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Carta à prima Ducélia Mota

Distinta prima. Por estas mal traçadas linhas rogo a Deus que lhe proteja no meio dessa chuva que cai de baixo pra cima.

… Universidade Federal do Acre, ano de 1925, igual a Ilhéus da Bahia. Mera e rica província. O Vesúvio irrompe mais uma vez. Parece até que Netuno, o deus dos mares vestido de saia plissada, mais uma vez, deu pisada forte na placa tectônica e promoveu a maresia que varreu o Japão. É que as eleições estão à flor da pele. Candidatos se engalfinham. Não seria preciso mostrar os dentes, mas mostram.

Felizmente, há uns que agem com parcimônia e pensam em inovação real. Mas o tempo fecha mesmo. A maledicência anda em alta voltagem, inclusive, em ambientes distantes do convívio acadêmico, nos tabloides eletrônicos  –  meio imbecis  –  da minha aldeia repleta de sábios de meia pataca.  

No hoje, no agora, por exemplo, observei muitos estarem esquecendo completamente que isto aqui é uma comunidade  –  cheia de ranços e rançosos  –  mas é. Fiquei bestificado com uma comadre minha, quase irmã, conhecida há trinta anos. Ela, antes, dava-me a mão efusivamente, abraçava-me e tinha palavras de carinho e elogiosas ao meu respeito. Agora, em meio ao corredor vazio, só eu e ela de transeuntes, ninguém mais. Pisada firme, nenhum olhar, nenhum meneio de cabeça. Isso é que é. Sacanearam as minhas relações pessoais só porque tenho um mísero votinho a preço irrisório, gratuito como deve ser.    O outro irmão serelepe, de forma democraticamente desvairada, foi à coordenação do curso de formação de pangarés paraguaios e disse:

– Se os alunos de cá não votarem no candidato Aristeu  –  aquele que mente mais do que eu  –  não haverá mestrado pra ninguém!

Uma grande sacanagem. Querem trocar o conhecimento pelo peso de consciências que ficam aterrorizadas ante perspectiva tão deprimente  –  a de não ter vez na hora da distribuição das batatas. Fica-me, então, a mensagem do voto de cabresto: esta Universidade te presenteará com a sabedoria se tu votares no Aristeu, aquele que é mais do que eu. É como se o saber não estivesse à disposição de todos numa Instituição que poderia zelar pelos que buscam aprimorar-se. O que é isso aqui? Mãe Joana não aceita vitupérios… Sim! E qual foi o último livro que o senhor leu desde o ano do rompimento da represa?

Pior é notar desequilíbrio puro em espíritos antes tão sóbrios. Há, sim, um magote de loucos soltos pelos corredores. Ser infeliz é ir além e observar que muitos dos que pregam a ética em sala de aula esquecem-na quando o momento exige a tramoia e o compadrio.

Tenho mais uma menção a fazer. Parece não terem partidarizado a campanha, pelo menos até agora. Isto porque no Brasil as políticas de desenvolvimento social são sempre esquecidas em detrimento da política partidária, esta última, um mal necessário a corroer as entranhas dos que precisam de benefícios, como os alunos. É sim! Qualquer murmúrio no sentido da partidarização do pleito será pura maledicência dos que não querem a ordem, mas a reedição do caos.

Ora, querida prima! As eleições no Quinari dos anos 50, como bem lembramos, transcorriam em clima menos hostil. O pipoco do rifle e a catinga de pólvora queimada eram comuns até. Trocava-se bala a preço irrisório, é claro, mas sem tanto estardalhaço. Corpos iam ao buraco, sim… Ao passo que aqui, agora, nestes dias de Deus meu, almas são trucidadas quando lhes roubam o livre arbítrio e o direito de escolher por si só.

É por isso que nunca fui de pedir voto a ninguém. Digo apenas que a minha escolha é o fulano de tal e, se o interlocutor quiser, que também vote nele. Tudo isto porque jamais interferiria nas preferências de ninguém, justo porque não quero que nenhum bandoleiro queira que eu vote em quem eu não quero. Que me deixem quieto. Eu, cá de minha parte, até já aprendi a ler, isto, depois que desci da árvore e lá deixei os irmãos símios catando coquinhos.

Ademais, acredito que todos têm o direito de espernear e de se debater ante a possibilidade do insucesso. O que me torna um provinciano inquieto é a agressão, a injúria, a encrenca e a desordem que gera o caos.

Afianço-te que nunca havia participado tão açodadamente dos processos eleitorais desta Casa, porque sempre tive medo de dizerem de mim aquilo que não sou. Mas fui tocado pelos ventos que falam de inovação, inclusive e principalmente de ideias. Vi que as preferências recaem sobre os mais moços, merecidamente, justo porque a sua formação, o seu compromisso e a sua competência são responsabilidades nossa. Se eles fizerem bem feito, mérito nosso. Se ocorrer o contrário, os nossos ensinamentos terão também sido falhos, lamentavelmente.

Muitas das almas errantes e sabotadoras de consciências, como aquelas a quem me referi lá em cima, deveriam dar importância ao fato de, sem o seu azedume e as suas agressões, a democracia, também, apesar dos enganadores, regurgita de felicidade, dá gritos de relativa euforia, porque cada vez mais barreiras são vencidas. Se estávamos nós satisfeitos porque os servidores técnico-administrativos já têm voto paritário em relação aos professores, agora estamos bem mais contentes porque os alunos farão a sua escolha através de sufrágios com igual valor se relacionados aos demais componentes da comunidade universitária.

Reedita-se, enfim, mais uma vez, o caos. O candidato mais bonito poderá ser eleito e, na próxima quarta-feira, pensará que votei no mais feio. Talvez este menos belo venha a ser eleito e concluirá que o meu voto foi para o príncipe ou para a princesa. Se eu corro, o bicho me pega. Se fico, o animal me janta. Na hora da distribuição dos cargos rentáveis, em quaisquer dos casos, eu ficarei sem nenhum, posto que os meus olhos verdes ou azuis não estarão em discussão e muito menos alguém haverá de levar em conta as minhas parcas habilidades com as letras ou até mesmo com a execução de projetos. E há outra síntese. Em terra de cego, aquele que tem os dois olhos bem abertos não será mero súdito, mas será escravo e apanhará como galinha para largar o choco, por anos a fio.

É, minha cara prima! A favela de hoje é pior que a senzala de ontem. Antes, apanhávamos bastante, mas tínhamos o de comer. Hoje, o prato de lata fica vazio e poucos são os que conseguem passar dos vinte e cinco anos de vida produtiva numa seara onde não basta ter conhecimento. Aos ímpios, convém a bajulação. Aos coerentes, muitos querem fazer calar. Pois então, que Deus nos guarde até nesta hora em que muitos dentes haverão de ranger com a perda das remunerações mais substanciosas.

Seria melhor pensar que as eleições se avizinham e que os partícipes devem esquecer esse jogo bruto que nos escandaliza e nos atira no olho do furação, mais uma vez. Têm-nos visto, lá fora, enquanto um grupo que não quer o bem da comunidade geral  –  o Acre do Brasil  –  mas apenas a manutenção do poder através do escárnio ao equilíbrio das relações.

Minha prima. Dê um abraço na família e transmita os cumprimentos deste seu primo que não lhe tem esquecido, de jeito nenhum.

*Acesse o www.claudioxapuri.blog.uol

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