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Limitações do uso da Parataxonomia na realização de inventários da biodiversidade na Amazônia

Recentemente, alguns estudos avaliaram a integração do uso do conhecimento de comunidades tradicionais na conservação da biodiversidade e questionaram a utilidade da parataxonomia, ou seja, a identificação de espécies biológicas por pessoas que não receberam treinamento formal em taxonomia e sistemática. No Acre, a categoria de parataxonomistas é conhecida popularmente como mateiros e sua atuação mais destacada se dá na realização de inventários florestais usados para a elaboração de planos de manejo de exploração madeireira.

Uma das razões para o uso indiscriminado de parataxonomistas é a quantidade limitada de taxonomistas formais e o fato da taxonomia descritiva estar perdendo prestígio e financiamento nas últimas décadas. Como consequência, na atualidade é muito difícil os taxonomistas conseguirem recursos para realizar excursões de coletas aleatórias de amostras de plantas e animais de uma determinada região. Embora a quantidade de recursos disponíveis para pesquisa e desenvolvimento tenha aumentado de forma considerável no Brasil, na atualidade a prioridade são os investimentos em pesquisas mais aplicadas ou estudos pontuais dirigidos a um produto, animal ou planta específico.

Nos últimos anos foi observada uma tendência de empoderamento do manejo de recursos florestais pelos proprietários de áreas na Amazônia, fato que, no contexto atual de carência de taxonomistas formais, tem induzido o uso de pessoal local na realização dos inventários dos recursos que estão ou serão explorados.

Alguns críticos do uso de parataxonomistas na realização de inventários ressalvam dois aspectos importantes. O primeiro é a possibilidade de erros na classificação dos organismos tendo em vista que os parataxonomistas raramente têm possibilidades de recorrer a coleções biológicas para tirar dúvidas sobre a identificação realizada. Dependendo do grau de treinamento ou conhecimento do parataxonomista, diferenças morfológicas sutis (como a cor da flor e do fruto), importantes para a distinção de algumas espécies, podem ser relegadas e espécies distintas terminam por ser classificadas como uma só. Da mesma forma, uma única espécie que apresenta variações morfológicas visíveis, mas que muitas vezes não são determinantes para a sua correta identificação (porte da planta, tamanho de frutos e folhas, por exemplo), levam alguns parataxonomistas a classificar plantas de uma única espécie em várias espécies distintas.

O segundo aspecto alvo dos críticos do uso de parataxonomistas é a forma como eles dão nomes aos organismos, sem observar o sistema formal de classificação que usa o binômio gênero e espécie. Geralmente a maioria dos para-taxonomistas aplica um nome popular aos organismos, que pode variar em função da linguagem usada (nome indígena, de seringueiros, migrantes assentados de projetos de colonização), do seu nível de treinamento e da tradição do local de origem do parataxonomista. A consequência é que os inventários de biodiversidade realizados sem a supervisão de um taxonomista formal quase sempre super ou sub estimam a quantidade de organismos contabilizados.

Esses tipos de erros são mais preocu-pantes quando os inventários visam a exploração da biodiversidade, como acontece no caso da exploração madeireira. Um mesmo nome popular usado para identificar diferentes espécies pode resultar, no caso da venda de madeira, no envio ao comprador de um produto que ele não pretendia adquirir. Da mesma forma, o uso de vários nomes populares para uma mesma espécie poderá resultar, por ocasião da exploração na floresta, na sub-exploração do recurso florestal, prejudicando o dono da floresta em exploração.

Em 2007 realizamos, em conjunto com Christopher Baraloto (Inra, França), Cara Rockwell (Universidade da Flórida, USA) e Francisco Walthier (CTA), um estudo sobre a situação do uso de nomes populares para a classificação de plantas lenhosas manejadas nas florestas acreanas. Os resultados foram preocupantes. Foram identificados 384 nomes populares aplicados a 310 espécies diferentes de plantas. Desses 384 nomes, 50% eram aplicados a uma única espécie, quase a metade (43%) era usada em conjunto com outro nome para classificar uma única espécie e 11% representavam mais de uma espécie. Quando a avaliação das espécies encontradas no Acre foi expandida para os estados do Amazonas e Pará, a quantidade de nomes populares saltou para 740, sendo que mais de 90% das espécies eram conhecidas por mais de um nome popular.

Com base nos resultados do estudo, observa-se que o nível de acerto ou correspondência entre os nomes populares usados por parataxonomistas e os nomes científicos corretos das plantas lenhosas exploradas no Acre é de apenas 50%. Foi observado que os erros que acontecem na associação dos nomes populares e os nomes científicos podem ocorrer no campo e no escritório. No campo muitas vezes os parataxonomistas cometem erros por causa de características similares observadas em várias espécies ou pelo uso indiscriminado de diferentes nomes populares para identificar uma única espécie. Muitas vezes esses nomes são sinônimos, como é o caso de gara-peira e cumaru-cetim, aplicados para a espécie Apuleia leiocarpa. Outra situação frequente é o uso do mesmo nome popular para identificar diferentes espécies.

A taxonomia formal tem parcela de culpa nesses problemas em razão de sua incapacidade em resolver de forma satisfatória a correta classificação de algumas plantas comuns por toda a Amazônia. Elas são conhecidas como espécies-complexos e podem incluir novas espécies e seus nomes científicos atuais poderão mudar em futuro breve. Em nosso estudo destacamos o Abiu/Maparajuba, An-gelim, Catuaba/Quaruba, Copaiba, Cumaru-ferro, Jutaí, Maçaranduba, Sucupira e Tauari/Corrimboque.

Os erros mais graves, entretanto, parecem estar sendo cometidos durante a conversão, no escritório, dos nomes vulgares em científicos. E tudo em decorrência do uso sem regras, por parte dos parataxonomistas, de nomes populares de plantas. A situação só piora quando entram em cena parataxonomistas que migraram ou foram treinados em outras regiões do Brasil. Para os responsáveis pela elaboração dos planos de manejo, a busca do correto nome científico das plantas identificadas pelos parataxonomistas, sem dispor de amostras botânicas para identificação em herbários, é um verdadeiro ‘tiro no escuro’. Muitas vezes se usam nomes buscados no Google, de fontes confiáveis ou não.

Os erros e a falta de precisão por parte de parataxonomistas com pouca experiência durante a realização de inventários podem contribuir para confusões no mercado consumidor, especialmente o de produtos madeireiros, bem como afetar a sustentabilidade da exploração de algumas espécies.

É chegada a hora de dar um basta nesta situação. No Acre existem pessoas capazes de contribuir para eliminar esse problema. Incluo-me entre elas e estou à disposição para ajudar no que for possível.

* Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do INPA/Parque Zoobotânico da UFAC.

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