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Assistente social diz que filha menor de idade foi violentada e que nada foi feito no Nucria, cinco meses após a denúncia

A vida da assistente social M.M, 39 anos, e de sua filha, N.M, 10 anos, se transformou há cinco meses. Em setembro de 2012, M.M descobriu que a filha estava sofrendo abusos sexuais. Ela se separou há dois anos, ao descobrir que o marido tinha uma amante, a atual companheira dele.

A menina ia passar os finais de semana com o pai. Na casa moravam o pai, a atual e esposa e dois jovens, uma adolescente e um rapaz, filhos da madrasta de N.M. O pai deixava a garota sozinha com os enteados. O jovem, de 18 anos, começou então a abusar da criança, que na época tinha nove anos.

Revoltada ao descobrir, a mãe denunciou o caso ao Disque 100 e procurou o Núcleo de Atendimento à Criança e Adolescente Vítima, Nucria, para registrar a denúncia. De acordo com M.M, o Nucria não iniciou a investigação e nem pediu o exame de conjunção carnal no ato da denúncia. Ela suspeita de que esta situação tenha ocorrido porque o casal é policial civil.

Descoberta
A criança contou o que aconteceu a uma pessoa próxima: “A N. estava esquisita e estranha há muito tempo. Estava aborrecida e agressiva. A pessoa me alertou. Um dia ela me ligou e pediu para que eu fosse até um local para conversarmos. Quando cheguei lá, a pessoa estava chorando e contou que minha filha estava sofrendo de abuso sexual por um rapaz chamado Luiz. Fiquei em estado de choque. Minha filha já tinha falado diversas vezes nesse Luiz, mas eu achava que era uma criança que brincava com ela. Nunca imaginei que fosse um adulto. Depois, ela me contou que ficava por diversos dias na casa do pai sozinha com o rapaz e uma adolescente. O pai nunca estava em casa”.

Cinco meses de espera
Nesta semana, após cinco meses de espera, M.M recebeu uma intimação para comparecer ao Nucria. “Fiz uma denúncia a outro veículo de comunicação, que procurou o secretário de Polícia Civil Emilson Farias. Ele afirmou que a deficiência do Nucria era muito grande, mas que era impossível do caso não ser resolvido já passado tanto tempo. Me disse que as investigações, para este tipo de caso, são feitas de imediato. Depois de tudo que passamos, eu e minha filha nos sentimos vítima em todos os lugares. Quando vamos ao Nucria e a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) nada é resolvido. Nunca consegui falar com a delegada. Sempre fui atendida por assistentes sociais, por uma orientadora jurídica e psicólogos. Na terça-feira chegou uma intimação na minha casa, para comparecer ao Nucria na quarta-feira”.

Benefício
M.M acredita que o ex-marido e a esposa dele estão sendo beneficiados por serem policiais civis.
“Os dois são beneficiados. Chego à Deam e sou ameaçada e maltratada. Tudo o que eu declaro na delegacia, na mesma hora ele liga e me ameaça por telefone, porque ele fica sabendo do teor do meu depoimento, sendo que deveria ser sigiloso. A atual mulher dele trabalha na delegacia e consegue os depoimentos. Não consigo registrar ocorrência nenhuma na Deam. Eles até tentaram me prender. Estão tentando me ridicularizar. Tenho medidas protetivas, porque ele entra na minha casa e a polícia diz que não tem autonomia para prendê-lo”.

Ameaças e medo
Tanto a mãe quanto a filha já foram ameaçadas por diversas vezes.
“Já fui arrastada por uma moto. Tinha R$ 300, câmera digital e netbook na minha bolsa e não levaram nada. Queriam me matar mesmo. Fiquei internada e a polícia nunca me deu resposta. Denunciei na corregedoria e eles disseram que eu que tinha feito aquilo sozinha, para culpar alguém. Fiquei chocada. O meu ex-marido fica trazendo recado da mulher dele, dizendo que ela tem uma arma para descarregar na minha cabeça. Ele diz isso na frente da minha filha. Outro dia ele veio aqui e colocou uma arma na minha cabeça. A garota abusada tinha feito uma cirurgia em um pé e estava de cadeira de rodas. Ao ver isso, ela caiu da cadeira e rastejou até a rua para pedir ajuda. Gritava por socorro. Vários policiais estavam em frente da minha casa e nenhum entrou para fazer algo. Ele já nos espancou como forma de pressão para tirarmos a denúncia e ficamos muito machucadas.

Justiça
A assistente social teme pela sua vida e pela da filha. “Só eu sei o que passamos. Quando fiz a denúncia, ele veio aqui tentar negociar comigo. Pediu para que eu esquecesse. Como eu vou esquecer que a minha filha foi abusada? Como um pai faz uma proposta dessas? É um absurdo. A Justiça não garante a nossa vida. Não acho justo ir para um abrigo com a minha filha enquanto os responsáveis estão em liberdade. Eu não quero o mal de ninguém, quero apenas justiça. Quero que o caso seja investigado, é um direito da minha filha. O Estado está protegendo dois policiais. É vergonhosa a situação. É gritante. Não confio mais na Justiça”.

Revolta
A garota, traumatizada com a situação, afirmou que vai matar a madrasta, diz a mãe. “Toda vez que ela está revoltada, diz que quando fizer 15 anos vai matar a madrasta, porque ela destruiu a sua vida. Ela perdeu o ano letivo porque a madrasta ficava em frente à escola ameaçando. Hoje N. faz acompanhamento no Hospital de Saúde Mental do Acre (Hosmac). Tem vezes que ela passa o dia e a noite chorando e eu não sei o que fazer”.

Doença
N. praticamente perdeu sua infância lutando para se curar de uma leucemia. “Ela teve Leucemia Linfóide Aguda e há seis anos está em tratamento. Minha filha ficou em coma 13 dias. Passei dois anos fora do Estado fazendo tratamento. A médica oncologista que atende a N. disse que a saúde dela pode ficar comprometida e que a doença pode voltar”.


Nem toda criança tem a sorte de viver em um universo saudável, onde suas experiências de alegria e diversão refletem um ambiente isento de maldade. Elas são alvos de atos de abuso sexual infantil, uma violência que resulta em danos muitas vezes irremediáveis.

N.M contou à reportagem o que acontecia quando passava os finais de semana na casa do pai. “Eu ficava muitas vezes sozinha. O meu pai saía com a mulher dele e eu ficava em um colchão no chão com o filho dela. Ele passava a mão nas minhas partes íntimas e apertou meu peito. Eu ficava sentada e ele passava a mão. Ele é bem grande, não é criança”.

A criança confirmou as ameaças do pai contra a sua mãe. “Eu estava lá na sala e vi. Pulei da cadeira e fui engatinhando até o quarto da minha mãe. Eu cheguei lá e vi meu pai colocando a arma na cabeça da minha mãe. Ela caiu no chão e eu fui pra cima dela. Ele me tirou e fui pedir ajuda aos vizinhos”.

A menina tem medo até de ir à escola. “Tenho medo da mulher do meu pai, ela tem uma arma. Ela ficava dizendo que ia me matar, ela sempre fica vigiando na frente da minha escola. Eu fico esperando a minha mãe me buscar. Tenho medo de matarem a minha mãe e depois me matarem também. Fiquei com medo do meu pai.

Ele me bate de vassoura e sem motivos. Agora, fica me dizendo que é para eu falar que isso é mentira. Mas é verdade, eu falei tudo o que aconteceu na delegacia. E tudo que eles dizem (pai e madrasta) é mentira”.


O diretor-geral da Polícia Civil Emylson Farias afirmou que nenhum policial que comete crimes é protegido. “Dificilmente na Polícia Civil tenha se visto, antes da nossa gestão, policiais que praticaram crimes sendo presos e conduzidos ao sistema prisional. Temos uma marca de sermos intolerantes. O Ministério Público e o Judiciário fiscalizam a atividade policial. Já demonstramos que não há proteção a ninguém que comete um crime, seja policial ou um cidadão qualquer. Ninguém está acima da lei, seja policial, pessoas de grande relevo, de instituições grandes. Qualquer um que pratica crime não está acima da lei, ainda mais um policial que deve dar exemplo e se pautar pelos princípios norteadores da lei orgânica da Polícia Civil. A corregedoria está acompanhando o caso e o que tiver de ser feito, do ponto de vista procedimental, será realizado, sempre respeitando a legislação”.

O secretário explicou que todas as denúncias feitas ao Nucria são investigadas. “Todo o caso que vai para o Nucria, a autoridade policial tem a obrigação, havendo tipo penal, de instaurar o procedimento. Não havendo a instauração do procedimento, o caminho adequado é o da corregedoria, que deve impulsionar em uma situação dessa. Se a pessoa foi ao Nucria e durante cinco meses não registrou o caso, ela tem o direito de buscar a corregedoria, para que a autoridade policial que não cumpriu a obrigação, responda por isso”.

A corregedoria da Polícia Civil está apurando o caso, afirmou Emylson. “Quem determina o sigilo é o delegado que preside a investigação. É a pessoa que tem a responsabilidade daquele procedimento instaurado. Qualquer infração em relação à isso a Corregedoria é o órgão apropriado para apurar. Nesse caso específico ela já está tomando conta, sempre nos preocupamos e temos cuidado para realizar as ações dentro do procedimento legal. Qualquer sindicância ou processo administrativo tem que se estabelecer sempre o contraditório. A vítima já foi ouvida pelo corregedor geral”.


De acordo com Carlos Roberto Maia, procurador de Justiça e Coordenador da Coordenadoria de Defesa da Infância e Juventude do Ministério Público Estadual, o Nucria já não atende todas as violações de direito. “O Nucria já nasceu ineficiente. Hoje com o número de denúncias só do Disque 100 que estamos mandando para lá, o núcleo não dá conta. Este caso só vem demonstrar a ineficiência do Nucria para investigar violências praticadas contra crianças e adolescentes. Precisamos de um trabalho de investigação, coisa que o órgão não faz. Não há recursos humanos para isso, além de funcionar somente em horário comercial (segunda à sexta). Só temos um equipamento na Polícia Civil encarregado de investigar esse tipo de crime e que não é satisfatório”.

Nem todas as denúncias que chegam ao núcleo são apuradas, frisou o procurador. “Por falta de recursos, as delegadas do Nucria são obrigadas a “pinçar” e investigar determinadas denúncias que elas achem mais graves ou importantes. Há várias denúncias aguardando a vez para ser investigadas. Temos denúncias que nós enviamos do ano retrasado e que nunca foi instaurado procedimento ainda. A sociedade precisa de uma delegacia com recursos humanos suficientes, equipamentos eficientes para que seja apurado qualquer tipo de violência praticada contra criança e adolescente, que são várias. Temos a obrigação de cuidar de seres humanos que ainda não sabem se cuidar sozinhos”.

O procurador enfatizou que é preciso uma atenção especial, com a criação de mais delegacias especializadas contra esse tipo de crime. “Existem secretários favoráveis à criação de uma nova delegacia, mas outros não, que são pessoas insensíveis e que dizem que é um custo muito alto. De fato pode até ser um custo alto criar uma delegacia para investigar crimes praticados contra crianças e adolescentes quando se apresenta o número de apenas 1582 denúncias no ano passado que vieram à tona. Existem aqueles casos que não foram notificados, que merecem uma investigação. Se isso acontecesse, teríamos mais resultados no enfrentamento dessa problemática. Só se investiga no Nucria os casos que chegam ao conhecimento deles através das denúncias que o Ministério Público encaminha. Por conta própria, o núcleo não pode sair para fazer uma investigação. O investimento é alto, mas o custo benefício compensa. Se cuidarmos e trabalharmos com essas crianças e adolescentes, se pudermos livrá-los de qualquer tipo de vio-lência, no futuro eles serão cidadãos pacíficos, produtivos e que não darão problemas à sociedade. As denúncias que chegam ao Nucria hoje é apenas uma pequena parte do que existe e que precisa vir à tona”.

A situação do Instituto Médico Legal (IML) na questão de exame físico nas vítimas é caótica. “Uma criança ou adolescente que sofreu algum tipo de violência sexual espera no IML até 4 horas, com o mate-rial biológico do agressor no corpo, para ser atendida. Já tivemos casos de que o perito estava no instituto, viu a criança, a deixou esperando duas horas e depois foi embora e não atendeu. O atendimento é péssimo. O Nucria é que encaminha ao IML para fazer o exame, mas o ideal é que antes de levar a vítima à delegacia, leve direto ao instituto para fazer o exame. Para responsabilizar alguém, precisa-se da materialidade de que o crime existiu e ter indí-cios de autoria”.

Provavelmente o autor não será responsabilizado. “A fala da vítima é de extrema relevância. Quando se trata de uma criança observamos que não existe mentira, ela não tem condições de elaborar uma mentira tão detalhada a respeito disso. Esse fato deveria ser apurado na época. Em razão de ser apurado cinco meses depois, o que eu antevejo é que provavelmente não terá a responsabilização dessa pessoa que praticou um crime contra esta criança, ainda mais com o forte indício de proteção da mãe do autor, que trabalha em uma delegacia e é policial civil. Há indícios de qua haja um envolvimento para que o caso não seja registrado. É uma situação muito triste e que deve ser apurada com rigor pela Polícia Civil e pela corregedoria”.

Maia afirma que o poder público é negligente neste caso. “Essa criança sofreu todas as violências. Sofreu abuso sexual, violência física, violência psíquica e só não está sofrendo negligência porque a mãe está cuidando. Porém, ela sofre a negligência do pai e do poder público, que não dá a resposta de uma forma eficiente para apurar esse tipo de crime. O poder público está cometendo um ato infracional, um crime. Essa menina está passando por transtornos psicológicos talvez irreversíveis”.

ARTIGO
18 é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

(Estatuto da Criança e do Adolescente – LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990)

O que é violência sexual?
Qualquer ato praticado por adultos contra crianças e adolescentes para obter prazer sexual é considerado violência sexual. Para ser considerado crime de violência sexual não é necessário acontecer o toque ou a penetração. Atitudes como mostrar partes íntimas para uma criança ou adolescente ou divulgar imagens indevidas de menores de 18 anos, também são tipos de violência sexual.

O que diz a lei?
O Art. 217-A do Código Penal estabelece que aquele que tiver conução carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos está sujeito à pena de reclusão, de 08 (oito) à 15 (quinze) anos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente também disciplina a matéria e no seu Art. 130 determina que verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.
lExiste

um perfil do agressor?
Geralmente o agressor é aquela pessoa acima de qualquer suspeita. Alguém que age na sombra da confiança dada pelas relações de vínculo familiar ou pela posição que ocupa na sociedade. Na maio-ria das vezes, um membro da família ou alguém muito próximo à criança. Pode ser o pai, mãe, padrasto, madrasta, tio, tia, primo, prima, amigos, vizinhos, irmãos mais velhos.

Quais os sinais da violência sexual?
Crianças que foram abusadas sexualmente sofrem mudanças em seu comportamento como agressividade, dificuldades de relacionamento e isolamento. Os pais devem ficar atentos a um conjunto de outros sinais, como gestos, brincadeiras e desenhos, para saber se seus filhos estão sofrendo algum tipo de violência. Além da mudança de comportamento, sinais físicos podem aparecer, como hematomas, inflamações ou ferimentos na região genital/anal.

Como encaminhar um caso de suspeita de violência sexual contra criança ou adolescente?
Em caso de suspeita de violência sexual contra criança ou adolescente, a notificação deverá ser feita preferencialmente no Conselho Tutelar local. A denúncia pode ser feita também na Promotoria de Defesa da Infância e da Juventude, na Vara da Infância e da Juventude ou no Disque 100, que funciona 24 horas por dia, inclusive nos finais de semana e feriados.

A Gazeta do Acre: