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Sendas do Acre de antanho

 
Brecht me diz que as margens são violentas porque oprimem o rio. Talvez. Pode até ser. Mas vejo que tal assertiva pode tornar-se verdadeira se a região for montanhosa. No caso, este é o Acre. Aqui, ao contrário, talvez pelo fato de vivermos na planície, na subida para a grande cordilheira, o rio se comporta de duas maneiras.

 No verão o rio é calmo, lento, silen-cioso e constante. É como se fluísse em compasso de valsa ou a contar uma história bem longa e sonolenta. Surge tranquilo lá na volta do Cumaru de Ferro, quase sem vontade de contornar o sacado. Uma preguiça só, em vista do sol que se faz escaldante, quem sabe, daí a modorra. Passa pela praia redonda sem importunar sequer os tetéus e maçaricos. Nem olha para as bananeiras bravas de caule roxo e não importuna a vastidão dos verdejantes pés decanarana a perder de vista. Aqui e acolá, os tracajás lhe tiram um pouquinho do sossego, posto que os jacarés, tanto na entrada como na saída da água, são extremamente leves, como que para não desassossegar a mansidão do caudal.

 E então, do fim de março para o começo de abril, as águas começam a baixar, bem devagarzinho, deixando uma lama muito viscosa na beirada d’água. Em maio, aponta uma ponta de praia por mim visitada logo que começou a surgir. No início de junho, à época da morte do rezador Chico Trindade, bateu uma friagem de sacolejar os ossos; é tanto que o véi se foi dessa para melhor, ou para pior. Em doze dias de chumbo ninguém viu a cor do olho do sol, coisa que jamais esperei um dia vivenciar. Veio, então, a tal friagem seca. O céu ficou azulzinho, por uns cinco dias, findos os quais se descortinou uma praia de uns vinte metros de largura por uns mil de comprimento, isto, lá na volta do sacado; segundo apura a vista a partir do barracão, rente ao pé de Cumaru de Ferro, uma árvore enorme, alta e de galhos muito grossos espalhados, parece desenhada, quase uma instituição, ou uma igreja, de tão formosa e altaneira.

 No fim do sacado, no começo da volta no rumo de cima, trepadas em barrancos altos, de um lado e do outro do rio, postam-se mais duas instituições da natureza. Cá mais pra perto está uma castanheira altíssima, de uns cinqüenta metros, dizem. É ela que segura o barranco contra a teimosia do rio. É uma árvore muito bonita, mas malvada, conforme o povo de cá. Em outubro do ano passado  –  segundo o meu pajem Sororoca  –  na época da queda dos ouriços, um tal João Doido, arigó recém chegado do Ceará, apesar dos conselhos dos mais experientes, foi apanhar  castanha para fazer um mingau de massa puba (de macaxeira azeda). Lá chegando, um vento balançou os galhos lá em cima e lhe rebolou um ouriço mesmo na cabeça. Foi só uma. Ele ficou com os miolos espatifados de uma forma tal que o enterraram lá mesmo, arrastando os restos mortais do cabra com uma enxada para dentro do buraco raso. A natureza deu uma ordem e ele a desobedeceu. Época de apanhar castanha é depois que os ouriços caem todos. E só.

 Lá mais longe, do outro lado do rio, também no início do sacado, um pouco recuada em relação à margem, está a árvore mais bonita que os meus olhos já viram. É uma Samaúma nascida há uns duzentos anos à beira de um pequeno córrego que deságua no Rio Acre. É outra instituição na paisagem natural. Ela, à tarde, já a partir das três, joga sombra do outro lado do rio. Lá, olhando para o alto, vê-se um gigante de uns quarenta metros de altura dotado de dois galhos hercúleos à semelhança de braços humanos musculosos em posição do fisiculturista que se exibe para retrato. Dentre todos os espetáculos da terra amazônica, talvez nenhum tenha tanta pujança, tanta beleza, tamanho encantamento. Coisa de Deus.

 Amanhã, então, a partir das oito, tomarei parte de um evento esportivo muito especial. Disse-me o Zé Raimundo que uma parte desta peleja é jogada dentro do rio, mas eu não entrarei na água e talvez participe como alguma espécie de árbitro ou juiz da dita contenda.

 É novembro e, na parte do campo em frente ao armazém e ao barracão dos patrões, já estão umas três mil pelas de borracha pesadas e anotadas nas cadernetas de cada seringueiro. De Xapuri, vieram oito homens numa lancha de nome Douro, de propriedade dA Limitada. Sororoca, Zé Raimundo e os comboieiros, ficarão na parte de cima do barranco. Os embarcadiços ficarão dentro do rio…

 E é dado o começo a contenda. O pessoal de cima joga as pelas de barranco abaixo e elas saem pulando, saltitando, no rumo do rio onde, na chegada, dão um salto de final de exibição e fazem um rebojo bonito. O pessoal de baixo, então, incumbe-se de, a nado, ir apanhando as pelas que bóiam no rio. O processo se finda quando, enfim, elas se unem por uma corda e são formadas as enfieiras que, juntas, comporão as balsas de borracha que descerão o rio até Boca do Acre, no Amazonas, onde o transporte em navio maior se faz mais barato para o seringalista. À tarde, começou o segundo tempo e o espetáculo terminou aí pelas três e meia. Aqui, para tudo é preciso um especia-lista em Amazônia.

 Agora, é outubro. No rio, é a época em que abundam as arraias chocas. No lago, há piranhas que aparecem não se sabe de onde. A experiência adquirida não permite que ninguém se torne vítima desses bichos da água. Ao contrário. As primeiras são fisgadas em anzol e se tornam isca para a pescaria de peixes de primeira categoria, como o filhote de piraíba, o dourado, o surubim, o pirarucu, o fidalgo, o barba chata, dentre outros. As demais, também pescadas em anzol, são transformadas em uma caldeirada de gosto pra lá de bom. Segundo garantem, o cabra que toma caldo de piranha uma vez por ano nunca vai negar fogo na abertura de perna de mulher nenhuma.

 O inverno é rigoroso, severo, parece castigo lá de cima. A água cai a cântaros. São dois, três, quatro dias de chuva quase ininterrupta. No auge da força, os pingos são tão grossos que chegam a assustar aqueles inexperientes e desavisados que, como eu, nunca viu tanta fartura e tantos córregos e igarapés que se formam de uma hora para a outra.
Aí, a chuva fica mansinha e as pes-soas se aventuram na busca por coisas imprescindíveis que a torrente as impediu de apanhar. É um pilão que ficou no paiol. É um caco de torrar café que está fazendo falta. É uma galinha que es-tá engurujada e pode morrer de frio se não for socorrida. É a lenha que deve ser partida no seco, na casa de farinha, e assim por diante. Dá-se sempre um jeito.

 Findo o almoço, ato mais uma vez a rede cearense avarandada. Toco o pé na parede e passo a me balançar. Que bom! Não há mosquito de nenhuma espécie, mas há caparanãs de monte a partir da tardinha. Penso com os meus botões. É este o inverno amazônico. É um colosso. Começo a ter medo de haver chegada a hora da ira de Deus a nos enviar um segundo dilúvio e rezo para que Noé me salve. É água pra todo lado e ainda é dezembro. Isto aqui é realmente terra para aventureiros, como nós nordestinos. Em uma síntese rápida e rasteira, se correr o bicho pega se ficar a sucuri come, isso, sem falar no risco que é o contato com o próprio bicho homem sempre prestas a comer o irmão na bala ou na faca.

 Agora, o comportamento do rio é completamente outro. Já não há preguiça ou lassidão. Ele se faz duro, pesado, violento e, como um animal pré-histórico gigantesco, corrói impiedosamente as margens que se veem diminuídas no seu papel de conter os ímpetos do caudal que se avoluma e avança mata adentro.

 As imbaúbas da beira d’água tentam impedir, mas sucumbem e são forçosamente levadas pela correnteza bravia. Não há jeito que dê jeito. Árvores de maior envergadura também são transformadas em balseiros e levadas rio abaixo. A invasão vai mata adentro e transforma varadouros em canais e pântanos onde passam a habitar o tambaqui, a matrinchã, a curimatã, o tucunaré e outros escamosos menores que se alimentam de sementes de árvores como a seringueira, o jitó, o manitê. O grande lago é invadido e liga-se ao caudal que mais parece um mar de água doce. Como é belo e perigoso. Um sem número de brabos já se arvorou a muito macho e foi tragado pelas águas deste Rio Acre de muita história, de tanto sacrifício e de glórias tão sobejamente cantadas em prosa e verso pelos poetas de cá e de lá do sertão nordestino que por aqui aportaram. Eles vieram, viram, mas não venceram… Por pouco.

 A vitória ocorreu, sim, mas apenas para um pequeno grupo de afortunados que houveram por bem chegar por aqui primeiro, ainda no século dezenove, ou para uma boa parte formada por aqueles que, usando de muita sagacidade, esperteza e desonestidade, as três juntas, foram invadindo terras que não eram suas e se apropriaram de extensões territoriais imensas. E o que fizeram eles?

 Tendo em vista a pouca densidade na formação do caráter desses homens rudes do sertão nordestino, em aqui chegando, passaram a maltratar os muitos que por aqui aportaram para o trabalho mais pesado nos seringais.

 Ora, esses mais pobres vinham para viver ou para morrer e não se importavam com as condições adversas que lhes eram impostas pelos patrões também nordestinos  –  das mesmas origens  –  mas tornados ricos pela arrogância recentemente cultivada, pela truculência e trambiques próprios dos seus métodos sempre cheios de maldade, com raras exceções.
Em uma das poucas viagens que fiz a Xapuri, tive uma visão do fim do mundo, dantesca, apocalíptica. Em frente ao quartel de polícia e delegacia pública, havia um mourão de uns três metros de altura, grosso e roliço, cheio de marcas escuras que me chamaram a atenção. Sem muito o que fazer, perguntei, então, ao pároco da cidade, o Padre Felipe Galeranni, e este me disse que era prática de alguns patrões seringalistas mandarem açoitar seringueiros relapsos que se comportavam contrariamente ao que lhes era imposto. Os endinheirados delatam os coitados à polícia e esta se incumbe de dar os corretivos que giram em torno dos mesmos métodos, sempre.

 A tirania não é menos arriscada para o opressor, do que penosa para o oprimido. Em outras palavras, o mundo dá muitas voltas e já temos visto alguns dos antigos sicários donos de seringais, hoje, pedindo esmolas em praças como as de Rio Branco e de outras cidades maiores do Acre. A desgraça que foi imposta às suas vítimas é a mesma que se abateu sobre eles quando chegou a época da necessidade, o ocaso da vida que pensavam ser sempre de muita fartura e or-gias indizíveis com as tapuias inocentes e as viúvas desafortunadas.

*Cronista: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br  –  Acesse e sugira!

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