A história do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, morto 25 anos atrás com um tiro no peito na porta de sua casa em Xapuri, no Acre, será recontada a partir da memória de um personagem extraordinário: o menino vaqueiro que, aos 13 anos de idade, surpreendeu o mundo ao relatar em detalhes tudo o que via e ouvia na fazenda onde o crime foi planejado.
Pobre, negro e precariamente alfabetizado, Genésio Ferreira da Silva morava e trabalhava desde os 7 anos como peão na fazenda Paraná, propriedade de Darly Alves da Silva, posteriormente condenado como mandante do crime.
Genésio foi enviado pela mãe ao local para fazer companhia a uma irmã que havia “amigado” com um dos filhos do fazendeiro, Oloci. Ajudava nas atividades rurais, convivia com os peões, os filhos, os jagunços e as esposas de Darly (ele tinha quatro na casa). Com o tempo, tornou-se íntimo da família do patrão.
Íntimo a ponto de ganhar um revólver de presente no aniversário de 12 anos, diz.
Íntimo a ponto de o fazendeiro nem se preocupar com sua proximidade nas reuniões em que acertava como seria a emboscada para eliminar Chico Mendes, o sindicalista que lutava contra seu plano de desmatar o agora notório Seringal Cachoeira.
“O Genésio já havia se naturalizado naquele ambiente”, diz o jornalista Elson Martins, do Acre, amigo do rapaz e um dos que acompanham o caso desde 1988. “Ele estava sendo treinado para ser também um matador”.
O livro de memórias de Genésio está sendo editado por Martins e pelo jornalista Ricardo Carvalho, dono de uma produtora de vídeo em São Paulo. Ainda sem título definido, deverá ser publicado pela editora Vladimir Herzog no início do ano que vem.
A história da produção e descoberta desta publicação também tem elementos surpreendentes.
Após denunciar seus antigos patrões – Darly e seu filho Darci Alves Ferreira, o atirador, foram condenados a 19 anos de prisão -, a vida de Genésio mudou radicalmente.
Imediatamente após o testemunho, ele foi entrevistado por jornais, rádios e emissoras de TV de diversos países. Mundialmente conhecido naquele início de 1989, foi ameaçado de morte por uma das mulheres de Darly, inconformada com a “traição”.
Por questões de segurança, o garoto que queria se libertar do peso da cumplicidade acabou preso. Primeiro, numa delegacia da cidade.
Depois, com a autorização sigilosa de um juiz, foi praticamente sequestrado por Martins e pelo jornalista Zuenir Ventura, que cobria o caso para o “Jornal do Brasil”, e entregue à Polícia Militar de Rio Branco, ocasião em que viajou de avião e saiu da região de Xapuri e Brasiléia pela primeira vez na vida.
Como nem o comandante da PM conseguia garantir sua segurança – descobriram uma trama para matá-lo na própria corporação -, Genésio ainda passou um período em dependências do Exército.
Sensibilizado com os riscos que o adolescente corria, Zuenir resolveu adotá-lo e levá-lo para o Rio de Janeiro.
“Um belo dia, cheguei em casa com um adolescente acreano e disse: ‘Aqui está o mais novo membro da família’”, diz o jornalista.
“Não foi bem assim, evidentemente, mas foi quase como se fosse. De repente, mulher, filhos, irmã e sobrinhas ganharam, sem direito a escolha, alguém para conviver com eles. E alguém problemático, cheio de dramas e conflitos, vindo de um terra distante e de uma cultura estranha”.
Genésio ficou sob a tutela de Zuenir até os 21 anos. Voltou para o Acre no fim de 1990 para o julgamento de Darly e Darci, foi personagem do documentário americano “Amazônia em Chamas”, recebeu convites para morar e estudar no exterior – promessas nunca cumpridas, diz Zuenir -, mas jamais conseguiu se adaptar à vida urbana.
Com problemas de alcoolismo, dependência que carrega desde a adolescência, trocava de escolas frequentemente. Passou por por sete ou oito cidades em vários Estados até desaparecer para Martins e Zuenir.
Só em 2004, após uma “expedição” organizada com esse objetivo, os dois jornalistas conseguiram reencontrá-lo. No mesmo Acre. Com as mesmas carências. E a mesma doença.
“Foi quando o Genésio disse pela primeira vez que estava escrevendo algumas coisas sobre sua vida”, diz Martins. “Ele perguntou se poderia entregar alguma coisa para a gente ler, mas não disse que já estava tudo pronto”.
No dia seguinte, lembra Martins, Genésio lhe entregou 395 páginas de caderno escolar, todas escritas à mão, já organizadas em capítulos.
É esse o material que agora irá virar seu livro (confira dois trechos abaixo).
“De todas as histórias que vivenciei profissionalmente, a do Genésio é a mais difícil e sofrida de contar”, afirma Zuenir. “É melhor que ele mesmo conte.”
*
“No dia 21 daquele mês, Darly, Darci e Serginho acertaram os últimos detalhes para assassiná-lo. Tudo que eles conversaram na varanda da casa e na mesa de sempre, eu escutei naquela noite. A conversa que eu ouvi entre os três foi a seguinte:
– E aí, já está tudo pronto pra dar fim na vida do Chico?
– Já sim senhor, disse Serginho ao Darli.
– E a tocaia, foi bem planejada como eu pedi? – perguntou Darli ao Darci.
– Está tudo do jeito que o senhor pediu.
– E a arma, já testaram? -perguntou Darli aos dois.
– Já, só tem um detalhe.
– Qual?
– Ainda não sabemos quem vai atirar ou não”.
“Ao chegarem da tocaia, Darci e Serginho disseram: ‘O serviço está pronto’. Aí eles foram comemorar. Na mesma noite, Darci pegou o Saveiro e partiu em direção a Rio Branco, mas já era tarde, ele não conseguiu passar pela barreira que a polícia montou no trevo de Senador Guiomard para Rio Branco. Tentou passar, mas a policia atirou no pneu do carro e o prenderam. Enquanto isso, Darli, Serginho, Alvarino e outros foram se esconder no mato. Ok!” (RICARDO MENDONÇA / Do Portal Uol em SP)