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Os búfalos do Guaporé e a reintegração da megafauna na Amazônia

Por que não há grandes mamíferos brasileiros, como os elefantes e rinocerontes da Ásia e África? O motivo é que com a chegada dos Paleoindíos, há aproximadamente dez mil anos, ocorreu uma extinção em massa da megafauna nativa da Amazônia. Será que os búfalos no vale do Guaporé não representam, sob o ponto de vista histórico-biológico, uma reintrodução da megafauna? Será que sua presença é mesmo tão prejudicial como se pensa?

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Já faz alguns anos que uma polêmica paira sobre o que fazer com os búfalos que habitam o vale do Guaporé em Rondônia. Para alguns, os animais, impossíveis de serem manejados em razão de sua ferocidade e força, devem ser exterminados. Segundo os seguidores dessa corrente, os animais, que foram introduzidos na região na década de 50, estão causando um desastre ecológico sem precedentes na Reserva Biológica do Guaporé, pois o pisoteio que promovem está drenando o solo, destruindo diversos ecossistemas e em algumas regiões eles estão drenando cabeceiras de rios e alterando o curso da água. Para outros, considerar que os búfalos devem ser extintos por eles serem considerados não naturais da área (espécie invasora) deriva da ausência de perspectiva histórica para suportar tal ponto de vista.

É o que pensa Albert David Ditchfield, professor de ciências biológicas da Universidade Federal do Espírito Santo. Segundo Ditchfield, a conclusão de que não é natural a Reserva ser transformada por grandes mamíferos parece ser um pouco limitada. Para ele, o que não é natural é a ausência de grandes mamíferos como toxodontes, mastodontes, preguiças e tatus gigantes, e outros herbívoros de grande porte que existiam na região antes da chegada do homem, há cerca de 10 mil anos.

Uma das curiosidades das nossas crianças é certamente entender a razão da inexistência em nossas florestas e cerrados de mamíferos de porte similar aos elefantes e rinocerontes da Ásia e da África, também conhecidos como megafauna. Isso pode ser explicado de forma fácil e didática com o argumento de que o homem – na maioria dos casos – causou uma extinção em massa da mega-fauna sul-americana. E isso aconteceu em outras partes do planeta, como numa relação de causa e efeito: a chegada do homem sempre coincidiu com a imediata extinção da megafauna local. Para facilitar o processo, esses animais não enxergavam os humanos como serem extremamente perigosos.

Por isso, o argumento do professor Ditchfield não deixa de ser coerente: a ecologia da Amazônia e regiões adjacentes do cerrado brasileiro antes da chegada dos Europeus não representava algo natural, mas sim um ambiente artificialmente modificado pelos primeiros humanos que aportaram na região milhares de anos antes de Colombo ‘descobrir’ a América.
Na Amazônia, esses humanos primitivos ou paleoíndios, também modificaram a composição florística da floresta do entorno onde viviam. Esta intervenção humana parece ser a explicação mais plausível para a origem da terra preta e da presença de árvores frutíferas em seu entorno. Ao longo dos grandes rios amazônicos, existem dezenas de localidades onde se pode observar a ocorrência de terra preta, que marcam locais de antigas aldeias. Desconfia-se inclusive que foram esses indígenas os responsáveis pela dispersão de algumas espécies pela região. A castanheira é sempre citada como um exemplo de planta artificialmente dispersada. Em favor desse argumento, temos no Acre o misterioso limite de dispersão dessa planta representado pelo Rio Purus. Não se encontram castanheiras naturalmente em florestas do vale do Rio Juruá. Quem se habilita a explicar esse mistério.

Dessa forma, se considerarmos que a Amazônia, desde a chegada do homem, não é um ambiente natural, a solução para os búfalos no vale do Guaporé passa necessariamente pelo manejo dos mesmos. Além das alterações físicas dos ambientes aquáticos, que outros papéis ecológicos os búfalos desempenham no vale do Guaporé? Estão ajudando a dispersar frutos de algumas espécies de plantas em particular? A sua existência deve favorecer uma gama de carnívoros. O que aconteceria com esses animais caso os búfalos fossem exterminados de uma hora para outra?

Segundo o professor Ditchfield, no passado a megafauna brasileira sustentou ursos, tigres dentes de sabre, lobos-cachorros, e outros grandes predadores que co-existiram com as onças e jaguatiricas. A extinção da megafauna brasileira provavelmente levou ao desaparecimento dos tigres de dentes de sabre, leão americano, e outros carnívoros só encontrados em museus paleontológicos.

Nos últimos anos alguns pesquisadores tem sugerido a introdução de grandes predadores e herbívoros para a reconstrução de ecossistemas naturais. Lobos, ursos, pumas e até mesmo espécies exóticas como elefantes e camelos têm sido sugeridos como solução para restabelecer processos ecológicos.

O Dr. Mauro Galetti, da Universidade de São Paulo, inclusive propõe a criação de ‘Parques do Pleistoceno’ no cerrado e no Pantanal para manejar megafauna exótica, importada da África. Sua idéia não pode ser descartada porque fatos históricos demonstram que há menos de 10 mil anos atrás as savanas da América do Sul – cerrado e pantanal – eram mais espetaculares que as savanas da África. Enquanto na África existem apenas cinco mamíferos que pesam mais de uma tonelada – elefante, duas espécies de rinocerontes, hipopótamo e o macho da girafa -, na América do Sul havia entre 10 e 12 espécies acima de uma tonelada.

A megafauna extinta com a chegada do homem desempenhava um papel importante na estrutura das comunidades vegetais e os efeitos dessa extinção prematura ainda são pouco conhecidos. O que se supõe é que a rápida eliminação da megafauna sul-americana favoreceu a dominância de algumas plantas e resultou em num acúmulo de biomassa vegetal seca suscetível ao fogo.

Para o Dr. Galetti, a pergunta não é se devemos manejar a megafauna nesses ambientes, mas sim como vamos fazer isso. Segundo ele, a introdução de impalas, elefantes e outros mega herbívoros nos nossos cerrados poderá chocar muitos conservacionistas, mas, cavalos, vacas e porcos-monteiro, todos introduzidos há menos de 200 anos atrás no pantanal, quando em densidades controladas, são importantes dispersores de sementes grandes e controladores de ervas invasoras. Hoje existem mais de 2 milhões de animais exóticos peram-bulando pelo pantanal.

Portanto, a presença dos búfalos no vale do Guaporé, habitando e drenando os alagados como os Toxodontes provavelmente faziam no passado, sugere que eles estão restaurando o ecossistema Amazônico após um hiato de 10 mil anos. Mais que um problema, os búfalos representam uma inigualável oportunidade de pesquisa para os defensores da reintrodução da megafauna na América do Sul. Quem se habilita a enfrentar as feras?

* Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do Inpa/Parque Zoobotânico da Ufac.

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