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Os turcos nossos de cada dia

O Eça de Queirós, romancista luso do final do século dezenove, escreveu que, em Portugal a emigração não é, como em toda a parte, o transbordamento de uma população que sobra, mas a fuga de uma população que sofre.

Entre os sírios e libaneses ocorreu algo um tanto diferente. A população era razoavelmente numerosa, mas cabia nos territórios, e o êxodo aconteceu, principalmente, pelo acirramento das guerras religiosas entre cristãos e muçulmanos.

Portugueses e sírio-libaneses findaram por virem a ser vizinhos em Xapuri. Alguns deles se fizeram compadres até. Rezavam o mesmo credo na mesma Igreja de São Sebastião construída com as doações de todos.

Dentre os libaneses, oriundos das cercanias de Beirute  –  onde foi fundada a segunda universidade mais antiga do mundo  –  a cordialidade e o sorriso franco e aberto são marcas principais. Demonstram viver bastante felizes. Dão gargalhadas ou sempre estão a sorrir simpaticamente. Eles já não navegam ou nunca navegaram pelos rios, como os brimos da Síria, mas estão, já, lá em cima dos barrancos, em lojas muito bem montadas, usam terno e gravata, leem aqueles jornais de letras escritas no sentido vertical, cumprimentam a todos efusivamente, riem e se fazem compadres e comadres dos nordestinos que lhes servem nos afazeres domésticos e comerciais, dentre outros, nas cidades.

Um destes, grande amigo de Dom Tomás, de nome Touffic Koury, tornou-se fazendeiro lá pelas imediações do Xapuri. Tem uma fazenda bem administrada, muitos bois e cavalos tratados com bastante esmero, os pastos bem cuidados e uma casa grande e vistosa, estilo chalé, em meio a um arvoredo, no alto de uma pequena elevação nos arredores da cidade, próximo ao antológico Rio Acre.
Então, num desses dias modorrentos de verão, logo que por ali chegou o Banco da Borracha, o homem foi buscar um dinheiro com o qual pagaria os trabalhadores (batedores de campo; cortadores das ervas daninhas em meio ao pasto) do seu empreendimento altamente rentável.

Era sábado. Então, o turco mon-tou um burro desses grandões, chamado Piolho e, já de volta, pelo fato de o saco de estopa em que trazia o numerário estar mal amarrado à cela do animal, desprendeu-se e a dinheirama ficou no meio da rua. Atrás vinha a pé um compadre dele, conhecido por Vavá. Este, assim que viu o incidente, juntou o bendito saco e saiu correndo e gritando pela rua afora atrás de fama e reconhecimento de onde jamais poderia esperar que viesse:

– Seu Touffic! Seu Touffic! Pegue o seu dinheiro que caiu na rua!

E o turco nem olhava pra trás… E haja galope do Piolho e o Vavá desembestado comendo poeira. Resultado: ofegante, quase a morrer sem fôlego, chegou dez minutos atrás do burro. Os cachorros da casa já o queriam comer vivo, quando enfim conseguiu balbuciar:

– Seu Touffic, o seu dinheiro, homem de Deus!

– Dê cá! – Foi o que o rico disse.

– Vixe! O senhor não vai me dar nenhum agradinho?

– Peraí!

Touffic foi ao curral, cortou três metros de corda boa de cânhamo seco e trouxe:

– Tome. Isso é pro senhor se enforcar, seu abestalhado!… Se tivesse ficado com o dinheiro, nunca mais passaria fome nessa vida… Vá embora!

E o Vavá foi, sim, para casa contar à esposa Ernestina o quanto o velho Touffic era birrento. E eu, depois, fiquei a pensar no péssimo exemplo que fica a partir de uma atitude em que a boa ação é interpretada enquanto estultice, burrice da grossa.

Abdon Elias Kamel, segundo  Dom Tomás, é um pândego, apesar da origem síria. Diz coisas bastante engraçadas, mas não ri das suas anedotas sempre bem humoradas. Corta cabelos à máquina de uma boa parte dos mais velhos e destacados da sociedade local… E conta histórias do tempo em que vivia no Oriente Médio.

Num desses dias não tão belos, Abdonzinho Kamel, como é carinhosamente tratado, comeu, à noitinha, uma dessas iguarias engorduradas e, por isto, pesadas, muito próprias da região, talvez um jabuti ou um tatu ao leite da castanha, ou um ensopado de carne de porco, ou, quem sabe, uma boa buchada de carneiro, e passou mal. Também, pudera, segundo o meu interlocutor hoje bem humorado, o homem comia um bezerro no almoço e dois litros de açaí acompanhavam a janta sempre muito farta.

E as dores aumentavam e os gemidos se faziam ouvir pela vizinhança, até que o turco teve a feliz ideia de tomar um efervescente da moda, e o tomou, sem pestanejar.

Dois segundos depois, o moço começou a escumar pelos cantos da boca e, já em pânico, gritou para a filha que lhe era a única companhia já nesses idos da vida:

– Corri aqui mi filha, a cacêta tá na guela! Sucorro!

Como se fora um comprimido, ou pílula, o bom Abdon tomara o Alkaseltzer, quase sem água e partido em alguns pedaços, pelo fato de não saber como aliviar-se das dores que tanto o afligiam.

Muitos desses estrangeiros não me fogem à memória nem às anotações, como o sírio Farid Abdalah, ex-regatão, de um humor insuportável, com um catarro eterno no peito e umas indefectíveis sandálias de couro que faziam um barulho esquisito, até depois de morto, pelos corredores da vivenda elegante que comprara por trás da maçonaria, com a devida vênia.

Um outro amigo do meu bom Tomás é o libanês Farizaire, sempre agradável, ele e os filhos endinheirados e sorridentes. Alfredo, tio dos meninos Zaire, também é comerciante de miudezas e, pelo fato de estar sempre fazendo promoções para a venda dos seus artigos, o chamam  Titiliquida, porque o titio liquida tudo mesmo, mas vive muito bem de vida, quase como um fidalgo.

Um outro batrício tem por nome Jorge Eluan, fala alto e bem explicado, mas, muito bem aclimatado à terra, diz palavrões impublicáveis. Dentre os libaneses, o mais educado e gentil de todos é o Gatasse Kalume, um homem de fino trato, realmente; casado com uma mocinha de nome Carmem, filha de turcos de Belém e aparentada de Faride, uma bonita vizinha da família da minha esposa. Sobre este nobre Gatasse, Dom Tomás, sabiamente, arrotando filosofia, enquadra-o num aforismo segundo o qual a elegância é a arte de não se fazer notar aliada ao cuidado sutil de se deixar distinguir. Assim é ele.

Os irmãos Abrahão Felício são também comerciantes e têm embarcações, como os portugueses Galos e Costas, como os Zaires e os Kalumes.

Há ainda um libanês bonachão e forte de feições chamado Jamil Bestene, sobrinho de Jorge Eluan. Há um sírio carrancudo de nome Andrias Cher Sarkis e uns outros tantos cujos nomes estão devidamente anotados em minhas cadernetas para futuros contatos.

* José Cláudio Mota Porfiro é escritor.

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