Rio Acre, ao ler a fina leitura de tuas margens, sem me fazer notar, senti vergonha de ser honesto ao despejar meu verbo a tantas desculpas ditadas por vaidades de uma sociedade que faz dos Rios verdadeiros monstros. Ao invés de te acolher e promover a igualdade, floreiam e justificam atos de natureza criminosa.
Muito embora, teu vale siga cheio de verbos e versos que brotam da terra, eu faço parte de uma geração que vive sobre as águas buscando as margens da felicidade. Comove-me ver o povo enveredar por rios que não posso navegar.
Repetidas vezes tenho me sentido inerte, preso a desilusão, ao cansaço. Tateando margens para enxugar suor das cheias que faz transbordar, cheio de vergonha da nossa sonolência, amiúde chego a desanimar.
Prefiro andar nas margens das grandes águas como andam as cheias, cobrindo, cingindo os limites da beira natureza.Te contemplar é ver o relógio secar o tempo, o porto aportar novos sonhos, navegando, adoçando as águas do cotidiano.
Não consigo te conceber como barco sem leme, flutuando a esmo. De todos os Rios você é aquele que se emboca na humanidadetal qual roupa de alfaiate, tens o gole certo para sede certa. Seca e enche da mesma forma que o clima estratifica o extrato no tempo.
Somente o tempo em destino navega adormecido nas águas de um rio de verão, cheio até a tampa de ilusões. Utopias criadas pela criatura humana sobre o cenário precioso de tuas águas.
Teu mundo é uma moldura, é o curso estreito da solidariedade entre gerações que nunca segrega ou separa vaidosos sorrisos. Chega feito caudal culminante para a esfera aquática cultivar a coragem para sustentar emoções nas margens relentas, frias e indiferentes da consciência humana.
Somente por você acessamos a água limpa, a alegria de viver com saúde, sem idade. Idade se configura na estrutura do tempo das chuvas, cheias e estiagens carregando desgosto sem gosto, no agosto da vida.
Numa poça d’água, onde mora um meandro, voam borboletas como voa o sonho de um menino descalço, encantado com o colorido na areia virgem. Entre suas curvas hei de me embrulhar, encostar, banhar os pés ao alvorecer, cavalgando nas águas que jorram palavras como jorra a sociedade, como cava estradas, tal qual renasce o tempo nos rios. De onde vem um manancial sem povo, adormecendo olhos d’água, ajustando vértebras da cintura fina de um rio?
Um rio cria memória das águas, assim como os homens criam histórias, sabendo que seu leito é maior que o mundo, todavia em seu mundo não cabe minha solidão, já que alheio vivo, guardando rios das enchentes e queimadas deste chão.
Um rio. Um rio, um mimo. O rio dura, perdura, passa, ultrapassa, desvenda limites na mira da linha de cheia, do grito e da dor. A verdade é que dormindo não se ouve pesadas chuvas chegarem. Chegam Navegando ao ventre, mergulhando n’água nadam cantigas. Cantam na calha o que nada encontram. Encanto, encontro tronco, paisagem à sombra. Olhando canoa sem toldo, chuva sobe gotas em cada porto.
Não pra admirar, nem consumar cheias, inundações, causar dor, mas para caricaturar, desenhar e esculpir a planície que guarda segredos, cheios de sonhos. Ajoelhar-se ao milagre de vê galhos secos que brotam no sol germinar.
* Claudemir Mesquita é professor, escritor membro da AAL e presidente da Associação Amigos do Rio Acre.
[email protected]