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A Contação de História como transcendência

A equipe do Centro de Multimeios da Secretaria Municipal de Educação realizou a II Semana da Tradição Oral. No Centro Cultural Taumaturgo Filho, no Conjunto Manoel Julião, os contadores de história de Rio Branco tiveram o privilégio de ouvir as orientações de uma mestre no assunto: Gyslaine Matos.

Herdeira da mineirice competência em contar “causos”, Gyslaine é neta de um rezador de pastos (homem que “conversava com as cobras” para que elas não picassem os animais dos fazendeiros) recebeu a equipe de A GAZETA para explicar o que faz da “contação de história”. “Nós não temos mais sentido para as nossas experiên-cias”, observa. “O Homem que vive em um mundo completamente dessacralizado e vai buscar nas histórias um sentido para a vida”.

O que faz um bom “contador de história”?
O “contador de raiz”, das sociedades tradicionais, a relação com o tempo é outra; as relações entre as pessoas são diferentes; o velho [idoso] tem um papel muito importante nessa sociedade. Ele é detentor de uma experiência: velhos são bons contadores de histórias. Ninguém tem ansiedade para que nada aconteça. A relação com a narrativa, com o tempo, é completamente diferente.

Quando esse interesse pela “contação de Histórias” começou? Ou recomeçou.
O movimento começou a retomar na Inglaterra na década de 70 e se espalhou pela França, depois Canadá, e influenciou o mundo inteiro. O mundo inteiro entrou nessa onde de contação de história para resgatar essa palavra. Nesse sentido, o trabalho de folcloristas, que anotaram essas histórias, foi importante e, por isso, elas não se perderam. Os contos voltam para cena da nossa contemporaneidade como uma reposta a uma necessidade desse homem contemporâneo, que, de repente, ele sentiu um grande vazio e uma falta de sentido para a vida.

Existe o embate entre a “cultura oral” e a “cultura escrita”?
A gente sai de uma cultura que é totalmente oral e vamos passar hoje para uma cultura que é totalmente escrita. A cultura oral tem coisas preciosíssimas e a cultura escrita também. A cultura escrita vai nos trazer um desenvolvimento melhor da nossa faculdade analítica, da nossa faculdade reflexiva de outra forma, diferente da oralidade. E, com esse olhar mais analítico, mais distanciado, mais objetivo que a Ciência vai nos trazer, nós vamos olhar esse material [contos, histórias etc.] e vamos começar a analisar: o que essas histórias são? Por que essas pessoas estão correndo atrás dessas histórias? Que situação é essa?

Que situação é essa?
Hoje, o mundo é totalmente dessacralizado. E, quando eu falo em dessacralizado, eu não estou falando em Religião. Eu estou falando em quê? O que é o sagrado nessa concepção? O sagrado é o que dá sentido às minhas experiências. As religiões se apropriam do Sagrado, buscando dar sentido a existência através de uma leitura de Deus, ou seja lá do que for, não é? Elas [as religiões] se apropriam disso, mas o Sagrado independe das religiões.

Vive-se uma crise existencial sistêmica. É mais ou menos isso?
Nós vamos ver que as nossas experiências, no mundo contemporâneo as nossas experiências pararam de ter um sentido transcendente a mim. Nós vamos ver que nessa outra dimensão de mundo, onde essas histórias acontecem, o Homem não vive em uma dimensão só, que é a dimensão do Profano. O Profano existe, é necessário, ele faz parte desse mundo: eu preciso comer, dormir, vestir. Mas, esse Homem vive em duas dimensões simultâneas. Ele vive na dimensão do Sagrado: é onde ele encontra sentido para as ações dele no mundo Profano. É no Sagrado que ele busca o Conhecimento do que ele vai fazer no mundo material. Então, ele vai levar em consideração um tipo de intuição que ele tem para observar a natureza. Ele vai ser guia-do por algo que tem uma intuição que ele vai relacionar essa intuição que transcende ao Conhecimento dos livros, por exemplo.

A senhora poderia exemplificar de forma mais concreta.
Meu avô, por exemplo, ele tinha rezas que ele fazia para tirar as cobras do pasto. Com essas rezas, ele conversava com as cobras e ele delimitava um espaço no pasto e ele dizia: ‘aqui, o meu semelhante não te ofende e você não ofende o meu semelhante e nem meus animais’. Meu avô dizia para os fazendeiros: ‘Ninguém pode matar uma cobra aqui nesse lugar. Se encontrar uma cobra, tem que passar e ir direto. Aqui, não se mexe com ela, não’. É uma forma de interação com a natureza que nós perdemos. Quando nós passamos a ter a Razão como carro-chefe, nós perdemos a nossa capacidade intuitiva. A intuição era praticamente um sentido, como audição, olfato, tato.

Que relação isso tem com a contação de histórias?
As experiências são fragmentadas. Eu não tenho mais sentido para as minhas experiências. E isso vai levar a quê? Suicídio, ansiedade, depressão, aos excessos, drogas, bebidas, workholic porque eu perdi o sentido existência. Eu estou aqui por quê? Estou aqui só para comer, dormir, ganhar dinheiro? Isso é de uma covardia absurda. Quem me colocaria nessa esparrela? Que criador é essa que me colocaria nessa situação?

Se o contexto é esse, como formar contadores de história?
O Homem que vive em um mundo completamente Profano, dessacralizado, em que as experiências não têm mais sentido, começa ter um vazio tão grande, que ele vai buscar nessa fonte [histórias] um sentido para a vida. A partir disso, a morte tem sentido, a generosidade tem sentido e tudo isso faz parte de uma situação muito maior. E quando isso volta a ter sentido, os contos voltam à tona. E, como uma necessidade real do nosso tempo, isso começa a pegar (sic) todo mundo. Todo mundo começar a querer escutar história, falar de história, contar história. Eu já vivi muitas situações, quando eu comecei a contar, e as pessoas saiam chorando.

Por que isso acontece?
Porque a sua alma estava seca e você a levou para beber água.

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