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As palavras movimentam a vida

As palavras são criadas de forma consciente para dar nome às coisas. Assim, não há palavras sem “coisas”, embora possa haver “coisas” sem palavras, como bem sustenta o movimento Wört und Sachen (Palavra e coisa). As palavras, com o passar do tempo, sofrem modificações fonéticas, e seu sentido evolui espontaneamente. É pela linguagem verbal que o ser humano normal exprime pensamentos e sentimentos, numa comunicação interpessoal ou com grupos, que constrói uma sociedade capaz de desenvolver a cultura e o saber que poderão ser transmitidos de geração a geração. Esse acúmulo de conhecimento se faz, principalmente, através da língua escrita, que é a forma pela qual tentamos garantir com que as palavras sejam comunicadas de modo mais duradouro.

O gramático Said Ali, em “Meios de expressão e alterações semânticas”, destaca alguns exemplos interessantes de evolução semântica: crânio é hoje o nome dado à caixa óssea que protege o cérebro. Deriva do grego kránion e tem como intermediário cranium, no latim medie-val. É uma adaptação do termo francês crâne e passou a ser usado depois que se começou a estudar medicina e anatomia em livros franceses. Bugalho, desconhecido no português atual, era como se designava o globo ocular, que deixou sua marca na expressão ‘olhos esbugalhados’. Dedo mindinho, como chamamos hoje vulgarmente o dedo mínimo, deriva do nome meiminho ou meminho. Caput, do latim, deu origem a cabo e cabeça. Em italiano o termo atual para cabeça é capo, alternando com testa, nome dado pelos romanos ao pote de barro. Na França, chief, chef também alternou com test, tête, fixando-se o segundo pela semelhança com o pote de barro, duro e ôco como a parte suprema do corpo. Em português, e em espanhol, cabo passou a designar a parte terminal, a cauda, enquanto que, para cabeça, a palavra latina capitium tomou seu lugar.

Sobre o significado das palavras há duas posições divergentes. A primeira, considera o significado intrínseco à palavra e se baseia na existência de uma relação entre som e sentido, o que caracteriza aquilo que chamamos “signo motivado”. A segunda,  acredita na arbitrariedade do signo e diz que não existe relação alguma entre o som e o significado, caracterizando o que chamamos “signo convencional”, criado por uma espécie de acordo entre os usuários da língua.

Outro aspecto na observação dos fenômenos linguísticos é a questão abordada por Pierre Guiraud (1979), que menciona dois fatos indiscutíveis. Primeiro, que o uso mais ou menos consciente das palavras motivadas determina o seu emprego e sua evolução. Segundo, que toda palavra é originalmente motivada, mas que o uso convencional tende, com o passar do tempo, a apagar a motivação do signo, o qual tende a tornar-se arbitrário, ainda que sem excluir a motivação.

O semanticista Stephen Ullmann  (1973) afirma não haver, nas palavras, conexão entre som e sentido. O que existe, em verdade, é motivação de natureza fonética (onomatopéica), morfológica e semântica.

Ao estabelecer paralelo entre as línguas, na realização de uma mesma palavra, como por exemplo em inglês, francês, espanhol, italiano, romeno, latim, alemão, russo, húngaro e finlandês sobre a palavra “cuco”, que é em cada uma dessas línguas, respectivamente, cuckoo, coucou, cuclillo, cuculo, cucu, cuculus, kuckuck, kukushka, kakuk, käki, diz Ulmann existir, nesse caso, uma “afinidade elementar”, uma semelhança na percepção do mesmo som, mas a isso não se deve dar muita importância, pois a imitação não é completa e cada língua a convencionou de maneira própria.

Ainda, sobre a  criação das palavras, a motivação semântica é bastante usual. Tem-se, aqui, uma palavra já conhecida e a partir dela nascem outras, ora pela transferência de sentido, ora pela semelhança de forma, de cor, de função, como em (uma ferramenta), <> (um pedaço de papel), <> (horário do início da noite), (parte interior da boca), <> (parte da perna), (parte da mesa), <> (o vinho do copo) etc.

Como é possível notar, as possibilidades de alterações semânticas por que passam as palavras, ao longo do tempo, partem de sua motivação fonética, morfológica e semântica. A explicação do que vem a ser a etimologia contribui para mostrar que os falantes se servem da língua não como um meio, mas como um fim. Estudá-la, do ponto de vista diacrônico, é uma forma de observar esses processos de mudança das palavras até sua forma atual. Esse processo pode ser mais bem compreendido por meio dos estudos da Semântica Diacrônica.

DICAS DE GRAMÁTICA
Prazeroso  ou  prazeiroso?
A  terminação  “-oso”  indica ideia  de abundância,    de excesso. Lugar perigoso é lugar  cheio  de  perigo; comida gostosa  é  cheia  de  gosto. E homem fogoso é cheio de fogo. É bom lembrar que essa terminação  se  escreve  com  “s”. Nada de “saborozo”,  “gostozo”.  Então, se de calor se faz caloroso, e não caloiroso,  se de fervor se faz fervoroso,  e não fervoiroso, de prazer só se pode fazer prazeroso, sem “i”: um lugar prazeroso.

Luísa Galvão Lessa – É Pós-Doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montréal, Canadá; Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Membro da Academia Brasileira de Filologia. Membro da Academia Acreana de Letras. ( colunaletras@yahoo.com.br)

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