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Tempo de felicidade

No clube, não há música de qualidade duvidosa. Tudo aqui é de primeira categoria, a começar pelas pessoas que se acercam de mim em cumprimentos e mesuras de boas vindas. O baile é dos melhores. Os detalhes foram cuidadosamente planejados. Os ritmos são mais ou menos os mesmos dançados em Belém, levando-se em conta, inclusive, que há uma certa elite cheia de exigências, uma vez que muitos são os que vêm, inclusive, do Rio de Janeiro, dentre outras cidades, além dos estrangeiros. Uma bela moça, que depois disse chamar-se Zelita Rodrigues, afoitamente, tira-me para uma contradança. Até que não lhe piso os pés de fada. A valsa para a qual pediram bis três vezes é aquela do Francisco Petrônio que diz:
O nosso amor traduzia felicidade e afeição.

Suprema glória que um dia tive ao alcance da mão…

Nesta cidade, cheguei e fui sentindo aos poucos, talvez em menos de um mês, que um grupo de homens e mulheres se dão as mãos e vão caminhando, concentrados, no mesmo rumo. Eles olham em direção ao futuro com uma certeza a mim perturbadora, afinal, em fins da primeira metade do século vinte, no meio da Amazônia, num dos recantos mais inóspitos da Terra, já em direção ao sopé dos Andes, só floresta e rios, a esperança que os nutre só cabe nos sonhos de quem quer fazer realmente alguma coisa acontecer, florescer.

Noto que até pouco tempo, as coisas andavam um tanto mal paradas por aqui. Só que essas almas teimosas têm as suas vidas compostas por grandes sonhos e, juntos, elas os estão ligando à ação. E isso é algo muito interessante. É que, apesar da pouca idade, ainda não sou um especialista em projetos que não dependam apenas de mim. É admirável toda essa união de propósitos. Nenhum brasileiro à distância acreditaria nestes meus relatos. Tudo muito me surpreende.

Estou contaminado pelo ar progressista da maioria das pessoas. Já até vejo como ser útil deveras. As minhas funções permitem fazer alguma ou muita coisa por essa gente, ou pelo menos ajudar a tornar palpáveis os seus projetos. Por isto, tenho conversado com gente de destaque da terra. Têm dito por aí que também sou um ilustre e represento a República por estas paragens. O dinheiro federal que virá para o Acre não será uma fábula, mas servirá como a água no feijão. Como os sonhos ainda são de tamanho médio, tudo o que há de vir será de extrema utilidade.

Outro dia mesmo, num domingo à tarde, estive em companhia do Dr. Paulo de Menezes Bentes, fundador da Academia Acreana de Letras e ligado à área da justiça no Território. É um homem sisudo, mas polido por demais. Educado e solene. Talvez tenha pouco mais que a minha idade, mas usa barba fechada e também é já um engajado. Foi nele que observei a capacidade de sonhar com o futuro, concretamente, com os pés no chão e as mãos na massa muito própria dos de cá. É que, ao juntarem nordestinos brasileiros, portugueses e turcos, formaram, em síntese, essa mistureba cultural que aqui significa seguir em frente sem recuar, sem cair, sem temer, conforme a letra do Hino do Acre.

Depois, já em insônia, fiquei tomando umas anotações acerca do que tenho sentido por aqui. Vi, sim, que destruir esses sonhos é matar a alma deste povo. É mutilar a vida. E esse é o meu canto, a minha cidade que nasce. Sou já daqui. Faço já parte da paisagem. Essa quimera coletiva é o que se tem de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso. Eis o meu Acre. Já.

Aqui, apesar de alguns pessimistas indispensáveis ao redor, vejo que temos sonhado os melhores sonhos que são exatamente aqueles que nos põem a pensar e a se mexer, a trabalhar. Há muito de verdade quando se diz que os únicos devaneios de que vale a pena falar são os que não nos deixam dormir. Por isso, todos agem.

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Mandei erguer uma casa avarandada e grande, em madeira bordada nos beirais, na esquina da Rua Floriano Peixoto com a Rua Benjamin Constant. Seu Zé Cardoso, carpinteiro e marceneiro – construtor do Grupo Escolar Sete de Setembro e também fabricante de móveis de fino acabamento – é um homem de meia idade, um sábio que leva acima e abaixo uma alma carregada de esperança. E isso me deixa também esperançoso e feliz. Ainda verei, em futuro não muito distante, uma cidade bem bonita chamada Rio Branco do Acre.

Pois bem. A esperança do Seu Zé Cardoso é um pouco maior que a minha. Já. Outro dia, por exemplo, ele me disse algo parecido com um adágio grego antigo segundo o qual o homem superior é o que permanece sempre fiel à esperança; não ter esperança é coisa de gente sem suor e sem sangue. Depois, em casa, como sempre, pensei em que a esperança não é nem uma realidade nem um sonho besta. É como os caminhos da Terra, que não existiam e que só foram feitos graças ao grande número de passantes pra lá e pra cá. Por tudo isto é que tenho orgulho de ser parte deste povo. As suas conquistas serão a nossa vitória. A minha também, é claro.

Em cinco meses, Seu Zé Cardoso e dois ajudantes me entregaram pronta a casa com cerca de madeira e pintada em verde. Um luxo. Enquanto residência é, talvez, a mais bonita da pequena cidade.

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Meados de dezembro, dezenove. O Natal se avizinha. Finalmente, terei os filhos e a esposa ao meu lado e todos os amigos turcos daqui  –  segundo dizem  –  já sabem disso e organizam as boas vindas.

É um tanto solene o apito do Republicano. Trata-se de um belo navio construído para cabotagem. Muita gente está no convés. Quase todos vestidos de ternos brancos e chapéus de massa à cabeça. Muitos também estão próximos ao Mercado Municipal à espera dos que chegam. A atracação é do lado de cá. Houve um aviso antecipado segundo o qual no porto do outro lado do rio há uma boa quantidade de embarcações de todos os tamanhos. Um grande número de pessoas seguirá para Xapuri e Brasiléia. A tripulação é experiente e logo a grande embarcação está atracada.

Depois de trinta e dois dias de viagem, eis que enfim posso abraçar os meus em meio a muitas lágrimas minhas, principalmente, e de Latifa, a esposa amada. Os pequenos não sabem o que é sentir saudades de um pai que praticamente não conhecem, e eu aprendi a chorar com os livros que tenho lido ao longo de todos esses anos no Ceará, no Pará e no Acre. Dos nordestinos por aqui, não conheço um que tenha aprendido a arte do choro justo porque sofrem demais e muito mais que eu. Já não têm água nos olhos. A alma lhes está ressequida.
Seis baús enormes vieram abarrotados de roupas, tapetes, cortinas, toalhas, lençóis, tecidos, água de cheiro, dentre outros. O desembarque é feito em um tempo mínimo e tudo é levado na frente pelos estivadores antecipadamente apalavrados.

Apresento os meus a todos os batrícios que os abraçam e os beijam efusivamente. Latifa recebe flores. Jorge e Samira recebem brinquedos. Membros das famílias Assmar, Farhat, Yunes e Rachid, dentre outros, seguem-nos em séquito até a morada recentemente construída, a uma distância de mais de seiscentos metros do porto. Eles moram do lado de Rio Branco, mas vieram para o lado oposto do rio  –  Penápolis  –  para fazer a recepção.

Surpresa agradável, inclusive no meu caso particular, é que, já em casa, há uma porção de iguarias sobre uma mesa forrada em toalha de renda, uma espécie de merenda, às três da tarde. São pãezinhos árabes, tabulis, esfirras, quibes, bolinhos de carne, creme de cupuaçu e refrescos de abacaxi, cajá e graviola. É empolgante a arte de fazer recepções desses corajosos acreanos oriundos da Ásia.

Há reza maometana e discursos dos patriarcas eufóricos. Às oito da noite, deveremos atravessar o rio para um jantar que nos está sendo oferecido pela colônia turca no clube Tentamen. Quanta deferência! Eu não fui informado sobre coisa alguma, mas, em discurso, digo-lhes que estou em casa e que sou muitíssimo grato a todos pelo carinho, pela acolhida e pela atenção dispensada.

Os primeiros dias significam uma nova lua de mel, agora em companhia das crianças. Ficamos muito felizes por estar em meio aos acreanos.

Em visita ao governador Epaminondas Martins – e seus funcionários de gabinete mais próximos –  apresento-lhes solenemente filhos e esposa. Nos passeios pelos jardins do Palácio e na Praça Rodrigues Alves, somos cumprimentados e afagados por todos. Latifa, agora, compreende muito bem o sentido de todos os meus esforços:

– Melqui! Não tardará o dia em que serás governador por aqui! Todos te querem tão bem.

– É. Na verdade, sou feliz aqui por agora poder contar com a minha família e, depois, por poder ajudar a esse povo que caminha tão bem e já com as próprias pernas. Além disso, nada pretendo ser e o meu cargo já me basta. Depois, completado o tempo que nos cabe aqui, voltaremos para as nossas origens.

Estou agora muito bem instalado numa sala de tamanho médio nas dependências do Palácio do Governo. São estes os primeiros dias da Mesa de Renda Federal do Acre. Disponho de uma máquina datilográfica Underwood Noyseless de tubo grande, duas mesas compridas, um armário em mogno, seis cadeiras estofadas, um balcão elegante e dois livros para os registros devidos. Mãos à obra!

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É preciso avaliar as formas segundo as quais a minha ajuda poderá ser proveitosa. Sou da seguinte opinião: outro sentimento por aqui recorrente é o do orgulho de quem é acostumado a vitórias. Benza Deus!

*Acesse o www.claudioxapuri.blog.uol.com.br.

Categories: Cláudio Porfiro
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