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Todas as honras ao Cavaleiro Azul de Sena (Nacélio Areal)

Há  alguma coisa especial em certos lugares do Acre. Uma característica que às vezes se torna até assustadora de tão forte e proeminente. Não me perguntem como ou por que. Só sei que o rio Iaco é certamente um desses lugares misteriosamente espe-ciais, pois origina homens e mulheres tão fortes e determinados que me levam a acreditar que nossos destinos são engendrados por muito mais que acasos ou coincidências. O que talvez explique porque Seu Agnaldo Moreno – um dos muitos extraordinários filhos do Iaco e meu primeiro e maior professor das coisas acreanas – antes de nos deixar, me tenha feito prometer que ainda irei realizar uma expedição até as últimas cabeceiras do Iaco. E como promessa é dívida… espero logo poder cumpri-la.

E foi esse mesmo Agnaldo Moreno que me levou à Sena Madureira assim que começamos a pesquisar a história das cavalhadas. E, lá chegando, fomos direto conhecer o Sr. Nacélio Areal, que durante muitos anos foi comandante dos cavaleiros do partido azul. De cara, fiquei assustado. Até porque não havia mesmo como não se assustar diante daquela personalidade tão poderosa. À primeira vista podia até parecer arrogância aquele jeito impositivo de falar, aquele tom de voz que não dava margem a dúvidas, aquela determinação de propósitos e de princípios que caracterizava Seu Nacélio.

Mas, ainda durante aquela primeira conversa, pude perceber que essas impressões iniciais eram falsas e provocadas apenas porque se tratava de um homem honrado que dava extrema importância à palavra dita e, só por ter sido dita já estava empenhada e não poderia haver modo de voltar atrás, senão sob o signo da traição, o que era completamente inaceitável… Todo o mais era só consequência. Nascia assim, uma profunda admiração que só fez aumentar com o tempo e que trago comigo até hoje. Até porque Seu Nacélio me fez mudar radicalmente meu ponto de vista sobre várias questões da história e do Acre.

Por exemplo. Ao que eu soubesse, naquele ano de 1999, a Cavalhada não acontecia mais em Sena há cerca de 40 anos. Mas quando perguntei pro Seu Nacélio: Qual era seu partido? Sem titubear, ele me respondeu daquela forma direta que o caracterizava. Eu sou do Azul! Nesse instante fiquei até meio zonzo… Mas, tentando me recuperar do que me estava confundindo, logo o questionei. Como assim Seu Nacélio, a Cavalhada não existe mais, o Sr. quer dizer que foi do partido Azul então? Não meu filho eu quis dizer isso mesmo que eu disse: eu fui, sou e sempre serei do Azul. Foi quando percebi que a cavalhada não tinha acabado, só não estava acontecendo… mas, continuava viva no coração dos Senamadureirenses.

E foi exatamente essa conclusão que levou o Governo do Estado (então comandado por Jorge Viana) a trabalhar junto com os cavaleiros do Azul (comandados por Seu Nacélio) e do Encarnado (comandados pelo Seu José Seda, que era o contraponto perfeito daquele por sua imensa tranquilidade) a voltar a fazer memoráveis Cavalhadas em Sena nos anos subsequentes. Cavalhadas que aconteceram sempre sob o signo de palavras e compromissos empenhados e cumpridos mutuamente. O que era combinado, era feito e ponto, sem direito a meios termos ou desculpas esfarrapadas.

O que não queria dizer que tudo acontecia sem conflitos. Pelo contrário, o que mais acontecia durante a preparação e a realização das cavalhadas eram conflitos das mais diversas naturezas. E nem podia ser diferente, em se tratando de Sena Madureira. Como, por exemplo, quando o Seu José Seda quis correr com uma égua da qual gostava muito e o Seu Nacélio logo embrabou. “Nada disso, na Cavalhada só corre cavalo inteiro, por isso é cavalhada, se corresse com égua… seria éguarada… Pode não… de jeito nenhum…” E lá ia eu tentar apaziguar os ânimos e encontrar soluções negociadas.

O pior é que o que podia a principio parecer uma teima sem nenhum fundamento, logo revelava seus verdadeiros motivos. Pois, depois de mais calmo, Seu Nacélio me explicou sua posição dizendo: “Ô Marcos! Não pode correr égua, porque a Cavalhada é um momento em que estão presentes todas as famílias de Sena, e se entra uma égua naquela arena cheia de cavalos inteiros, garanhões, é praticamente impossível evitar que algum cavalo acabe ficando mais excitado que o normal, causando constrangimentos às senhoras e às moças, ou ainda pior é que alguns cavalos acabem lutando entre si por conta da égua e machuquem alguém”. Era assim Seu Nacélio, dono de uma lógica invencível, quase sempre.

E foi exatamente por conta dessa lógica poderosa que Seu Nacélio me fez refletir sobre outras ideias e questões generalizadas que muitas vezes são tidas como verdades absolutas. Como quando Seu Nacélio, no meio de uma conversa, começou a me contar suas histórias de seringalista, atividade que desempenhou durante muitos e muitos anos nas florestas do Iaco e do Macauã. Neste ponto, um parêntese, historiador formado a partir dos cânones marxistas que sou, sempre tive tendência a pensar que, por princípio, todo seringalista era um explorador e todo seringueiro um explorado e vitima daquele.

Até que Seu Nacélio começou a me contar várias histórias que revelavam os parâmetros a partir dos quais ele procurava administrar a justiça entre os trabalhadores de seus seringais. Mas, como não tenho mais espaço para contá-las aqui, o que espero fazer numa próxima oportunidade, vou me limitar a dizer que foram histórias maravilhosas (porque ele era um exímio contador de causos) que me revelaram a face de um daqueles seres lendários que até hoje são chamados por alguns seringueiros como “patrão bom”. Ou seja, um patrão que reconhecia os direitos e as necessidades dos bons seringueiros, mas não hesitava em pôr pra correr os maus seringueiros que matavam seringueiras ou cometiam alguma violência contra mulheres ou outros trabalhadores.

Enfim, durante os poucos anos em que tive o privilégio de conviver com seu Nacélio Areal aprendi que podiam sim existir seringalistas justos, como ainda existem em nosso tempo, apesar de cada vez mais raros, homens que honram seu trabalho, sua família, sua palavra e sua vida. Um verdadeiro “Cavalheiro”, na concepção antiga do termo – desde as medievais tradições que deram origem à nossa Cavalhada. Por tudo isso, Seu Nacélio, saiba que – ao partir pra junto dos antigos, na manhã do ultimo domingo – o senhor levou consigo um pedaço grande de meu coração e disso nunca me esquecerei.
* Marcos Vinicius Neves

Um homem, uma história
Ele adorava lembrar o apelido do meu pai. E eu gostava de conversar com ele para ouvir suas histórias. E as histórias não eram poucas. Gostava do seu sorriso solto, do seu jeito alegre. Foi esse Nacélio Areal que conheci. O homem que sempre foi sinônimo de honra, integridade, cuidado e amor por nossa querida Sena Madureira. Quando dava pra reclamar, reclamava bem. Nunca foi de ter papas na língua. Era um apaixonado pelo Acre, por Sena Madureira, por sua família. Dele não tenho lembranças ruins, embora há tempos não o visse. Fiquei muito feliz quando soube por amigos em comum que tinha se dedicado nos últimos anos ao evangelho, à palavra, ao exercício da fé.

Das histórias que ouvi contar sobre ele – sempre ouvi muitas – todas se refe-riam a um homem duro, rígido, mas de coração e alma caridosa. Gostava de ajudar aos outros de maneira silenciosa. Ele gostava de me lembrar do medo que eu sentia na infância do “Pezinho” (só quem é de Sena Madureira e tem mais de 30 anos sabe quem era essa figura mítica e querida por todos e que me apavorou por longos anos), de como ele gostava de mim e como eu morria de medo. Ele sempre contava essas histórias rindo. Aliás, a risada do seu Nacélio está entre as boas coisas da minha infância-adolescência.

Lamento que sua morte não tenha nos permitido ter um registro mais apurado de suas histórias. Ele sabia de quase tudo sobre a nossa história mais recente e também da Bele Époque de Sena Madureira. Sua morte nos lembra que a vida passa rápido. Nos lembra que precisamos registrar as nossas histórias. Muitos guardado-res da nossa memória estão indo embora sem que registremos de maneira digna seus nobres relatos. Sena Madureira fica um pouco menor sem esse homem simples e forte, forjado na beira do Yaco, nas cabeceiras do Macauã e nas largas avenidas de Sena Madureira. Morava na cidade, mas seu coração para sempre estará ligado à floresta, aos seringais. Ao Eluzay, à Eliana e a D. Raimunda, o meu mais profundo sentimento de pesar e dor por sua morte. Que sua memória nunca seja esquecida. Não era só o homem das cavalhadas… Que a história registre que Sena Madureira perdeu, com sua morte, um dos seus mais nobres cavaleiros.
* Charlene Carvalho é repórter.

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