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Parteira: Profissão tradicional da floresta ainda está viva

Já estava tudo escuro no meio da floresta. Na casa feita de paxiúba, apenas a lamparina estava acesa. Uma luz na imensidão da mata Amazônica. Sem energia elétrica, o calor do período de estiagem era capaz de consumir qualquer pessoa.

As contrações aumentavam a cada instante e a dor era traduzida pelos gritos da mulher em trabalho de parto. A criança já estava pronta, a mãe preparada. Porém, não havia ninguém mais na casa, além de uma criança de 10 anos.

Entre uma contração e outra, a mulher começou a pensar em um plano B. A vida do filho dependia da sua capacidade de elaborar uma solução para o fato de estar no meio de um seringal isolado, em Marechal Thaumaturgo, com uma criança precisando nascer.

As dores dobravam a cada minuto. Foi então que lembrou que a menina que assistia o seu tormento com curiosidade era também filha de sua grande amiga, uma parteira experiente da floresta.

A grávida chamou a criança para mais perto e lhe perguntou se sabia como fazer um parto. Inocente, a menina respondeu que acompanhava a mãe na maioria das vezes. Essa declaração foi suficiente para a mulher confiar a sua vida e a do bebê nas mãos da pequena.

Nervosa, a menina – chamada de ‘Zenaide’ pela família e pelos amigos – tentou imitar todos os passos da mãe. Pegou água, panos limpos, pôs a lamparina para mais perto e começou a ajudar a grávida, pedindo-lhe para fazer força.

E foi em um desses momentos que viu a cabeça do bebê, logo depois o corpo. E, quando menos esperava, ali estava uma criança recém-nascida em suas mãos, encoberta por sangue. A alegria e o alívio tomaram conta da casa.

Quase desfalecendo de cansaço, a mulher lembrou à menina que o cordão umbilical ainda estava ali. Zenaide procurou na casa uma tesoura ou faca para realizar o corte, mas aquele era um lugar muito pobre. Sem outra opção, a garota pegou um pedaço de ‘taboca’ (madeira oca) e fez o trabalho.

E foi assim que Maria Zenaide de Souza Carvalho, hoje com 56 anos, conta como foi o primeiro dos mais dos seus 240 partos já realizados.

Quando resolveu deixar a Vila Restauração, em Marechal Thaumaturgo, aos 39 anos, e vir tentar a vida em Rio Branco, a mulher revela que passou 5 anos sem realizar nenhum parto. De acordo com ela, este método não era muito popular na Capital, fato que se confirma até hoje.

Durante a sua trajetória de parteira, Zenaide fez uma capacitação em Pernambuco para aprimorar técnicas e se registrou na Rede Nacional de Parteiras. Depois disso, ainda passou algum tempo sendo multiplicadora de conhecimento dentro das comunidades isoladas.

Sobre as qualidade que uma pessoa precisa ter para ser parteira, Zenaide é bem exigente. “Primeiro precisa ter responsabilidade, conhecimento do corpo humano, porque sem isso é impossível fazer um parto com sucesso. Naquela hora, não sou a Zenaide. Sou uma médica que está ali, que faz o trabalho em pleno sigilo. Temos um código de ética entre a gente. Não falamos dos nossos pacientes por aí. A confiança das parturientes é que nos faz crescer”.

Zenaide comemora o sucesso em todos os partos que já realizou até hoje. Segundo ela, nenhum bebê morreu em sua responsabilidade. “Graças a Deus tudo sempre deu muito certo. Até os casos em que a criança nasce de pés (o normal é a cabeça sair primeiro) eu obtive bom resultado”.

Muito dedicada à missão que escolheu seguir, Zenaide conta que até o pré-natal sabe fazer. Ela é capaz de identificar o sexo da criança durante a gravidez, por meio do pulso. “Certa vez uma amiga chegou pra mim e disse que teria uma menina. Pedi para analisar a pulsação dela e discordei da tese. Avisei que seria um menino. Ela teimou comigo, porque tinha feito ultrassonografia em clínica particular e já estava certa. Continuou comprando enxoval rosa e tudo o mais. Quando o bebê nasceu, enfim ela viu que eu estava dizendo a verdade: era um menino”, relata.

Sobre experiências constrangedoras, Zenaide alega nunca ter sofrido preconceito. Inclusive, em Marechal Thaumaturgo, chegou a trabalhar na unidade de Saúde do local. A parteira afirma que os profissionais do hospital tinham respeito e confiança no trabalho dela. “Eles olhavam a paciente, faziam o toque e diziam para eu tomar conta dela para irem dormir. Eu cuidava da parturiente e, na maioria das vezes, quando eles acordavam já se deparavam com a criança no colo da mãe. Ficavam muito animados. Precisava ver a confiança que o povo de Marechal Thaumaturgo tinha em mim”, lembra.

A realidade na zona rural dos municípios do interior é bem diferente da Capital. A figura da parteira é uma autoridade. Zenaide denuncia que não há médicos nestes lugares e falta equipamento. “As pessoas de lá são carentes. Já fiz partos em casas onde só havia uma cama de paxiúba e 2 redes para deitar. Nem sempre tem o que comer. E, pelo que eu soube, a situação lá ainda está difícil. Um dia desses morreu uma mulher de parto”.

Zenaide, que foi a 1ª presidente da Associação de Parteiras Tradicionais de Marechal Thaumaturgo – Maria Esperança – revela com tristeza que falta capacitação para os novos profissionais que surgem na área. “Gostaria tanto que investissem mais nas novas parteiras. Antigamente era muito fácil fazer este nosso trabalho, porque atendíamos mulheres feitas. Hoje em dia, cada vez mais surgem crianças de 11 anos grávidas. O corpo delas não está preparado. Então, se um colega nosso não tem bastante conhecimento do corpo humano, fica difícil ter sucesso no parto. Pedimos um curso para a nossa categoria, frisando mais nos corpos em fase de formação”.

Além disso, Zenaide revela a falta do kit para a parteira. O Governo Federal já chegou a distribuir esse material, mas é preciso a atualização. São muitos núcleos atendidos pelas profissionais, mas a falta de acessibilidade também é outro problema. Em alguns casos, para chegar à casa da parturiente, levam-se horas e até dias de caminhada na mata.

Mesmo diante das dificuldades, e praticamente sem fazer partos devido à falta de demanda em Rio Branco, Zenaide garante que nasceu para ser parteira. “Amo o que faço. A hora do nascimento de uma criança é uma flor desabrochando. É lindo. Quando o bebê chora, me encho de amor”, declara.

Ainda existem mulheres modernas que optam pelo parto tradicional
A bióloga Ana Luiza Melgaço veio para o Acre há menos de 2 anos, para trabalhar na Comissão Pró-Índio do Acre (CPI). Seu sonho, antes mesmo de engravidar, era ter um filho em casa. No dia 24 de agosto, ela teve o desejo atendido.

Natural do Rio de Janeiro, Ana Luiza encontrou aqui a oportunidade de ter um parto domiciliar. Ela conta da dificuldade que foi localizar uma parteira em Rio Branco. “Não foi fácil. Passei a gravidez quase inteira tentando achar alguém que topasse fazer isso. Já estava quase perdendo as esperanças. Ao mesmo tempo, fazia o pré-natal com um ótimo obstetra. Desde o início falei que queria ter a criança em casa e ele dizia que não poderia me ajudar, porque o Conselho Nacional de Medicinal proíbe o parto domiciliar. Mesmo assim, mantive a ideia fixa. E foi só com 7 meses que recebi a notícia da existência de uma parteira que mora por meio da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres”.

Foi nesse momento que os caminhos de Ana Luiza se cruzaram com os de Maria Zenaide. As 2 começaram a trocar telefonemas e, em visitas, a parteira passou a acompanhar a grávida, preparando-a para o grande momento.

“Eu já tinha estudado um pouco e me encantei com o profissionalismo e a experiência da Zenaide, que já atuou por tantos anos na região do Vale do Juruá. Tudo o que ela falava batia com coisas que eu tinha lido”, relata a bióloga.

Ela também precisou enfrentar a reprovação dos pais. Filha de um médico psiquiatra, a mulher teve que convencê-lo da segurança no procedimento que escolhera. Não foi tarefa fácil. Mas, após todos se familiarizarem com Zenaide, acabaram respeitando a decisão.

Ana declara que nunca se importou com as críticas que surgiam quando ela contava dos planos de fazer o parto em casa. “Sempre acreditei que um momento tão especial como esse deveria ser vivido em um lugar onde a mulher se sinta especial. No meu caso, este lugar é na minha casa”, explica.

O momento do parto foi uma experiência marcante. Era o 1º filho de Ana Luiza que estava para chegar. As contrações surgiram na madrugada do dia 24 de agosto.

Na mesma hora, o esposo da bióloga ligou para Zenaide, que foi às pressas até a residência da parturiente. Com humanização e experiência aplicada, realizou um trabalho de sucesso, conta Ana Luiza.

Junto aos primeiros raios de sol do dia, nasceu uma menina, que recebeu o nome de Ayani, nome indígena. “Aconteceu tudo de forma muito natural. A tranquilidade da parteira me contagiou e, depois de muita força, consegui ter o bebê”.

Questionada sobre os riscos que poderiam ter interferido a alegria daquele momento, Ana declara que tinha tudo preparado caso algo desse errado. “Meu obstetra foi avisado quando entrei em trabalho de parto. Caso algo saísse do previsto, ele estaria pronto para nos atender. Meu medo era só ter de ir para o hospital. Mas ainda bem que tudo deu certo”, comemora.

Médica desaprova o parto domiciliar
A pediatra Marianela Espremadoyro critica a decisão de algumas mulheres confiarem suas vidas às mãos de parteiras, que não possuem formação superior em Medicina.

Ela alega que, durante o parto, algumas complicações podem surgir e por em risco a vida da mãe e da criança. Pode acontecer de, em algum momento, precisarem de aparelho de reanimação, que só hospitais qualificados possuem.

“Não indico e nem faria isso. O momento do parto é uma ‘Caixa de Pandora’. Mesmo que o pré-natal aponte uma gravidez saudável, algo pode acabar saindo errado”, acusa.

Sepmulheres aponta investimentos para a categoria de parteira
Na década de 1990, a Rede Acreana de Mulheres e Homens deu início ao trabalho de reconhecimento da categoria das parteiras. De lá para cá, diversos projetos foram criados, com o intuito de dar mais qualidade ao serviço desenvolvido e tão importante nas regiões de difícil acesso.

A Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres (Sepmulheres) é a responsável pela elaboração do decreto, ainda não aprovado, que pede a instituição do ‘Bolsa Parteira’, que daria o auxílio inicial no valor de R$ 250,00.

Segundo a secretária da Sepmulheres, Concita Maia, atualmente, há aproximadamente 480 parteiras cadastradas no Acre, mas este número pode ser muito maior.

Além disso, Concita afirma que o Plano Estadual de Parteira Tradicional, elaborado na gestão do ex-governador Jorge Viana, pode finalmente ser executado pelo atual governo. Contudo, a implantação ainda está sendo trabalhada.

A secretária elogia a categoria, que tem seus conhecimentos passados de geração para geração. “Elas são guardiãs da vida na floresta e merecem todo o nosso respeito. Sabemos das suas necessidades em melhorar as condições de trabalho e quero dizer que estamos trabalhando nisso”, garante.

A Gazeta do Acre: