No último domingo, 21, uma adolescente de 14 anos chegou ao Centro Socioeducativo Mocinha Magalhães para ser internada após esfaquear o marido. Porém, a jovem alega ter desferido o golpe para se defender depois de uma série de agressões físicas cometidas contra ela. O caso corre em segredo de Justiça e está sob responsabilidade da 2ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Rio Branco.
Em entrevista exclusiva À GAZETA, Maria Eduarda (nome fictício), relata um pouco da vida marcada pela violência. Segundo ela, tudo começou quando veio de Boca do Acre/AM para a capital acreana. Em Rio Branco, a mãe, que antes era amável e tranquila, passou a ter uma personalidade forte e agressiva, punindo os filhos fisicamente com frequência.
Aos 9 anos, Maria Eduarda foi estuprada pelo padrasto. Os abusos se seguiram durante anos. Mas, sob ameaças, ela nunca chegou a denunciar o agressor. “Ele sabia do meu apego pela minha irmã caçula e usava isso contra mim. Ameaçava matar também a minha mãe. Nunca consenti com as suas atitudes. Às vezes, eu até chegava a gritar chorando, mas ele prometia matar a todos”.
A única vez que a adolescente revelou o estupro para a mãe, a mulher estava embriagada. Depois disso, nunca mais conversaram sobre o assunto. Um trauma ainda não superado pela jovem.
Assim como muitos relacionamentos entre 2 pessoas, Maria Eduarda também teve um início de namoro feliz. A adolescente conheceu o esposo, que hoje tem 25 anos, no ano passado, por meio de uma amiga. Logo decidiram morar juntos e ter uma vida a dois. A família de ambos apoiou a união. “A princípio foi tudo tranquilo. Tanto que nem lembro exatamente quando ele começou a me bater. Já foram tantas vezes, que perdi as contas”, desabafa.
De acordo com Maria Eduarda, os espancamentos sempre começavam pela relutância dela em ter relações sexuais com o parceiro. Quando a jovem se recusava em deitar com o marido, ele começava uma série de agressões, que, por várias vezes, chegava perto de uma tragédia. “Geralmente ele me batia, me derrubava no chão, me enforcava ou colocava um travesseiro no meu rosto para me sufocar. Quando terminava, eu estava tonta, com falta de ar, praticamente desmaiada”.
O fato é que Maria Eduarda se envolveu com um traficante. Este detalhe é o motivo de ela nunca ter buscado ajuda. O medo estava ali, todos os dias, como um velho companheiro. Os vizinhos, ciente da periculosidade do marido da adolescente, preferiam ficar omisso à situação. “Às vezes, quando a surra era mais forte, eu gritava. Os vizinhos até ouviam, mas preferiam não se envolver”.
O casal já estava junto há 1 ano quando Maria Eduarda resolveu reagir. Segundo ela, machucá-lo nunca foi a sua intenção. No domingo, 21, os dois estavam em casa quando começaram uma briga. Ele queria novamente abusá-la sexualmente. A rejeição o fez agredi-la bastante. “Depois eu disse que ia para a casa da minha mãe, e ele disse, furioso, que eu podia ir mesmo. Quando eu dei as costas, ele correu e me puxou segurando forte os meus braços. A primeira coisa que vi na minha frente foi uma faca em cima da pia. Eu peguei, mas eu só queria assustá-lo para que ele parasse. Joguei a faca para frente. Depois percebi que eu tinha lhe acertado na barriga, quando vi as tripas saindo. Fiquei nervosa e chamei a ambulância”.
Atualmente, Maria Eduarda está internada em um Centro Socioeducativo feminino. O caso está sendo investigado. De acordo com o corregedor do Instituto Socioeducativo do Acre, Afrânio Justo, quando as provas chegarem ao conhecimento do juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude, Romário Divino, ele irá decidir por uma liberdade provisória ou manterá uma decisão judicial.
Justiça deve considerar a situação na qual jovem vivia, diz corregedor
O corregedor alega que casos como o de Maria Eduarda são comuns nas unidades socioeducativas. Geralmente, elas não têm uma base familiar que as assegurem e lhes sustentem até completarem a maioridade. Desta forma, meninas cada vez mais jovens buscam construir famílias e uma garantia da manutenção da vida delas.
Com isso, o Estado passa a ter uma responsabilidade para combater este tipo de ação. Só que, segundo Afrânio Justo, não existe um órgão que fiscalize diretamente situações assim e garanta a proteção efetiva e direta a todas as adolescentes em situações semelhantes.
O corregedor atenta para alguns detalhes, que revelam Maria Eduarda como vítima nessa situação. “A lei determina que, a partir dos 16 anos, a adolescente está apta a poder casar, desde que tenha o consentimento dos pais. Abaixo dos 16 anos, existe uma situação excepcional, em que, no caso de gravidez, o casamento não traria nulidade também. Mas isso não é o caso da Maria Eduarda. Já manter relações sexuais com adolescentes menores de 14 anos é, de acordo com o artigo 217, estupro de vulnerável. Uma só denúncia nesse caso seria motivo para abrir um processo criminal”.
Para Afrânio Justo, os meios que levaram a adolescente Maria Eduarda a cometer o ato infracional podem interferir a seu favor na resolução do processo. “Nessa fase, todas as provas que pudermos apresentar para demonstrar a situação de subordinação no qual ela vivia, e que a levou a fazer aquilo, podem ajudar na decisão da Justiça. Afinal, o juiz está restrito às provas colecionadas nos atos. Com certeza, ao final disso, o resultado será justo”.
Ausência dos pais no desenvolvimento do adolescente pode motivar as infrações
A assistente social Mirla Arruda aponta que geralmente adolescentes que cometem atos infracionais possuem um histórico de vida complicado. A começar pela infância, uso de drogas, violência sexual, falta de limites e de acompanhamento da própria família. “Quando a gente identifica casos como o da Maria Eduar-da, no primeiro atendimento, nós encaminhamos as jovens para os atendimentos que existem na rede pública”.
Com a nova rotina das cidades, a maioria das mães precisa trabalhar fora de casa. Para algumas famílias, contar com os serviços de uma babá é financeiramente impossível. Dessa forma, os filhos acabam ficando soltos. A omissão por parte dos responsáveis acaba acontecendo, às vezes, até por falta de conhecimento. “Muitas famílias, por exemplo, não sabem que prática sexual com jovens menores de 14 anos é estupro de vulnerável. Isso é até cultural. Adolescentes de 12 e 13 anos constituindo família e tendo uma prática sexual de adulto é comum. Essas meninas não possuem ainda o corpo preparado para essas práticas e nem para a gravidez. Isso poderia colocar a vida delas em risco”, explica.