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Seis anos da Lei Maria da Penha, o que mudou? Em que mudou? Será que mudou?

A violência contra a mulher não é um fato da sociedade moderna. Embora só nas últimas décadas tenha sido visibilizada publicamente, já na escravatura, durante o Império e nos períodos subsequentes, a mulher era objeto de dominação masculina, sofrendo agressões de toda ordem, as quais eram restritas ao âmbito doméstico e familiar, exteriorizando-se mais na sua forma física, em particular, a sexual.

A tênue mudança, ao longo de décadas, ocorreu apenas na visualização da mulher e na natureza da agressão. Antes, apenas um ser carnal, objeto de desejo, sem vontade própria, o que pode ser sentido, por exemplo, na novela Gabriela, reprisada, no momento, pela Rede Globo. Após, com os movimentos feministas, nas décadas de 70 e 80, apesar de a mulher passar a ter vontade própria, continuou sendo vista como um ser inferiorizado, desqualificado, principalmente para o mercado de trabalho. E a violência saiu do âmbito doméstico e familiar, na sua forma física, para alcançar outras áreas e se materializar de outras formas, como a violência moral, psicológica, patrimonial…  

O fenômeno da violência contra a mulher, seja ela de qualquer natureza, e ainda que fora do âmbito doméstico e familiar, é inerente ao padrão das organizações desiguais de gênero, as quais são tão estruturais quanto a divisão da sociedade em classes sociais, ou seja, o gênero, a classe e a raça/etnia são igualmente estruturantes das relações sociais. Na realidade, as diferenças entre homens e mulheres têm sido sistematicamente convertidas em desigualdades em detrimento do gênero feminino, sendo a violência contra mulher, na esfera familiar e doméstica, a sua face mais cruel.

No Brasil, além da violência física, se-xual, moral, psicológica e patrimonial, as quais ocorrem frequentemente dentro dos lares, de regra entre quatro paredes, praticadas por companheiros/esposos, namorados, amantes, filhos, pais, parentes próximos ou por aqueles que já tiveram com as vítimas uma relação de afeto (o que as tornam mais vulneráveis a estas práticas), as vítimas sofrem, também, a violência social disfarçada, que se reflete fortemente no dia-a-dia de todas as mulheres fora de suas casas, fazendo com que sejam discriminadas na vida pública, na escola, no trânsito, nos salários infe-riores aos dos homens, na maior dificuldade de ingresso no mercado de trabalho, etc.

Quando se trata de violência familiar e doméstica, as mulheres sofrem, ainda, violência no atendimento do sistema de rede, decorrente da falta de conhecimento e capacitação das pessoas que lidam com a causa. Além disso, são vítimas da discriminação e do corporativismo da maioria dos agentes policiais das DEAM’s, os quais, seja intencionalmente ou não, demonstram não estar aptos a compreender a dinâmica dos atos violentos por elas vividos e, em algumas vezes, até mesmo fazem pouco caso das agressões sofridas pelas mesmas, contribuindo para que sejam ainda mais vitimizadas.  A constatação que se faz é que esses profissionais têm dificuldade em lidar com fenômenos dessa natureza por estarem inseridos na mesma estrutura social e cultural de relações e de simbolizações do gênero, origem de variados tipos de violência contra as mulheres. É exatamente essa estrutura, a qual desvaloriza as mulheres, que norteia as concepções e práticas desses profissionais.  

O cenário nacional após a lei           
A lei 11.340/2006 foi considerada pelo UNIFEM (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher) como uma das legislações mais avançadas do mundo. Não obstante esse seu caráter inovador e os esforços até aqui empreendidos, a violência contra a mulher está longe de deixar de ser uma realidade na vida da grande maioria das mulheres brasileiras, principalmente das pobres e negras. Para muitas, o ciclo de violência por elas vivido em nada alterou após a edição da lei, o qual permaneceu “camuflado” no interior dos lares de milhões de brasileiras.

No Acre, os dados constantes da Vara (a única com competência privativa na Capital do Estado) revelam que a realidade não é diferente. Conforme levantamento feito, no interregno de 04 (quatro) anos (29.02.2008 a 29.02.2012), a Vara de Violência Doméstica e Familiar da Comarca de Rio Branco registrou um acervo processual de 19.225 feitos, assim distribuídos: 6.592 inquéritos policiais; 1.083 ações penais e 9.503 medidas protetivas (nesta data a Vara aponta um acervo de 20.120 feitos distribuídos, dos quais 14.141 já foram julgados/encerrados). Ressalte-se que esses dados são apenas da Capital, não se tendo o retrato da violência no interior do Estado.

Conclusão
A necessidade de edição da lei 11.340/2006 apenas revelou o nível da cultura brasileira no que diz respeito à questão da violência contra a mulher. Precisou se ter uma lei para dizer que em mulher não se bate, que sua integridade física, moral e intelec-tual deve ser preservada. O fato de essas garantias constarem do texto constitucional, desde 1988, não foi suficiente; fez-se necessário trazer a questão para o âmbito infraconstitucional.

Mas, ainda assim, e apesar dos esforços do CNJ, que tem atuado, ao longo dos últimos cinco anos, na divulgação da lei e no monitoramento de sua eficácia e apli-cabilidade no âmbito dos tribunais, exigindo-lhes a criação e instalação de Varas e Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, bem como a instalação e estruturação das coordenadorias criadas por força da Res. nº 128, ainda há um longo caminho a percorrer para que a Lei Maria da Penha se torne uma realidade na vida das mulheres brasileira vítimas de violência doméstica e familiar.

Dizer, porém, que tudo continua como dantes também seria muito pessimismo. O primeiro resultado, que considero por demais positivo, foi tornar público, através das estatísticas, uma realidade que, embora a sociedade dela tivesse conhecimento, teimava por dela não querer saber. A agressão, que antes pesava apenas no bolso, com o pagamento de cestas básicas nas transações dos Juizados, passou a custar uma restrição à liberdade (prisão preventiva) ou uma restrição ao convívio do lar (medida de afastamento) retirando o agressor, ainda que provisoriamente, de sua zona de conforto.

Não há como deixar de reconhecer as inovações trazidas ao sistema jurídico brasileiro pela lei 11.340/2006, dada a sua natureza híbrida, com a introdução de novos tipos penais e de outras áreas do direito, como: civil, previdenciário, trabalhista, e até administrativo, dentro do mesmo texto legal, com o estabelecimento de medidas de proteção à vítima e de proibição ao agressor afetas a essas áreas, como, por exemplo, a suspensão da posse ou restrição do porte de arma; a determinação ao órgão empregador do afastamento temporário da vítima do emprego; a participação da vítima em cursos profissionalizantes; a proibição de o agressor celebrar contratos de compra, venda e locação de imóvel, etc. Além de representar uma ousada proposta de mudança cultural e jurídica, a lei busca erradicar  a violência praticada por homens contra mulheres com quem mantêm vínculos consanguíneos ou de afetividade.
Podemos afirmar, então, que em nível de legislação estamos muito bem.                     Mas o que falta, então, para tornar a lei Maria da Penha efetiva? Por que a violência contra a mulher no âmbito familiar e doméstico continua em ascensão?

Faltam conscientização e disseminação de uma nova cultura: a cultura da paz (a começar pelas crianças nas escolas. As mudanças não acontecerão se as novas gerações não forem educadas sob esse paradigma). Falta o envolvimento da sociedade com a causa (o combate à violência é dever de todos – art. 3º, § 2º, da Lei 11.340/2006). Falta maior compromisso daqueles que estão envolvidos com a problemática. Faltam sensibilização e capacitação dos que atuam mais diretamente na área (vítimas são tratadas com indiferença, muitas vezes até desencorajadas a denunciar seus agressores, contribuindo para a revitimização). Falta uma mudança na legislação penal (com imposição de penas mais severas). Faltam mais políticas públicas, com instituições estruturadas para que possam garantir a efetividade e eficácia da lei, tratando não apenas da vítima, mas também do agressor, que não deixa de ser também uma vítima do sistema cultural e educacional machista que não o permite demonstrar fraqueza, não o permite chorar.

O Jurista e ex-ministro do TSE, Fernando Neves, disse recentemente em uma entrevista ao Jornal Gazeta do Povo (edição de 20/07/2012) que “eleição ideal é aquela que não tenha nenhum processo depois”. E eu diria, mudando o que deve ser mudado, que o ideal seria não haver violência contra a mulher e lei fixando pena, estabelecendo medidas de repressão e prevenção para casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Quem sabe daqui a mais seis anos eu possa estar reescrevendo este artigo, sob outro viés, sem apontar as estatísticas aqui mencionadas, e que as questões aqui abordadas sirvam apenas para mostrar um período da história: um período de mudanças, de transformações. É o que espero.  

* Olivia Maria Alves Ribeiro é juíza titular da Vara de Violência Doméstica e Familiar de Rio Branco.

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