência é em áreas isoladas da zona rural (mas também há muitos casos em áreas urbanas); há equilíbrio entre meninos e meninas vítimas; o Acre é um dos estados brasileiros que mais concentra casos de menores de 16 anos vivendo ilegalmente ‘casados’ com adultos (fonte: Censo IBGE 2010). Enfim, descobertas que tiraram crianças oprimidas da ‘invisibilidade’.

Mas a pior de todas as revelações é que o abuso aos menores não fica restrito só aos limites do Estado. Pelo país afora e nas áreas de fronteira do Acre com o Peru e a Bolívia, já há casos de adolescentes levados à força daqui para abastecer redes de prostituição e até o mercado negro de órgãos.

É difícil acreditar que os crimes contra menores já tenham chegado tão longe. Parece até tramas de filmes policiais. Mas é verdade.  E nada disso é novo!

Segundo o coordenador da Coordenadoria de Defesa da Infância e Juventude (CDIJ) do Ministério Público Estadual (MPE/AC), Dr. Carlos Roberto da Silva Maia, esta onda de casos que têm eclodido ao longo deste ano não significa que a violência contra o menor tenha crescido num ritmo recorde. E sim, explica ele, que os crimes já existiam, só que eram pouco combatidos. Com a massificação dos canais de denúncia (Disque 100, Conselho Tutelar e a coordenadoria do MP) e a entrada ativa do governo para reprimir os casos, a população passou a se indignar e denunciar os abusos contra crianças e adolescentes, revelando uma alta demanda reprimida.

“Os órgãos públicos sempre tiveram muito empenho para atuar contra estes crimes, mas agiam desarticuladamente. Por isso, a nossa coordenadoria começou a mudar o foco de atuação. Passamos a articular e unir os atores para fazer um trabalho mais sólido, completo e organizado. Isso fez com que a sociedade enxergasse que o problema existe, é sério e que há toda uma rede de atenção para denunciá-lo e combatê-lo”, conta o procurador Carlos Maia.

Mas só estreitar o trabalho e receber mais denúncias não bastaria! Era preciso ampliar a abrangência desta rede de enfrentamento. Por isso, o procurador diz que a CDIJ tem se unido ao governo para detectar, cada vez mais, os casos de vítimas infanto-juvenis. E foi estendendo a procura pelos criminosos que o Ministério Público e o Estado elevaram o seu arsenal de ações até chegar ao ponto de combater, simultaneamente, tanto os tipos de exploração (especialmente a sexual) de menores no Estado, quanto fora dele.

“Foi esta sinergia no nosso trabaho que fez com que estendêssemos nossos limites às fronteiras. Estamos construindo ações em conjunto com o Exército e a polícia, visando controlar o tráfego e coibir a exploração de crianças e adolescentes nas áreas de fronteiras com o Peru e a Bolívia. Nesta última operação das Forças Armadas [Ágata III], a parceria deu certo. Nos postos e barreiras de fronteira, soldados foram orientados a pedir a documentação dos menores que viajavam com adultos, ou até mesmo que fosse demonstrado o tipo de vínculo deste menor com seus acompanhantes”, revelou o Dr. Carlos Maia.

E é bom os acreanos começarem a se atentar um pouco mais para a documentação de seus filhos, de agora em diante. Pois, segundo adiantou Carlos Maia, este trabalho junto do Exército, Força Nacional e das polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF) deve ser aprimorado no futuro. Em investidas posteriores, quem viajar com menores e não comprovar o vínculo pode ficar retido no local até que chegue o conselho tutelar do município mais próximo para constatar o grau de parantesco e/ou relação do jovem acompanhante.

Mas para aonde vão estas vítimas infanto-juvenil do tráfico? Por enquanto, os pontos preocupantes no Brasil são as vilas e comunidades que se formam em torno de garimpos e das áreas construção das usinas hidrelétricas do Norte (Belo Monte, no Rio Xingu/PA, e Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira/RO. Inclusive, há denún-cias informais de casos no distrito de Jaci-Paraná/RO. A CDIJ estuda montar uma comitiva para apurá-las in loco), além dos pólos de prostituição arraigados desde estados nordestinos (núcleo: Bahia) até o eixo MG, RJ e SP. No exterior, as micro-cadeias de prostíbulos mais amea-çadoras são as das cidadezinhas nos arredores dos campos de mineração da Província de Madre de Dios, fronteira com o Peru (a cerca de 550 Km de Rio Branco e 200 de Assis Brasil) e o departamento de Pando e seus vizinhos, na fronteira com a Bolívia.

De onde saem estas crianças e adolescentes? Ainda não há dados conclusivos (a coordenadoria do MPE, junto aos órgãos de segurança do Estado, fazem investigações progressivas sobre isso: quem são os condutores destes jovens, tanto daqui pra fora, quanto de fora para o Acre). Só o que se pode adiantar é que estes menores podem estar saindo de qualquer lugar onde houver descasos e vulnerabilidades nos cuidados de pais para com seus filhos. Pode ser desde as áreas mais ‘ilhadas’ no interior das matas acreanas até a casa do seu vizinho.

Por que é importante impedir a entrada em terras estrangeiras? Segundo Carlos Maia, diagnosticar e controlar o fluxo das portas de acesso e saí-da dos menores no Acre é de suma importância porque, ao deixar o Brasil, a criança/adolescente estará sujeita à legislação de um outro país. Logo, interceder por esta vítima requer dos órgãos locais o pedido e articulação do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) para agir com o devido respeito por estas leis internacionais e a soberania do país em questão, sob o risco de criar uma situação de impasse diplomático em caso de quebra deste protocolo – que muitas vezes é moroso.          

Posição do Governo do Estado: ‘Tolerância Zero’
Ao assumir o governo no começo do ano, a posição do governador Tião Viana e sua equipe sobre a prática de exploração sexual de menores sempre foi bastante clara. Trata-se de uma postura rígida de ‘Tolerância Zero’, com objetivo de erradicar tais crimes do seio da sociedade acreana. A maior prova disso reside no aumento extensivo no número de prisões de agressores, pedófilos e estupradores, partindo de investigações da Polícia Civil.  

Atuação em rede: o diferencial na luta contra a exploração
Se a integração entre as ações foi o grande marco para a conquista de um modelo mais prático e enérgico contra a exploração sexual de crianças e adolescentes, é hora de entender melhor o papel vital do Ministério Público do Acre e da criação do comitê de enfrentamento estadual.

CAVALGADA – Sem dispor de recursos, a CJIP só teve a contribuição e a ajuda de parceiros para ir às ruas no desfile e transmitir sua mensagem. Foi o suficiente não só para participarem, como ainda conseguirem faturar um dos prêmios de comitivas mais organizadas da festa!
De acordo com o procurador Carlos Maia, a Coordenadoria de Defesa da Infância e da Juventude (criada há 10 anos, junto das outras coordenadorias do MPE) mudou sua linha de trabalho na virada de 2010 para este ano, quando ele [o Dr. Carlos] assumiu o cargo. Com isso, a pasta de atuação extrajudicial deixou pra trás uma velha mentalidade de querer resolver os problemas da área com as longas e ineficientes ações judiciais, passando a se aproximar mais dos seus parceiros de luta (órgãos e secretarias do Estado e do Município).

“Em outros tempos, a coordenadoria só reconhecia os defeitos e reunia os promotores para ingressar ações na Justiça. E daí o promotor dava seu trabalho como concluído. Isso mudou. Vimos que tal método era ineficaz, pois as ações demoravam anos tramitando na Justiça. Quando chegavam ao fim, as sentenças nem sempre eram favoráveis à solução do problema e aquela conjuntura inicial já havia mudado totalmente. Por isso, passamos a chamar os órgãos públicos para sentir suas dificuldades e superá-las juntos. Assim, deixamos de ser 1 instituição só para nos tornarmos os articuladores de uma rede completa de atenção”, resumiu ele.    

Fazem parte desta rede as secretarias municipal e estadual de Assistência Social (a Semcas e a Sedss), de Educação (a Seme e a SEE), os conselhos tutelares (os 2 de Rio Branco e os 21 dos demais municípios), as secretarias de Saúde (Sesacre) e de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh), as Forças Armadas e policiais (PM, PC, PF e PRF), vários órgãos da União, o Poder Judiciário (Varas da Família/ Infância e Juventude), entre outros parceiros indiretos (entidades da sociedade civil organizada, igrejas, empresas privadas com compromissos sociais, etc).    

Josenira OliveiraUm símbolo desta mudança e desta união veio com o comitê estadual de enfrentamento, formado pela maioria destes órgãos e secretarias mencionados anteriormente. Reunido, a secretária-geral da Coordenadoria de Defesa da Infância e da Juventude, Josenira Oliveira da Silva, esclarece que este grupo debate, constantemente, as maiores problemáticas que recaem sobre as crianças e adolescentes. Destas discussões, o comitê já delibera as estratégias mais adequadas de implementação de políticas públicas para nortear as ações do Estado.

“Antes, todos se juntavam para fazer operações na Expoacre, no Carnaval, Natal e outras eventualidades. Hoje, o comitê montou um tipo de Sala de Situação e imprimiu um ritmo de trabalho continuado. Feito a partir de metas específicas para os órgãos (cada um sabe exatamente seu papel e o que deve fazer para executá-lo) e tracejadas a longo prazo, o que é mais importante. Desta forma, valorizamos a função de todos, incentivando-os a seguir em frente nesta luta, com novas idéias motivações para o futuro”, detalhou Josenira.

Na última sexta (25), por exemplo, o comitê estava reunido para definir a programação do Seminário de Enfrentamento à Violência Sexual contra a Criança e o Adolescente. Trata-se de uma conferência que o MPE, junto com o Governo do Estado realiza nos dias 7 e 8 de dezembro, para tratar de todos estes e outros problemas abordados por esta reportagem.

Mais frentes de ações contra a violência infanto-juvenil nos anos de 2011 e 2012
Não obstante a forma integrada de atuação entre o governo e o Ministério Público, duas outras grandes chaves para o sucesso na luta contra a opressão de crianças e adolescentes é a variedade e a inovação das frentes de trabalho. Além de potencializar as melhores ações que já vinham sido aplicadas ao longo dos últimos anos, o novo modus operandi trouxe também uma dose de novos projetos que foram sendo implantados ao longo deste ano e já devem atingir o clímax da sua eficácia a partir de 2012, gerando bons resultados.

Coordenadoria tem se empenhado em realizar várias ações ao longo deste ano
Um dos guias deste trabalho, segundo a secretária-geral Josenira Oliveira e o procurador Carlos Maia, é a retomada do PAIR (Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil). O plano estabelece a organização das comissões municipais, a fim de ampliar a atuação na defesa dos menores, interiorizando o combate aos crimes mais graves. Para tanto, as metas dos 10 municípios onde o PAIR foi instalado em 2009 e 2010 (Rio Branco, Cruzeiro, Xapuri, Brasiléia, Epitaciolândia, Assis Brasil, Quinari, Porto Acre, Sena e Plácido) serão revisadas. Assim como serão mantidas a dos 3 municípios onde o PAIR chegou este ano (Tarauacá, Manoel Urbano e Feijó).

Nesse sentido, outros 2 planejamentos da CDIJ a serem consolidados serão o plano decenal de metas do Estado e a Conex@o de Direitos. O primeiro deles, elucida Jozenira Oliveira, é um programa geral de objetivos a serem alcançados pela rede de atenção estadual, a fim de avaliar a qualidade dos seus resultados ao longo de 1 década (uma corrente que deve ser disseminada em todos os estados brasileiros em 2012. O Acre deve concluir os debates do seu plano decenal numa mega conferência, prevista para a metade do ano que vem).

O segundo dos planos – Conex@o de Direitos – trata-se de uma ferramenta que visa dar orientações, otimizar e uniformizar nos municípios acreanos todos os canais por onde passa um caso de exploração de menores. De acordo com a secretária-geral da CDIJ, a Conex@o melhora a visão sistemática da rede municipal de enfrentamento aos crimes infanto-juvenil, além de estudar esta estrutura que o município dispõe para ver quais as lacunas que precisam ser preenchidas para otimizar e agilizar o andamento dos casos. “Vamos desenhar a rede de cada município, complementando o PAIR. Ao lançar o Conex@o de Direitos, vamos publicar uma cartilha da ABMP para mostrar o fluxo sistêmico ideal e o que falta nos municípios para chegar o mais perto possível deste organograma”, esmiuçou Jozenira.  

Por fim, para mostrar que um bom trabalho de gestão não funciona se não houver uma boa mobilização política, a CDIJ, junto do governo, estudam formar a Frente Parlamentar de Defesa das Crianças e Adolescentes. Este grupo terá como missão maior manter aceso na Câmara dos Vereadores e na Assembléia Legislativa os fundamentos do ECA e o debate das maiores questões envoltas dos desafios e dificuldades da luta contra a violência dos menores. “Dizem que as vítimas infanto-juvenis são um público ‘invisível’. Eu digo que elas são, sim, mas que em muitas vezes ocasiões elas acabam sendo também um público ‘ignorado’. Lutamos contra isso. Mas também é missão dos parlamentares evitar que isso aconteça, bem como aprovar leis que fortaleçam nossas ações”, acrescenta a secretária-geral da CDIJ.

Núcleo de Atendimento à Criança e Adolescente: um novo marco
Crianças e adolescentes acabam sendo ‘revitimados’ por causa da burocracia legalDe todos os projetos que vêm sendo estudados pelo Governo do Estado e pela Coordenadoria de Defesa da Infância e Juventude do MPE/AC, o mais ousado e impactante é o do Núcleo de Atendimento da Criança e do Adolescente. O núcleo é tão promissor porque ele seria como a coroação do trabalho conjunto feito pelas instituições do poder público, elevando a parceria a um patamar mais alto: não só de ações, mas sim de estrutura física conjunta.

Este núcleo idealizado, ressalta o procurador Carlos Maia, reuniria num só lugar o Nucria (Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes), o IML (Instituto Médico Legal), o Conselho Tutelar, a promotoria e o juizado especializados. Em outras palavras, quando um menor viesse a ser vítima dos abusos sexuais, por exemplo, ele cumpriria, a partir deste modelo estrutural, todos os procedimentos legais pra encaminhar a investigação e o processo contra os acusados em tempo hábil e com muito menos constrangimento.

“O que acontece hoje é uma ‘revitimização’ da criança e do adolescente. Um menor, após já ter sofrido por abusos em casa, tem que passar por uma série de procedimentos que o constrangem mais ainda. Primeiro, ele é ouvido pela polícia, segue para o IML para fazer exame de corpo-delito [lembrando que a criança não pode se limpar após sofrer o abuso, ou seja, ela precisa esperar, as vezes até horas, suja com fluídos corporais do seu agressor, até ser levada e atendida no IML]. Depois, tem que contar a mesma história para a promotoria e ao juizado. Isso não está certo. Precisamos ter uma política de não agravo do dano psicológico. E o que há hoje é o contrário”, criticou Carlos Maia.      

NÃO SEJA OMISSO. DENUNCIE!

DISQUE  100 (Secretaria de Direitos Humanos da Presidência)
Conselho Tutelar Rio Branco: (68) 3223-3849 e 3223-2963
Disque denúncia Ministério Público Estadual: 0800 970 2078
Telefones do MPE: (68) 3212-2054 / 3212-2038 (CDIJ)
Telefone-geral do MPE: (68) 3212-2000

A Gazeta do Acre: