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Na fronteira Brasil-Peru, índios se mobilizam contra obras binacionais

A anexação do Acre pelo Brasil em 1904 deixou em países distintos povos que habitavam uma mesma região. Mas a exploração econômica da área tem estimulado a aproximação entre esses grupos indígenas, em prol de uma estratégia comum na defesa de seus direitos.

Inaugurada em 2011 e batizada de Interoceânica, a rodovia que liga o noroeste brasileiro a portos peruanos no Pacífico foi construída com a promessa de desenvolver a região e é o carro-chefe de uma série de obras destinadas a ampliar a integração entre Brasil e Peru nos próximos anos.

Índios peruanos e brasileiros, porém, temem os efeitos que esses empreendimentos possam ter numa das áreas mais isoladas da América do Sul, em território ainda largamente coberto pela floresta amazônica.

Eles também se dizem preocupados com os projetos de exploração de petróleo e gás natural nos dois lados da fronteira e com as ameaças aos índios isolados da região.

Segundo o Censo de 2010, há 15.921 índios no Acre. A maioria vive nas cerca de 30 Terras Indígenas (TI) no Estado, quase todas na região de fronteira.

No lado peruano, faltam dados precisos sobre a quantidade de índios, mas, segundo o Censo de 2007, há cerca de 270 comunidades indígenas nos Departamentos (Estados) de Uyacali e Madre de Dios, que fazem fronteira com o Acre.

Migração massiva – Jaime Corisepa, presidente da Federação Nativa do Rio Madre de Dios e Afluentes (Fenamad), principal movimento indígena de Madre de Dios, diz que a Interoceânica causou um grande impacto na região, ao permitir a migração massiva de moradores da cordilheira dos Andes para a Amazônia peruana.

Atraídos pelo ouro em Madre de Dios, milhares desses migrantes têm se instalado em acampamentos à beira da rodovia, desmatando a floresta e poluindo rios com o garimpo. “Essa superpopulação destrói o meio ambiente, que é nossa fonte de comida”, afirma.

Alcoolismo e prostituição – Em seu trecho brasileiro, a Interoceânica também impactou indígenas. Segundo Juan Scalia, coordenador-substituto da Funai em Rio Branco, em 2 comunidades no Amazonas cortadas pela estrada houve incremento nos casos de alcoolismo entre índios (há bares a menos de 500m das aldeias), de caça e pesca ilegal e na ação de madeireiros.

Ele também afirma que, em obras como essa, é comum que índias sejam assediadas por operários e, não raro, acabem se prostituindo.
Nem todos, porém, condenam a estrada. Moradores de aldeias cortadas pela Interoceânica dizem que ela barateou produtos nos mercados locais e rompeu o isolamento da região.

Tráfico de drogas – Lucas Manchineri, morador da Terra Índigena (TI) Mamoadate, no Acre, diz que a estrada intensificará a ação de madeireiros e o tráfico de drogas na fronteira, problemas que já afetam sua comunidade. Manchineri afirma que, nos últimos 10 anos, cerca de 50 traficantes foram detidos por índios enquanto atravessavam sua TI, tendo sido posteriormente entregues a autoridades brasileiras. “Estamos fazendo o trabalho da Polícia Federal e do Exército.”

Ele também se diz preocupado com as consequências da nova estrada para os índios não contatados que habitam a região, estimados em algumas centenas pela Funai.

Para Manchineri, com a estrada, essa população buscará refúgio em áreas ocupadas por outros indígenas, o que pode desencadear conflitos.

Pelas mesmas razões, outra obra planejada na região fronteiriça preocupa índios dos dois lados: a construção de uma estrada ou de uma ferrovia entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa.

Há ainda temores quanto à exploração de petróleo e gás natural na região. No lado peruano, vários lotes já foram cedidos a empresas privadas para a prospecção dos bens.

Obstáculos – A disposição em frear a exploração de madeira, porém, não parece ser unânime entre índios peruanos, o que dificulta um maior entendimento com os indígenas brasileiros.

Em reunião recente na Bolívia, Letícia Yawanawá, vice-coordenadora de uma organização de mulheres indígenas brasileiras, disse ter sido questionada por índios peruanos por que os “parentes” do Brasil não recorriam à venda de madeira para amenizar a pobreza.

“Eu respondi que hoje eles podem vender, mas e daqui a 50 anos? A floresta acaba. Saí triste do encontro, fiquei com dó dos parentes.”

Já índios peruanos afirmam que, no Brasil, o movimento indígena parece estar fragmentado e ter menos força do que ONGs ambientalistas.

A relação deverá ser facilitada com a inauguração, neste ano, de um prédio na Universidade Federal do Acre que terá como uma de suas funções alojar indígenas durante reuniões internacionais. (João Fellet / BBC Brasil)

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