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Uma estrada, muitos caminhos

Você já teve a sensação de fazer uma viagem ao seu passado? Pra mim o último fim de semana foi como se estivesse vendo meu antigo mundo como uma maquete. Pode parecer meio saudosista, mas foi exatamente assim que me senti ao regressar à minha terra natal, Tarauacá, um gigante num mundo de miniatura. O portão que servia de rede de vôlei, antes altíssimo agora era pequenininho, as distâncias que antes eram trilhas para me aventurar com a bicicleta, agora eram apenas caminhos comuns.

O fato é que no último fim de semana eu levei meu presente para conhecer meu passado. E eles até que se deram bem! Conversaram bastante e deram boas risadas antes de chorarem juntos.

O longe de perto.

Como disse, eu nasci em Tarauacá, o que sempre foi motivo de orgulho. Lembro-me que quando pequeno tinha a sensação de viver numa ilha isolada e feliz. A história da minha infância não tem tristes histórias. Poderia até inventar algumas para aumentar o ibope do texto, mas seria puro drama de um garoto que realmente não sofreu nada além do descaso da vizinha mais velha, que não correspondia a seus interesses românticos.

O fato de ter tido uma infância maravilhosa não fechou meus olhos para as dificuldades que as pessoas enfrentavam ao meu redor. Na minha ilha, amigos se tornavam adultos antes do tempo. Mas, via de regra, jamais saiam da Ilha. Até por que era bem difícil sair de lá. Assim como entrar também.

Aos oito anos ouvia falar que bem perto existia uma cidade, chamada Feijó. Só dava pra chegar lá no verão, era uma super aventura. Certa vez, recebi a visita de alguns parentes que lá viviam. Apesar da proximidade eles me pareciam de outro mundo. Eram poucos quilômetros (42 Km) que nos separavam de Feijó, mas pra mim era à distância da Terra até Kripton (e adivinha quem era o Super Homem?).

Nos fins de semana sempre podíamos conhecer lugares legais. Lembro que meu lugar favorito era a Cachoeirinha do Corcovado, um lugar distante e de difícil acesso (hoje um bairro próximo do Centro de Tarauacá). Primeiro atravessávamos o rio de catraia e depois andávamos alguns quilômetros num ramal com lama até a canela, rumo ao lugar onde iríamos tomar banho e comer a farofa que trazíamos de casa (devidamente embalada em uma lata de leite ninho). Era um piquenique divertido, mas hoje percebo que só estávamos andando para ficar parados, pois nunca saíamos do lugar na verdade.

Era sempre uma atração na ilha quando, uma vez por dia, chegava um avião. Nós íamos esperar os viajantes no aeroporto e sempre vinha gente da Capital, Rio Branco. Para a maioria dos meus amigos a Capital era um lugar que só existia na imaginação, mas para mim não. A cada seis meses eu encarava meu medo, entrava no avião monomotor e viajava duas longas horas (cheio de uma falsa coragem) até Rio Branco, para a casa dos meus avós. Na chegada meu avô Antônio já me levava na loja de brinquedos. Mais tarde me contava histórias do “Antoinzim”, um personagem criado por ele, que andava em cima de um urubu. Os prédios altos eram amedrontadores (embora a maioria só tivesse dois ou três andares, exceto o prédio do Banacre, que tinha quatro e era imeeeeensooooo!). Estou falando de uma Rio Branco de 20 e poucos anos atrás. Coisa de 1989, por aí. Pode parecer devaneio de criança boba hoje em dia, mas era a minha idéia concreta de metrópole. Quando voltava para meu mundo em Tarauacá, vinha cheio de novidades, brinquedos novos e muita conversa pra jogar fora.
Realmente não vivi histórias tristes, mas vi um monte delas. Conheci muitas pessoas que precisavam desesperadamente de um tratamento de saúde e não eram atendidas. Porque não conseguiam pagar uma passagem de avião, ou porque, mesmo tendo o dinheiro, não tinham tempo pra esperar o único avião do dia chegar (quando ele vinha). Vi também gente muito pobre pagar uma grana para saber que gosto tinha um tomate. Enfim, vi sonhos se desfazerem e se realizarem com o olhar perplexo de quem, guardadas as devidas proporções, viveu em uma ilha linda e isolada.

O Futuro do passado
Voltando ao começo do texto, como eu havia dito, no ultimo fim de semana meu presente conheceu meu passado. Moro em Rio Branco há 17 anos e pela primeira vez na vida, terminei o expediente na sexta feira, peguei minha esposa e meu filho de 9 meses, que aliás é lindo, coloquei no carro e parti rumo a Tarauacá. E, sim, fui de carro. Três horas depois estava em Feijó, que já não é um mundo distante há um bom tempo. Alguns minutos depois passava pelo Corcovado, o mesmo lugar que era minha aventura na infância. Luzes fortes e uma ponte linda, (aos meus olhos tudo era um deslumbre), logo a frente uma placa gigante que dizia: Bem vindo a Tarauacá. Confesso que lágrimas me vieram aos olhos e fiquei feliz por não saber o caminho para chegar à casa de meus pais.

O fato é que tive um final de semana de sonhos, “vendo meu pai brincar de vovô com meu filho no tapete da sala de estar”. Ao ouvir essa história meu amigo Brunno Damasceno, certamente vai lembrar de seu tempo cantando Fábio Junior. Ele jura que era eu que cantava. Peço licença ao Brunno e ao Fábio para continuar falando que meu final de semana foi ótimo.

Na segunda feira, retornei a Rio Branco bem cedo e cheguei pronto para trabalhar, emergido de um verdadeiro sonho. Interrompido pela triste notícia que meu avô Antônio tinha falecido e que seria sepultado em Tarauacá. O trabalho que me perdoe, mas meu destino agora era a estrada mais uma vez, só que dessa vez sozinho. Na cabeça um turbilhão de pensamentos, no coração um misto de tristeza e saudade, os olhos que vez ou outra procuravam um urubu voando para ver se ainda viam o “Antoinzim”. Mas logo cheguei novamente à bela nova entrada de Tarauacá. Dessa vez não foi a felicidade que permeou minhas horas, mas a dor e a tristeza de perder quem se ama. Perdi meu avô dois meses após perder minha Vó. Acho que ele não aguentou. Finalmente percebo que é mesmo possível morrer de saudade.

O fim do início
Logo após o sepultamento voltei novamente ao meu mundo de hoje, e voltei com uma certeza: em menos de 48 horas visitei o meu passado, lhe apresentei o meu presente, fui de um estado de alegria extrema ao de tristeza profunda e agora me encontro cheio de esperança em frente a um computador, refletindo aqui sobre esse novo mundo, sobre minha querida ilha que não é mais isolada.

O que quero dizer é que, para mim e tenho certeza que para todo o povo do Juruá, a BR 364 aberta durante todo o ano, transcende explicações racionais, vai além de disputas políticas. Para nós, do Juruá, a forma como a estrada foi feita, o fato de ainda não estar pronta ou de ter muitos trechos com buracos, não tem importância diante do fato de que podermos ir e vir para qualquer parte a qualquer hora. Hoje minha ilha está ligada ao mundo. Para quem vê de fora ou lê em blogs as opiniões abalizadas sobre o tema, a BR 364 é uma realidade que permite as opiniões mais diversas, mas para o povo do Juruá é antes de qualquer opinião, uma nova vida, uma outra realidade.

* Aarão Prado é tarauacaense, músico, radialista, poeta e pai do Dante.

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