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Sendas e mistérios

O remédio é esperar, como diz a modinha. Bons ventos apregoam que o presidente da República estabelecerá postos aduaneiros no Mato Grosso, no Guaporé e no Acre. São notícias que chegam da Capital do Acre. Pessoas com estudos supe-riores ocuparão os cargos. Difícil é cobrar impostos nacionais se a República sequer sabe onde fica o Acre. Muitos no Rio de Janeiro pensam que depois do Goiás só tem índio. Nunca ouvi falar da presença de uma autoridade federal por aqui. Vamos ver no que dá…

O meu bom amigo Sororoca e mais o compadre Estácio aparecem sempre à tardinha para uns dedos de conversa. O relacionamento agora é mais estreito. Estou comprometido e serei o padrinho da recém-nascida Leopoldina, assim que o Padre descer o rio.

– Ô nome tão grande para uma criança tão miúda. – É o que digo e é o que fica sem um comentário se sequer… E haja prosa.

Em certa ocasião, na Colocação Breu Velho, no Jurupari, Amazonas, segundo o Sororoca, uma conhecida sua de nome dona Raimunda, casada com um Jóca, cuidava de uma menininha sua de uns dois anos e meio, enquanto o marido fechava a colha. Já umas quatro da tarde. A mata ao redor era um tanto fechada, por isso a claridade já estava quase sob o domínio das sombras. Como a barraca ficava bem próximo à beira da fonte, a uns cinco metros do pé do barrote, ela deixou a criança sentada sobre a mesa da cozinha e foi apanhar água. Coisa de dois minutos e não mais que isso, de volta com a água, o susto foi imenso. A menina houvera sumido como por encanto. E ela procurou daqui e dali e nada encontrou. O marido chegou para a defumação e o desespero ficou maior. Chamaram muito o nome de Rosinha. Caçaram até por dentro da capoeira, e nada. No outro dia, de manhãzinha, alguns vizinhos foram chamados e fizeram buscas até a tardinha, mas não encontraram nem rastro da desaparecida. Ali também, nada mais foi produzido. Parou o fabrico e os dois só choravam o desaparecimento da filha única.

Passados uns três meses, então, com as coisas já quase na normalidade, ela estava como sempre em casa de tarde rememorando os fatos e catando um feijão que houvera apanhado pela manhã. Mais uma vez, foi buscar água, como no fatídico dia. A demora foi a mesma. Um pé lá e outro cá. A surpresa maior aí aconteceu. Quando dona Raimunda levantou as vistas, a menininha estava sentada na mesma posição em que ela a deixara, com a mesma roupa e sorrindo como se nada tivesse ocorrido.

Como tudo isso teria acontecido? Os índios da região haviam sido dizimados nas correrias realizadas há uns cinquenta anos. Os seringueiros vizinhos tinham já de oito a doze filhos e não iriam querer mais uma. Até hoje, muitos são os que dizem que foi coisa das entidades espirituais da floresta e a culpa recaiu sobre o caboclinho da mata, pois o Jóca nunca houvera tido a compaixão de oferecer-lhe um copo de cachaça ao pé da velha cajazeira onde o antigo morador depositava as suas oferendas.

Um velho seringueiro do Albrácia, de nome Chico Broca, morava a uns quarenta minutos do barracão do patrão Raimundo Sargento. Vivia ele, a véia e uma neta filha de um dos seus que houvera se casado e ido para a Boca do Acre. Num sábado, saiu ainda com o escuro para comprar sal no armazém do seringal. Queria voltar cedo para uma pequena moagem de onde tiraria o açúcar preto para o tempero do café.

Como todo seringueiro arrochado, comprou cinco os quilos do sal  –  prevendo ter de salgar uma caça a qualquer hora  –  e voltou imediatamente. Já avistando ao longe o aceiro do seu campinho, onde criava um boi, um garrote, uma novilha, uma vaca e dois bezerros, ele arregalou os olhos de tanto medo. Uma jiboia da grossura de um camburão, de mais ou menos uns oito metros de comprimento, estava enrodilhada na sapupema de uma gameleira com uns olhões aboticados no rumo dele. Ele deu um pulo para trás e se pôs a andar quase normalmente para não espantar a bicha. E andou um bocado e passou de novo pela dita cobra. E fez o mesmo umas doze vezes. A véia talvez já pensasse que ele tomara uma cachaça a mais. Já eram cinco da tarde e ele houvera saído de casa às cinco da manhã. Até que lhe veio à mente uma ideia. Parou, olhou para a serpente e jogou um punhado de sal. Aí ela lambeu os beiços e tirou as vistas dele, ao que o encanto se quebrou e ele, aproveitando-se da abertura da boca do animal, jogou os cinco quilos de sal na bicha. Ela papou tudo de uma só vez, com o saco e tudo e, em seguida, saiu serpen-teando rumo ao Igarapé Morro Branco que corria por dentro da colocação. A sede era muita. Na verdade, segundo o compadre Estácio, a cobra queria que o seringueiro ficasse cansado e dormisse. Seria mais fácil matar o Broca no aperto.

Num desses dias de verão, ouvi e anotei boa parte do que aqui é relatado não apenas por Sororoca e Estácio, mas por outros comboieiros e seringueiros também, como o testemunho de um sujeito carrancudo, entroncado e grandalhão, meio índio, chamado Anastácio que, no Seringal Iracema, viu com esses olhos que a terra há de comer, o tal mapinguari.

Um dia à tardinha, ele chegava da colheita quando desconfiou que alguma coisa se mexia entre a folhagem de uma bananeira braba, na beira do barranco do rio. Então, com a espingarda armada, deu uma volta por trás de uma castanheira e de perto pode avistar o bicho. É metido a macho, mas ficou paralisado ante a visão do gigante peludo.

– Não me mexi de jeito nenhum, e não fui visto pela coisa medonha. O olho no meio da testa revirava como se estivesse vendo até pra trás. A boca no lugar do umbigo fazia um grunhido, como se quisesse falar, e gritava que nem caçador. Os pés tinham o formato de mão de pilão e tinha uns 3 metros de altura, ou mais. – Foi o que anotei do Anastácio.

Segundo o Sororoca, ninguém pode responder ao grito do mapinguari. Se assim for feito, ele vai ao encontro do desavisado e o mata. A criatura é feroz e não teme nem caçador, porque é capaz de dilatar o aço quando sopra no cano da espingarda. O animal sempre leva vantagem e os que conseguem sobreviver ficam com terríveis marcas no corpo pela vida afora. E o bicho só sai pela mata durante o dia, guardando a noite para dormir. Quando ele anda pela floresta, vai gritando, quebrando galhos e derrubando árvores, deixando um rasto de destruição. Mas basta ele vê uma preguiça e sai em fuga acelerada. O que ninguém explica é o motivo do medo justamente da sua prima dos tempos da pré-história.

De passagem pelo banco onde estávamos sentados contando os nossos causos, Das Dores, filha mais velha do compadre Estácio, fez com que este lembrasse o tal boto encantado que gosta de moça bonita e assombra o povo da beira do rio lá pras bandas da Boca do Acre, Lábrea e Pauini.

Durante as noites de festa, o boto se transforma num rapaz muito bonito que se veste de branco e usa uma vistosa chapeleta de abas pequenas. Dizem que dança muito bem e gosta de beber. Como um cavalheiro, ele conquista a jovem mais bonita da redondeza e a leva para a beira do rio. Tempos depois, a moça aparece grávida. E te mais: o bicho encantado, quando está transformado em homem, nunca tira o chapéu branco para que não lhe vejam o pequeno buraco que tem no alto da cabeça.

No médio Purus, quando uma moça aparece grávida e não sabe quem é o autor da barriga, logo todos afirmam que foi o boto. Além do mais, em Manaus, nos anos vinte, havia um intendente municipal em cuja certidão de nascimento não havia nome de mãe, nem de pai, nem de avô, nem a data do nascimento. Nunca se ouviu dizer que havia um parente que fosse, em qualquer lugar do mundo, apesar de ele ser dono de uma fábrica de leite em pó. O Dr. Umbelino era filho de um boto tucuxi que se enamorou por cima da mãe dele sob um luar de verão numa praia lá pras bandas de Manacapuru.

Depois, ouvi algumas constatações da dita existência fantasiosa do caboclinho da mata. É que muitos seringueiros já foram assombrados por esse indiozinho pequenino que é dono das caças e persegue e castiga aqueles que caçam sem a necessidade de carne fresca.

Também contaram de um certo índio feiticeiro, no baixo Purus, que bebe o chá do cipó gaiteiro, vê figuras horrendas que dizem ser o demônio, com cabelos grosseiros, barba de bode, pé de pato, orelha de cachorro, uma vela na cabeça e mulheres com quem o enfeitiçado pratica o ato carnal. Os feitiços são feitos por vingança, por ciúme e, ao toque do maracá, sempre uma vida está marcada para ser extinta.

Enfim, como dizem os ibéricos, não se pode acreditar nas bruxas, mas que elas existem, existem… Estas histórias seringueiras são deveras bizarras.

* José Claudio Mota Porfiro é escritor.

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