Em 1943, o Brasil entrou indiretamente na Segunda Guerra Mundial, após os japoneses cortarem o fornecimento da borracha para os Estados Unidos. Dessa forma, os 2 países assinaram acordo em que os EUA fariam investimentos na produção da borracha amazônica. Por isso, na época foram enviados 60 mil trabalhadores para os seringais. Quase a metade morreu de malária e outras doenças peculiares da região.
No mesmo período, 20 mil soldados foram enviados para a guerra. Desses, 454 morreram. Os veteranos de batalha estão sendo beneficiados desde os anos 50 com facilidades na aquisição da casa própria e doação de terrenos da União. Passaram a entrar no serviço público sem concurso e tiveram direito a aposentadoria integral aos 25 anos de serviço, assistência médica, hospitalar e educacional gratuita.
Os soldados de guerra recebem uma pensão especial correspondente à deixada por segundo-tenente, hoje mais de R$ 4 mil. Enquanto isso, os soldados da borracha sobrevivem com 2 salários mínimos.
Entendendo que trabalhar na Amazônia foi mais perigoso do que na batalha, a Proposta de Emenda à Constituição 556/2002, identificada como PEC dos Soldados da Borracha, reivindica que o governo brasileiro reconheça a importância desses trabalhadores para o Brasil.
Doze mil soldados da borracha são cadastrados no Ministério da Previdência e todos são idosos com 80 anos ou mais. Em texto relatado por uma das principais defensoras da causa, a deputada federal do PCdoB do Acre, Perpétua Almeida, aumenta a pensão deles para 7 salários mínimos, e um abono que corresponderia ao 13º.
Em 2011, a presidenta Dilma Rousseff sancionou uma lei que inscreve os cerca de 65 mil Soldados da Borracha no Livro dos Heróis da Pátria, que fica no Panteão da Liberdade, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. (Com informações do site da Câmara dos Deputados)
Um esforço esquecido
Ainda era muito cedo, por volta das 3h da madrugada, quando o seringueiro se levantou. A mulher, companheira fiel, adiantou a refeição matinal enquanto o marido se lavava com a água fria da cacimba.
Todos os 13 filhos já estavam sentados em bancos ao redor da mesa quando o patriarca voltou. Sentado na ponta, ele tinha a postura de líder que devia ser respeitado em casa. No prato, alguns ovos mexidos com macaxeira e leite.
Já alimentado, o homem se despediu da mulher e dos filhos pequenos para seguir o caminho. Uma última olhada enquanto os passos o afastavam do tapiri, moradia singela, foi o bastante para ver o sorriso desaparecendo do rosto. Havia muito trabalho pela frente.
Próximo à colocação onde morava, existiam 3 estradas com várias seringueiras. Essas eram de sua responsabilidade.
Em posse de facão, machado, tigelas e uma lamparina para iluminar o caminho, o resto não era mais segredo para o homem.
Cuidadosamente, sangrava as seringueiras e colocava as tigelas no fim do corte aparando o látex que escorria. Ele via o dia clarear executando esta tarefa.
O sol já ardia bem no meio do céu, quando a fome perturbava o seringueiro. Para isso, a boia fria, com carne de caça feita pela mulher, estava na bolsa.
Depois que todo o caminho havia sido percorrido e devidamente explorado, era hora do homem voltar para o tapiri, pois ainda faltava a 2ª parte do serviço: coagular o látex, fazer a defumação do líquido e formar bolas ou rolos de borracha.
Essas são as recordações do dia a dia do soldado da borracha Antônio Araújo Silva, que hoje, aos 85 anos, ainda sonha em ter a categoria reconhecida.
Atualmente ele vive em uma casa humilde no bairro 6 de Agosto, no 2º Distrito de Rio Branco. Dos 13 filhos, apenas 12 estão vivos. Desde que foi atropelado por um carro em 2012, ficou proibido de morar isolado. Até hoje, o homem se queixa de não poder mais viver no seringal, onde, segundo ele, é o seu verdadeiro lugar.
Durante um café no meio da tarde, o soldado revela algumas lembranças do passado, coisas que o acompanham até então. Ele, por exemplo, tem orgulho de dizer que nunca foi enganado pelos seringalistas, talvez pelo fato de saber ler.
Antônio não sabe o que é ter outra vida. Ele nasceu no seringal e ainda pequeno foi alfabetizado pela mãe, que morreu antes dele completar 12 anos.
Ao contrário de muitos colegas de profissão, o seringueiro nunca passou fome. Sempre teve autonomia para plantar e colher nas colocações onde morou. Com uma educação de berço, ele conta que a única vez que enfrentou o pai foi para pedir a mulher em casamento.
O soldado sempre trabalhou nos seringais onde hoje fica a capital acreana. Todo fim de mês, percorria os varadouros, estradas que levavam aos barracões, para prestar conta com o seringalista das borrachas que havia feito. “Enquanto esperávamos eles conferirem a mercadoria, tinha sempre um comboieiro ou capanga com uma espingarda apontada”, relata.
Quando questionado sobre a forma que leva a vida atualmente, seu Antônio Araújo se emociona ao relatar a injustiça que ele e os colegas sofrem até hoje. “O que está faltando é aumentar o nosso salário para a gente comer melhor. E não comprar ‘fiado’ com ninguém. Quando precisar de algo, ter o dinheiro necessário. É uma injustiça o que fizeram com a gente. Só 2 salários mínimos e nenhum 13º de pagamento não são o suficiente para se viver bem”, lamenta.
Relação com os seringalistas era intimidadora
Outro soldado da borracha que vive das recordações e das injustiças que sofreu ao longo da vida é João Marques da Silva, mais conhecido como ‘Pererinha’, de 81 anos.
Órfão de pai e de mãe, ele, que nasceu no Pará, foi criado pelo seringueiro Joaquim Pereira, de onde se origina o apelido. Aos 8 anos, João veio com o homem e a esposa dele para o Acre. Foi quando começou a acompanhar o trabalho nos seringais.
Aos 11 anos, quando o pai adotivo morreu, Pererinha resolveu voltar para o Pará. Trabalhou até os 15 anos na construção civil. Ele estava sozinho no mundo, sem uma referência positiva, quando, recordando da vida que levava enquanto Joaquim estava vivo, resolveu voltar para as terras acreanas.
Ele trabalhou em diversos seringais em Tarauacá. E, dentre muitas histórias, ele destaca a relação com o seringalista, a figura do patrão carrasco, que o assombra até os dias de hoje.
“A gente não mandava em nada no seringal. O nosso trabalho era fazer a borracha e entregar para o comboieiro, que levava o produto para o patrão. Em troca, só nos davam mercadorias de uso diário. Se a gente colhesse pouco, uma dívida ia aumentando no barracão. E mesmo que a gente fizesse um grande esforço e desse muito ao seringalista, o nosso único direito era aceitar o que nos davam. Nunca vi dinheiro nessa época”, declara Pererinha.
Certa vez, por volta de 1970, ele e o amigo desejavam fazer uma festa para sair da rotina. Porém, a bebida que queriam não era disponibilizada no armazém. “Pedi ao seringalista que, quando ele fosse à cidade, nos trouxesse que a gente pagava. O homem fez 3 viagens, mas em nenhuma delas atendeu o nosso pedido. Foi quando decidimos vender a borracha que a gente havia produzido para outra pessoa em troca do vinho. Um comboieiro dele acabou descobrindo e nos levou até o patrão”, conta.
De acordo com Pererinha, quando chegou ao barracão, ele viu um amigo estirado na lama debaixo do giral, onde se lavava a louça. Segundo o seringueiro, o outro também tinha tentado vender a mercadoria por fora e havia sido castigado. “Aguardamos pelo seringalista na varanda e, quando ele chegou, ficou bravo pelo que fizemos. Entrou rapidamente e eu fui logo puxando uma navalha que sempre carregava comigo. Quando ele voltou apontando um revólver para a gente, encostei a faca na barriga dele. Deus sabe o quanto eu não queria ter feito aquilo, mas era questão de sobrevivência”.
Segundo o seringueiro, o patrão guardou a arma e os 3 conversaram sobre o ocorrido. E, com muito diálogo, os devedores foram liberados.
Além disso, outros casos semelhantes aconteciam no meio da floresta. Homens que apareciam mortos, com marcas de dedos no pescoço após produzirem pouco ou venderem a borracha para outras pessoas, era algo comum na época.
Seringueiros com crenças distintas eram assassinados
O soldado da borracha Pererinha revela que viu casas de seringueiros serem queimadas ao longo da vida, por causa de religião.
De acordo com ele, um colega foi assassinado por praticar sessões de Umbanda na sua colocação. “Eles não se contentavam em mandar só na borracha que a gente produzia. Queriam mesmo era ditar todas as regras. Quem não se adequava era morto”, afirma.
As superstições eram tão fortes nesse período, que os próprios seringueiros ditavam regras entre si. “Tive um amigo que foi queimado vivo pelos filhos. Ele tinha fama de ser macumbeiro. E se eu for contar todos os casos, ficaríamos aqui o dia inteiro”. (Fotos: Odair Leal)