A castanheira (Bertholletia excelsa) é uma árvore de grande porte que pode ser encontrada por quase toda a Amazônia brasileira. E essa ampla distribuição tem sido causa de debate entre pesquisadores há vários anos. Como explicar essa distribuição se a espécie produz frutos, popularmente conhecidos como ouriços, que não favorecem a dispersão para longe da planta-mãe?
Como todo acreano sabe, os frutos da castanheira são pesados, atingindo até 1,5 kg, e possuem um invólucro lenhoso muito duro que protege as castanhas, ou sementes, contidas em seu interior. Esse invólucro é tão duro que para abrir o ouriço o homem precisa usar um porrete ou facão. Sendo grandes, pesados e difíceis de abrir, a conclusão óbvia é de que o mecanismo de dispersão natural das sementes da castanheira para longe da planta-mãe não parece ser simples, ou foi desenvolvido para animais que já foram extintos.
A maioria dos acreanos já ouviu falar que a dispersão dos frutos da castanheira é feita por pequenos roedores como a cutia (Dasyprocta aguti), que tem habilidade de abrir o ouriço da castanha. Ela consome algumas castanhas e transporta as outras para longe da planta-mãe, enterrando para consumir algum tempo depois, no período de escassez de alimento na floresta. Ocorre que muitas vezes a cutia ‘esquece’ onde enterrou as castanhas e as sementes germinam, dando origem a novas plantas de castanheiras. Nesse processo, já foi documentado que a cutia consegue transportar sementes até 1 km de distância. Outros animais famosos por contribuir para a dispersão das sementes da castanheira são os macacos.
egundo contam alguns seringueiros, o macaco ‘cairara’ (Cebus apella) e o ‘macaco-prego’ (Cebus albifrons) são os mais habilidosos. Eles sopram na abertura do ouriço, tapam o buraco com o dedo, e batem o ouriço nos galhos da castanheira até rachar ou quebrar. No processo, uma parte das sementes cai no solo da floresta e é consumida ou dispersada por outros animais.
Os casos citados acima, entretanto, não ajudam a explicar a ampla distribuição da castanheira em florestas de terra firme da Amazônia. É aqui que entra um novo e forte argumento científico que tenta explicar essa situação: indígenas foram os responsáveis pela dispersão da castanheira antes da chegada dos europeus.
Até alguns anos atrás era consenso entre os pesquisadores de que a Amazônia pré-colombiana era pouco habitada e os que viviam por aqui dependiam do extrativismo e tinham suas atividades limitadas pelas condições ambientais, que não permitiam a manutenção, sem uso intensivo de mão-de-obra, de grandes áreas abertas para o cultivo de plantas e a criação de animais. Os solos eram pobres, era complicado controlar as plantas invasoras e havia pouca disponibilidade de proteína animal na floresta. Essa impressão foi reforçada com as primeiras expedições naturalistas realizadas pela região a partir de 1700, que descreveram a paisagem natural dominada pela floresta como grandiosa, inexpugnável, di-versificada e intacta, criando o mito da natureza intocada. Obviamente que esses naturalistas não levaram em conta que a chegada dos primeiros europeus na região – 200 anos antes – dizimou, via doenças e maus-tratos decorrentes da escravidão, a maior parte dos indígenas amazônicos. Com isso, as organizações sociais indígenas ruíram e regrediram até se tornarem primitivas sociedades de caçadores-coletores. Foram esses os indígenas que os naturalistas conheceram.
Esse pensamento de que a influên-cia humana na paisagem amazônica foi sempre muito baixa, sendo mais comum apenas nas zonas litorâneas e ao longo dos grandes rios, perdurou até a década de 80, quando estudos arqueológicos e paleontológicos passaram a revelar sítios com profundas alterações pro-vocadas pelo homem, como nos casos das áreas de ‘terra preta de índio’ e dos geoglifos. A partir de então, o pensamento científico dominante começou a dar lugar a teorias de que na região existiram agrupamentos indígenas socialmente sofisticados e numerosos, capazes de modelar a paisagem do entorno às suas necessidades.
Estudos realizados por pesquisadores como Bill Balée e Darrell Posey demonstraram que em muitos lugares dos trópicos, a floresta dita “virgem” era, na verdade, uma floresta antrópica porque sua estrutura e composição florística haviam sido modeladas pelo homem. Na Amazônia existem vários exemplos: as florestas de babaçu no Maranhão, os maciços de bacuri no Pará e as florestas onde a ocorrência de castanheiras era he-gemônica em várias localidades.
No caso específico da castanheira, estudos recentes nas áreas de fitossociologia e biologia molecular estão produzindo informações que provam, de forma quase inequívoca, a ação humana na dispersão da espécie. Ao analisar amostras de DNA de castanheiras colhidas em toda a Amazônia, pesquisadores do INPA observaram uma grande homogeneidade entre as mesmas, sugerindo que as diferenças genéticas entre elas eram muito pequenas. Duas conclusões podem ser tiradas desse resultado: (1) a maioria das plantas tem origem comum, daí serem muito similares geneticamente, e (2) o processo de dispersão das mesmas foi muito recente visto que, em razão das distâncias entre as plantas, uma dispersão natural teria levado milhares de anos e resultado em plantas com características genéticas distintas. Vale ressaltar que em situações como essa, muitas vezes a grande distância geográfica entre populações de plantas leva ao aparecimento de uma nova espécie.
Os argumentos científicos da interferência humana na dispersão da castanheira por toda a Amazônia são, por ora, difíceis de serem contestados. E para um dos mais ferrenhos defensores dessa hipótese, Ricardo Scoles, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará, “as cutias podem explicar a distribuição espacial concentrada dos indivíduos de castanheira dentro dos castanhais, mas é impossível de entender como esses roedores, sem ajuda humana, podem explicar a distribuição pan-amazônica de Bertholletia excelsa. A dispersão da cutia é altamente ineficiente e de curta distância. Além disso, como esses roedores pode-riam atravessar os grandes rios com sementes na boca?”
Não sou do ramo e essa não é minha prioridade científica. Mas posso dar minha modesta contribuição para o debate: concordo que as cutias não podem atravessar grandes rios com sementes de castanheira na boca, mas alguém tem que explicar o porquê da ausência da castanheira a partir do Rio Purus aqui no Acre? Será que os índios que habitavam nosso Acre não sabiam nadar?
Leitura recomendada:
O fator humano: Castanhais podem ser resultado da ação de populações indígenas antes da colonização européia. Pesquisa Fapesp, Edição 198: 57-59. Agosto de 2012
* Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do INPA e do Parque Zoobotânico da UFAC.